12.2.07

Apresentação ou "O negócio é experimentar"

Conheci o Jairo em janeiro de 2000, creio. Na época eu morava no Rio e escrevia na Contracampo e estava preparando uma pauta bem ambiciosa sobre os 10 melhores filmes brasileiros. A gente consultou mais de 100 pessoas (críticos, cineastas, etc.) sobre seus filmes favoritos, os que mais os marcaram. Eu queria conhecer o Jairo a um bom tempo, então a pauta na verdade foi mais um pretexto. Conversamos por telefone longamente: ele andava meio esquecido, os filmes de que ele gostava eram ainda mais obscuros do que antes, e ele ficou um tanto surpreso que eu (com 23 anos) conhecesse o trabalho dele razoavelmente bem, que o procurasse pra falar de cinema. Foi a primeira de muitas (menos do que gostaria) conversas com Jairo.

Na verdade, conheci o Jairo um pouco antes, na biblioteca do CCBB do Rio. A primeira edição de "Cinema de Invenção" (Max Limonad, 1986) estava fora de catálogo desde um bom tempo e este era o único meio de pôr as mãos no livro. Eu lie reli o livro na biblioteca, mas naquela época eles ainda tinham uma sala de xerox, de modo que era possível copiar um número – pequeno – de páginas. Então, a cada ida ao CCBB para ver o Boudu do Renoir, Sangue Mineiro ou Pacto Sinistro significava também um ou dois capítulos do livro em casa.

Muitas coisas me fascinavam – e ainda fascinam – no "Cinema de Invenção". Tinha, claro, os filmes e cineastas de que tratava: onde mais conseguiria boa informação sobre Sganzerla, Bressane, Carlão, etc.? Outra parte dos filmes (A Margem, O Pornógrafo, A$$untina das Amérikas) eram um tesouro intangível, longe dos olhos. A curiosidade era enorme, sentimento que as fotografias e a ótima edição só reforçavam: era preciso ver aqueles filmes!

Hoje pode parecer um pouco estranho, mas até poucos anos atrás o cinema de invenção não fazia parte do default (como diz o Remier Lion) dos cinéfilos e críticos, mesmo os mais radicais). Em São Paulo ainda era possível conhecer algo de Candeias, por exemplo, mas no Rio era impossível. Em poucos anos as coisas mudaram um pouco, não muito. Não sei se as mostras de Cinema Marginal e a reedição de "Cinema de Invenção" (Limiar, 2000) são causa ou efeito disto.

Mas, voltando ao fio da meada, o que mais me intrigava no livro era a maneira de abordar e descrever seu objeto: não como mero tema, mas algo mais profundo, como base mesmo de uma escrita também de invenção. Como crítico, Jairo não tinha na capacidade de argumentar a sua maior virtude; ao mesmo tempo seu texto tinha uma força – ao menos para mim – evidente e "da evidência". De alguma maneira então meio misteriosa, era possível vislumbrar os filmes de que Jairo falava. Ou antes: os filmes tais como ele os via – e eles eram magníficos.

O Jairo gostava de falar em cinevida, de um "mimetismo total entre criação & vivência". De fato, o cinema era a vida dele. Dito assim, pode parecer um clichê. Não é: basta ler seus textos. Por isso digo que o conheci muito antes de termos conversado pela primeira vez.

Nessa época o Jairo preparava – animadíssimo – a reedição do "Cinema de Invenção". Pensamos até em fazer uma mostra, como havia sido feita quando o livro fora originalmente lançado (salvo engano, "Semana do Cinema de Invenção" no MIS-SP).

Mas ao mesmo tempo ele já estava um tanto debilitado. Não apenas pelos anos de abuso de alcóol & drogas: talvez muito mais pela vida.O retrato disto era seu pequeno apartamento no Glicério: a cada visita, parecia mais deteriorado. Uma vez, o telefone havia sido cortado; depois, a luz; em seguida, móveis, e até janela e fechadura da porta foram-se. Ele começava a se auto-destruir, mas fingia curtir a situação: dizia-se kavernista. Parecia querer desfazer-se de tudo, mesmo seus livros.

(Foi assim que consegui, por acaso, um exemplar da primeira edição do "Cinema de Invenção": a que ele vendera ao sebo em frente ao Espaço Unibanco.)

Ele vivia com a ajuda da família e dos amigos mais generosos – Carlão Reichenbach e Inácio Araujo, desde sempre, e mais recentemente Paulo Sacramento, Paulo Gregori, Guiomar Ramos, Mônica Rennó – que faziam as compras no supermercado e pagavam as contas na hora do aperto. O Jairo tinha se especializado em comer de madrugada em restaurantes, pizzarias e botequins sem um tostão no bolso. O Inácio tem estórias geniais a respeito, algumas passadas em delegacias.

O maior elogio que eu poderia fazer ao Jairo é que ele era a pessoa mais desprotegida que eu conheci. Digo isto muito menos como vitimização do que para reforçar uma, digamos, abertura para as coisas e pessoas. Talvez esta tenha sido, em parte, sua desgraça, mas ele era assim mesmo: sem armaduras, sem concessões, generoso, incapaz de atitudes calculadas demais.

De vez em quando o Jairo gostava de dizer que eu seria seu sucessor na crítica de cinema. Ele sentia-se contente em trocar idéias comigo, com minhas perguntas. Achava também a Contracampo o que de melhor havia em crítica aqui no Brasil. Elogiava muito o Ruy Gardnier, mas achava seu texto um pouco acadêmico (no que discordo). Também acho que ele estava equivocado quanto a mim: digamos que temos (eu e Jairo) personalidades muito diferentes, talentos idem. No mais, como disse o
Inácio, eu acho que não há mais lugar para o cinema que um Candeias fazia, como não há para a crítica do Jairo. Infelizmente.

Em nossas conversas, volta e meia o Jairo me dava pastas com uma série de documentos seus: roteiros, alguns poucos artigos do São Paulo Shimbun, cromos, uma cópia datilografada de "Só Por Hoje", livro autobiográfico que escrevera. Ele queria que eu lesse seus textos mais antigos e raros. Mas eu desconfio que ele pensava que eu poderia dar um bom uso aquele material. Durante um tempo nós dois cogitamos preparar uma coletânea de seus textos no Shimbun (o que o Alessandro Gamo fez maravilhosamente bem recentemente). Depois disto, eu fui pesquisando e acumulando outros materiais raros: uma cópia da primeira e única edição da Cinegrafia (revista que o Jairo editou com o Carlão e o Inácio em 71), um número razoável de artigos da Folha, do Shimbun, etc.

Este blogue nasce da vontade de compartilhar estes textos. Talvez algum dia a idéia tome um outro formato (mais nobre?), um livro quem sabe. Mas, como diria o genial Zé Trindade: o negócio é experimentar. E ver no que dá. A única coisa que de fato espero é conseguir manter alguma regularidade nas atualizações.

No mais, como diria o Jairo: em êxtase – e por que não? – perante a função humana, dou este blogue por iniciado.


3 Comments:

At 18:05, Blogger Marcelo V. said...

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