14.2.07

Entrevista com Jairo Ferreira

A seguinte entrevista foi concedida a Diomédio Morais e publicada no Cine Fanzine, número 1, em 1993. A cópia que Jairo me deu tem algumas anotações e correções feitas à caneta (como em quase tudo que ele guardava). Na transcrição, seguirei o texto publicado e, na medida do possível e do interesse, as anotações estarão entre colchetes. Mais importante, porém, é que numa delas, lê-se: "complementação: cap. Jairo Ferreira". Em algum momento, portanto, pensou-se em adicionar o texto abaixo à segunda edição de "Cinema de Invenção". É um belo depoimento mas creio que há entrevistas melhores do Jairo: uma longa concedida à Paupéria (revista editada por Vitor Angelo, Arthur Autran e Paulo Sacramento) e uma com o Peter Baiestorf. Em breve, pretendo disponibilizar este material também. (JT)

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Como você define esse tipo de cinema que você vem fazendo há mais de duas décadas?

É um tipo de cinema muito especial, feito de epígrafes, aforismos e outros estilhaços que conduzem a uma síntese ideogrâmica. Sou, antes de tudo, um experimentador [inventor] e, aos meus olhos, o único valor consiste em não filmar, nem falar clichês. Experimentar [inventar] é a única coisa que me entusiasma: cinema de expert para expert e, também, import/export, sem esquecer que, no Brasil, todos entendem de cinema. Faço um cinema discretamente secreto, porque essa arte é mais secreta do que todas as outras somadas. Não utilizo a câmera como mero espelho de registro naturalista, mas como uma via [infovia] por onde chegam as mensagens de um outro mundo, de outra galáxia, de outro cinema de invenção [astral].

Ficção científica e horror em tom de chanchada?

Você pode somar todos os gêneros e o resultado ainda é pouco. É preciso criar novos gêneros de expressão. Shakespeare do cinema, Welles como ator é também um gênio dos gêneros. Já um Altman é apenas versátil, não chega nem a ser mestre. Sou mais Coppola, mais Tonacci. Ficção-científica e horror são os gêneros que mais me atraem, mas acho que o universo poético comporta tudo quando parece não comportar mais nada. Em algumas sessões do Vampiro da Cinemateca, observei uma tendência curiosa: a gargalhada implosiva, cultural/gutural, pois a platéia engole o riso e vai ruminar em casa.

O que significa fazer cinema no seu modo de ver?

Fazer cinema e respirar é uma coisa só. Respiro cinema dia e noite por todos os poros. Filmo para perscrutar, captar o aparentemente incaptável, definir o indefinível, ouvir o invisível e ver o inaudível colorido. Vou detectando à medida que as minhas pesquisas avançam no horizonte do provável. O cinema de novas percepções engatinha, Fritz Lang dizia: quem acredita ter uma vocação de cineasta, deve sentir-se interiormente como esses grandes pioneiros que exploram terras desconhecidas.

Há algo de novo do Vampiro da Cinemateca ao O Insígne Ficante?

Nove em dez vezes o novo é apenas o estereótipo da novidade. Fujo disto com a cruz do diabo. Dez em novo vezes a diluição pinta travestida de invenção e os incautos embarcam. No Vampiro, comecei filmando filmes-que-filmam-filmes, rosqueando a minicâmera no tripé da poesia moderna, Rimbaud/Baudellaire/Mallarmé. Lautreamont e Blake surgiram como assistente de direção. Desmontei sutilmente algumas seqüências lapidares de Cidadão Kane, jogando os sues planos em área existencial própria. Questão de princípio ex-tétrico/estético: transfigurar os originais em função do meu universo cinematográfico. Um universo que, ao mesmo tempo, é terra de todos e de ninguém. O próprio Welles endossa a tese em F for Fake, diante da monumental catedral de Chartres, obra anônima. [a última frase foi riscada]

Nem Verdade nem Mentira é o próprio Vampiro da Cinemateca com equipe?

Por aí. O Vampiro é um filme de todos, feito por um, lance subjetivo e impessoal. Nem Verdade nem Mentira é um documentário encenado, fake na grande Imprensa para captar a verdade jornalística através de um confidential report. O personagem está rodeado por uma equipe de oito pessoas e seis personalidades de uma redação, lance objetivo e pessoal.

O Insígne Ficante é um passo adiante?

Vários. Retoma o lance de olhos de raio[s]-x do Vampiro em ritmo de fantasia crítica, agora coadjuvado por Poe, Nerval, Piva e, também, Candeias, Ivan, Bressane. Ezra Pound surge como cicerone de viagens multifacetadas ao exterior e ao Interior do Brasil, separando o joio/diluição do trigo/invenção – um lance dos campos/pelos campos/para os campos. A culminância é um confronto da Guerra dos Mundos, via Welles em F for Fake com Limite de Mário Peixoto, ambos alinhavados por uma rara e soberba crítica de cinema escrita por Jorge Luis Borges.