15.2.07

O fantástico Jean Garrett

Ana Maria Kreisler e Benjamin Cattan em "A Força dos Sentidos"

JAIRO FERREIRA

Com a sala lotada desde às 20h45 (a sessão estava anunciada para às 21, mas só teve início, inexplicavelmente, às 21h25), muita gente sentada nas laterais de concreto e no corredor central, prosseguiu anteontem a mostra Perspectivas do Cinema Brasileiro no Museu de Arte de São Paulo. A mostra foi aberta segunda-feira última com "Gitirana", de Jorge Bodanzky e prossegue hoje com "Muito Prazer", de Davi Neves, prometendo repetir a grande afluência, o que prova que o público não está interessado num ou outro filme em particular, mas na mostra em geral, ou melhor, nas perspectivas que o cinema nacional possa ter, pois atualmente muitos acham que nem há perspectiva (alguns exibidores ganharam liminar para não exibir filmes nacionais – a não ser os que eles mesmos produzam).

"Ser eu sendo tu", diria Fernando Pessoa, se conhecesse Jean Garrett, também português, mas conhecido com Claude Chabrol paulista. Não é um cineasta que faz filmes pessoais e objetivos, mas sim impessoais e subjetivos, ou seja, parte sempre do roteiro de outro, do qual participa. Nunca é "ele mesmos", mas passa a ser: "Ser eu sendo tu". Simbiose do cinema de artesão, que é Garrett, aqui sendo ele através de um roteiro de W. Kopezky, como em seu filme anterior, "Mulher, mulher", o roteiro era de Ody Fraga.

Em "A Força dos Sentidos", o cineasta reafirma seu talento, total domínio da narrativa, sensibilidade inusitada para o inusitado, os temas fantásticos, aqui aliado com felicidade ao erotismo que garantirá a boa bilheteria do filme. Conseguir isso não é fácil: pode-se dizer que Garrett não faz concessões. Está se depurando cada vez mais e o próximo filme é sempre aguardado com maior expectativa (está montando "A Mulher que Inventou o Amor", este com roteiro de João Silvério Trevisan).

"A Força dos Sentidos", como "Mulher, Mulher", foi filmado em Ilha bela e tira total partido do clima fantástico da ilha, cenário que Hollywood inveja e não pode imitar. Quem imita – e bem – é Garrett, que sempre foi ligado em cinema de horror, suspense e policial. Seu fotógrafo predileto ,desde "Excitação" (1976) é Carlos Reichenbach, que vem da melhor fase da Boca do Lixo (1967/71). Conclui-se que Garrett retoma aquela fase e dá-lhe novo impulso, nova dimensão. Fora da Boca do Lixo, como se sabe, não há salvação., mas é preciso saber de qual Boca se está falando. Garrett é a ponte de ligação entre aquele segmento e o vôo rasante da pornochanchada que triunfa na Boca desde exatamente 1971.

Aldine Muller, por exemplo, já tinha feito mais de 30 pornochanchadas de carregação, mas sua carreira pode ser dividida em antes e depois deste "A Força dos Sentidos". O mágico é Jean Garrett, que já tinha feito a mesma coisa com Helena Ramos. E não é uma mágica tão difícil: o grosso da pornochanchada tem sensibilidade de pele de jacaré, quando o sufoco reclamou a volta do cinema epidérmico, mas também hipodérmico. Não é outra coisa o cinema de Jean Garrett: cinema de emoções à flor da pele.

Do que trata o filme? Parapsicologia cinematográfica. Parapsicologia propriamente é outra coisa , uma nova ciência, mas Garrett só se interessa pelo que essa ciência tenha de sugestão fílmica. Por isso lá está o velho clichê da moça que é fotografada mas não aparece na foto revelada. Um clichê que sempre funciona, principalmente quando é transfigurado por uma "mise en scène" talentosa. Se a moça não aparece na foto deve ser porque não existe, como talvez não existam nenhum dos outros personagens que rodeiam o escritor de novelas (Paulo Ramos). Esse é um dado da maior importância: o escritor pode ser uma projeção do próprio Jean Garrett e os personagens da ilha podem ser seus roteiristas. Objetivamente, os roteiristas existem, claro: "Ser eu sendo tu". Quem não existe, por outro lado, é o próprio Jean Garrett, mas não existindo passa a existir. E tem mais força do que os que "existem": não se brinca com a força dos sentidos.

(Folha de S. Paulo, 7 de fevereiro de 1980)