22.1.08

Biáfora: tentações de um raro cineasta


"A Casa das Tentações", escapando milagrosamente à mediocridade geral do cinema que se faz atualmente em São Paulo, começa a ser exibido a partir de hoje nos cines Copan, Regina, Augustus, Gazeta, Palmela e San Remo. Trata-se do terceiro longa-metragem de Rubem Biáfora, um cineasta brasileiro que só faz cinema de dez em dez anos: em 1957, realizou "Ravina" e, em 1967, "O Quarto".

– O mínimo que eu posso dizer é que não estou me repetindo. Quando fiz "Ravina", minha preocupação era desenvolver um certo tipo de romantismo, que terminou sendo uma experiência gótica. Já em "O Quarto", procurei o verismo e muita gente começou a dizer que eu tinha aderido ao neo-realismo. Mas não era bem isso: no fundo mesmo, o que interessa é que os filmes tenham consistência humana. E é isso que eu tento fazer novamente agora, mas partindo para uma comédia que tem base dramática.

Utilizando uma narrativa anti-linear, isto é, sem o tradicional começo, meio e fim, o novo filme de Biáfora ambienta-se "nas altas e também nas pequenas esferas sociais", procurando devastar os bastidores e desmascarar o comportamento hipócrita da maioria das pessoas.

– Meu filme gira em torno da corrupção, da mediocridade e também da ingenuidade dos chauvinistas subdesenvolvidos. Todos estão procurando um lugar ao sol, correndo atrás do dinheiro. O personagem de Pedro Stepanenko, por exemplo, tem um diálogo bem esclarecedor: "Vamos explorar o ponto fraco dessa gente decadente", diz ele. Basicamente o filme é a história de dois vigaristas que exploram a profissão mais antiga do mundo, mas devidamente encobertos por uma fachada. A minha defesa foi jogar um sarcasmo em cima deles, atingindo os tradicionalistas decadentes e os incompetentes de forma geral.

O cineasta define seu filme como "uma farândola", realizando um tipo de cinema que não pode ser classificado como pornochanchada, Cinema Novo ou Cinema Marginal O que será então?

– Como gênero, fiz uma mistura de drama e comédia, apresentando recursos ora oníricos, ora realistas e, muitas vezes, com alusões bíblicas. Confesso que a intenção inicial era só dramática, mas depois, trabalhando o comportamento dos personagens, fui acrescentando o sarcasmo em cima de quase todos. Para surpresa de muita gente, um dos personagens que eu mais respeito no filme é o do "hippie", interpretado pelo Flávio Portho, que tem uma preocupação mística e se destaca dos demais.

Em seu livro "Revisão Critica do Cinema Brasileiro", Glauber Rocha fez duras criticas à "Ravina", realizado em co-direção por Rubem Biáfora e o falecido Flávio Tambellini: "Ravina é a coroa mortuária de uma mentalidade pequeno-burguesa que persegue um ideal aristocrático. Pasticho mal feito de dramalhões argentinos, por sua vez influenciados por antigos dramalbões americanos de William Wyler, notadamente "Jezebel" e "O Morro dos Ventos Uivantes", "Ravina" é um exemplo de como não se deve fazer cinema em qualquer parte do mundo". Mas o próprio Glauber Rocha se retrataria mais tarde, enviando uma carta a Rubem Biáfora, por ocasião do lançamento de "O Quarto", em 1968, onde confessou que "esse filme é um depoimento comovente e humano".

Com uma carreira cinematográfica que tem 30 anos, embora seus três filmes longos não lhe tenham ocupado mais do que seis anos, Rubem Biáfora é também uma das maiores autoridades de cinema no Brasi. Faz arquivo de filmes desde 1928, guardando tudo sobre os lançamentos do cinema estrangeiro e nacional. Sem maiores esforços de memória, consegue lembrar os principais dados dos filmes exibidos no Brasil principalmente até 1950. Dai para cá, ele prefere consultar os índices. Mas seu novo filme não tem quase nada a ver com essa erudição. Ao menos é o que ele garante:

– Em "A Casa das Tentações", só identifico uma influência muito leve de um filme de Vincent Sherman, com Ida Lupino e alguma coisa de "Cul de Sac" ("Armadilha do Destino"), de Roman Polanski, no que diz respeito ao absurdo e à perversidade. E lógico que tem ainda a influência absorvida dos musicais da Metro, particularmente de "O Pirata", de Vincent Minnelli. O que fica no inconsciente é uma coisa e outra é fazer citações propositais, coisa que eu evitei, pois não teria cabimento fazer isso quando estou procurando fazer um trabalho pessoal. Considero satisfatório o resultado plástico do filme, a procura da intensidade dramática na cor. Como se sabe, poucos se preocupam com a cor entro nós e eu acho que isso é uma necessidade, mas não teria sido possível se o fotógrafo Cláudio Portioli não tivesse entendido as minhas intenções, tanto que ele foi ao mesmo tempo fotógrafo, iluminador e assistente de direção.

Com um elenco dos mais diversificados do cinema nacional, o filme deu uma boa oportunidade ao diretor para trabalhar com tipos humanos. Os atores principais são Flávio Portho, Elizabeth Gásper, Pedro Stepanenko, Cavagnole Netto, Francisco Curcio, Áurea Campos, entre outros, mas a vasta galeria é completada por participações de elementos dos mais variados setores do cinema nacional: Rubens Ewald Filho, crítico de cinema; Fauzi Mansur, Carlos Reichenbach, Heron D’Avila, Edward Freund, Anselmo Duarte, todos diretores de cinema. Outras figuras de destaque que também estão no filme: Bernardo Vorobow, Paula Ramos, Miro Reis, Wilson Louzada, Betina Viany, Liana Duval, Leina Krespi, Marlene França, Selma Egrei, Paulo Hesse, Pedro Paulo Hatheyer, Sérgio Hingst, Arasary de Oliveira, a bailarina Marilena Ansaldi e Silvio Reinoldi, o próprio montador do filme.

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 29 de agosto de 1977)