13.1.08

Zé Mojica na busca de uma manchete

JAIRO FERREIRA

"Respeitada seja a visão de quem quer ver; mesmo que essa visão provenha das projeções mentais de um cego". Com essa epígrafe visionária, digna do melhor Jorge Luiz Borges, do melhor Jerônimo Bosch e do melhor William Blake, para citar apenas três gênios poéticos de diferentes épocas e nacionalidades, tem início "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo", extraordinário filme de José Mojica Marins que estréia hoje nos cines Premier e Avenida.

Comparar Mojica Marins aos gênios citados pode parecer ousadia exagerada, mas não é. O cineasta paulista não pode ser entendido e nem discutido a partir de referências meramente cinematográficas, porque o cinema brasileiro está vivendo um momento medíocre, um vôo rasante na cultura, enquanto Marins se destaca como artista único, o primeiro dos cineastas obrigatórios desse deserto fílmico. O único detalhe é este: a necessidade de separar o joio do trigo, de não confundir "Delírios de um Anormal" com "À Meia Noite Encarnarei no teu Cadáver" ou "Perversão" com "À Meia Noite Levarei sua Alma". Em outras palavras: Marins é capaz do pior e do melhor e "Manchete de Jornal" é o que ele fez de diferente depois de alguns anos de repetições e desacertos. Fala o gênio:

– "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo" é um filme que fiz num fim de ano, com produção dos meu técnicos habituais, dedicado a eles, uma boa forma de dar um prêmio a eles. Náo vou ganhar um tostão com esse filme porque as porcentagens são todas da equipe, principalmente Satã, o homem que tem sido visto como meu guarda-costas, que me acompanha em tudo o que faço. Foi ele que me socorreu no fim do ano passado, quando o caixão que também me acompanha nos últimos 16 anos caiu sobre mim, no fim de uma macabra festa de aniversário (onde o homenageado era justamente o caixão), o que me valeu uma boa fratura da clavícula. Eu estava formando uma dupla com Satã, semelhante ao Mandrake e ao Lothar, e não poderia deixar de ir à Espanha mostrar meus filmes. Se consegui chegar lá, munido de sete atestados médicos, foi com a colaboração de Satã.




Marins, Satã e Antonio Ráfales: menção especial na Espanha

– O que eu mostro nesse "Manchete de Jornal" é a trajetória de um jornalista que sai de casa de manhã, buscando uma manchete. Mas é preciso saber ver: o que eu entendo por jornalismo não é o que outros entendem. Já me perguntaram porque esse jornalista, que eu mesmo interpreto no filme, tem as unhas compridas. Respondo que ele está fazendo uma promessa: não cortará as unhas enquanto não conseguir a manchete, se conseguir. A manchete que ele busca não é uma noticia comum, sensacionalista, dessas que se lê nos jornais diariamente. Esse jornalista busca algo que os outros jornalistas não buscam e que é a informação que ninguém deu. Ele não é um repórter acomodado e por isso sofre, fica decepcionado com a realidade. O roteiro é fruto de minhas leituras do Apocalipse bíblico, mas interpretado segundo a minha visão.

Como já assisti ao filme, posso confirmar que Mojica Marins está na pista certa da informação nova. O que o jornalista de seu filme busca não é nada mais do que a informação de primeiro grau, essa mosca branca dos anos 70. Com efeito e como é feito: isso é o mais importante do filme. Contando com um mínimo de recursos de produção, o cineasta consegue o máximo de concentração. Há no filme, inclusive, uma sequência de implosão da informação: o jornalista visualiza o Apocalipse da comunicação, com mil imagens que são projetadas a partir de sua mente. Dai a sua consonância com "O Aleph" que, curiosamente, o cineasta não leu, porque seus livros habituais não são os de Jorge Luis Borges, mas simplesmente historias em quadrinhos.

– Eu tinha esse roteiro guardado há muitos anos e não encontrava uma oportunidade pra realizar o filme. Muitos cineastas queriam me comprar o roteiro, mas não abri mão. Eu sabia que esse filme poderia significar um renascimento da minha carreira e as pessoas que viram o filme disseram exatamente isso: que é o melhor que já fiz desde os primeiros, principalmente os dois de horror, "À Meia Noite Levarei sua Alma" e "À Meia Noite Encarnarei no Teu Cadáver". Eu quis mostrar que existo também sem o Zé do caixão, mas o jornalista desse filme é uma projeção desse personagem. Eu disse na Espanha que uma coisa é Mojica Marins e outra é o Zé do Caixão. O sofrimento do jornalista é o meu sofrimento. Zé do Caixão busca o filho perfeito, que só pode ser feito com a mulher perfeita. O jornalista busca a manchete também perfeita.

O repórter que eu interpreto no filme tem um prazo de 24 horas para conseguir a manchete redentora de ano novo. Toda a ação do filme se passa em um dia. Um dia que vale por todos os dias porque, nessa véspera de ano, o repórter vê o mundo interior, vê a história da humanidade e vê todas as desumanidades possíveis. Essa é a realidade dele. Não fui eu que inventei o horror: o horror existe no cotidiano. Meu filme apenas reflete um pouco desse horror. O que eu inventei é o filme. Tive garra pra fazer esse filme, inventando sempre o que ainda não foi inventado, porque aquele que inventa o que já existe deixa de ser inventor.

– Sei que "Manchete de Jornal" é um filme que vai mexer com a classe dos jornalistas, mas acho que vai agradar aos bons jornalistas, aos que se dedicam de corpo e alma ao seu trabalho e que fazem de sua profissão não apenas um ganha pão. Não tive a intenção de fazer nenhuma critica aos maus jornalistas, inclusive porque estou sempre dizendo que a visão que eu tenho do jornalismo é particular, minha. Eu vejo o jornalismo da forma que está no filme. Se essa forma não corresponde à realidade, se não é bem assim, isso não me interessa. Eu acho que sou autêntico porque tenho coragem de filmar o que penso.

Mojica Marins não pode ter realmente nada contra o jornalismo brasileiro porque nenhum outro cineasta foi tão promovido como ele. Em seus estúdios da Mooca, tive oportunidade de ver o arquivo do cineasta e fiquei impressionado: todos os jornais brasileiros lá dedicaram páginas e mais paginas a ele. No estrangeiro, depois de Glauber Rocha, Mojica Marins é o cineasta mais comentado. Revistas francesas dedicaram várias páginas ao homem, que parece ser insaciável: Mojica Marins reclama que a maioria dos jornalistas que o entrevistam terminam a conversa no ponto em que deveria começar. Insatisfeito com essa situação, está escrevendo atualmente vários livros, tendo um deles já pronto ("O Universo de Mojica Marins", mesmo título do documentário que sobre ele fez Ivan Cardoso). Seu sistema de trabalho é este: nunca pára de filmar e, quando chega em casa à noite, liga um gravador e vai até altas horas da madrugada, expondo ao microfone a sua revolta constante contra o mundo, contra as injustiças que ele diz ver durante o dia. Como não pode fazer uso da máquina de escrever, devido ao comprimento de suas unhas (que variam entre 5 e 10 centímetros), deixa a tarefa de compilação a cargo de seu filho, um garotão que curte música de discoteca.

Em suma: "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo" é o filme mais revelador desse universo fantástico de José Mojica Marins, não apenas um cineasta-inventor, mas basicamente um poeta visionário, um grande pensador, o criador da metafísica do povão. Tudo o que ele pensa sobre jornalismo, informação e comunicação está nesse filme, obra absolutamente deflagradora, visceral e generosa. Trata-se se de um filme único e legítimo porque não é imitação e, certamente, não terá imitadores.


(Folha de S. Paulo, 4 de junho de 1979)