2.9.07

Equilíbrio entre o suspense e o erotismo

Um bom exemplo de que cinema não se faz com boas intenções e muitas "idéias" na cabeça, mas sim com talento: "Excitação" (em cartaz nos cines Marrocos, Augustus e Gazetinha/Centro), o melhor filme de Jean Garrett, um cineasta que já estava acima da média (A Ilha do Desejo, Amadas e Violentadas) e que, a partir de agora, pode ser considerado como o Claude Chabrol do cinema brasileiro. Desde que João Silvério Trevisan "fechou" a Boca do Lixo com o antológico "Orgia" (1971) não se via um filme tão talentoso no cinema local.

A trama é relativamente simples: numa mansão do litoral, uma jovem esposa (Kate Hansen) é perseguida por eletrodomésticos que funcionam sozinhos. O detalhe esclarecedor é que um homem se enforcou nessa casa há tempos atrás. O que é isso? "O Inquilino", de Roman Polanski, antes do próprio "O Inquilino"? Não necessariamente, mas os pontes de contato são inegáveis. O nível de problemas paranormais é patente, o mistério atinge alta densidade dramática e o suspense vai num crescendo do inicio ao fim.



"Nem parece filme nacional", comentou um espectador logo na apresentação, onde há um super-detalhe do olho humano, fixando-se na íris. Os letreiros vão surgindo lentamente numa trucagem muito bem feita e com uma música de grande peso dramático. A narrativa começa a se impor a partir das primeiras imagens, onde os movimentos de câmara são perfeitos e a montagem é exata, lembrando os melhores cortes de Eizo Sugawa e Edouard Molinaro. Pode parecer exagero, mas não é: Jean Garrett é a mais grata revelação do cinema nacional nos últimos anos.

Talento deflagrador, o jovem diretor, nascido em Portugal, tem um apurado senso de narrativa, conseguindo envolver tanto o grande público como os espectadores mais exigentes. Ele preferiu uma trama simples, mas que vai se tornando complexa à medida em que a atmosfera dramática ganha consistência. Trata-se de uma concepção formalista, no bom sentido do termo. A idéia inicial é plenamente desenvolvida pela narrativa, abrindo uma ampla área de sugestões para o espectador.

A paranóia da personagem, perseguida pelos eletrodomésticos, vai aumentando gradualmente no decorrer do filme. Ela tem certa lucidez, no início, mas ficará totalmente louca ao final. Há outro ponto de contato com Eizo Sugawa, o terrível cineasta japonês, que Jean Garrett talvez nem conheça: a policia só entra no filme para levar os cadáveres e os crimes podem não compensar, mas ficam impunes, como em "Morte a Fera", de Sugawa.

A fotografia de Carlos Reichenbach, o Jean Rabier brasileiro, é uma das mais criativas do momento, impondo-se funcionalmente pelo tom mórbido que a trama exigia. A montagem de Walter Wani é uma verdadeira jóia, acentuando o clima com ruídos eficientes, cortes secos e precisos. A música funciona do inicio ao fim. E Kate Hansen tem uma de suas melhores interpretações, longe da petrificação khouriana,. E há outro detalhe importante: pela primeira vez. em muitos anos, o erotismo não surge gratuitamente na tela, mas sim dentro do contexto dramático do litoral, fotografado na penumbra. O único "porém" é o titulo, Excitação, ruim de doer, escondendo o ouro criativo.

Em suma: Excitação é uma surpresa total. Um filme que satisfaz plenamente. Não só pela quase perfeição da imagem, mas também do som. A qualidade da projeção, no cine Marrocos, melhorou assustadoramente. E o som é uma revelação: entende-se absolutamente tudo o que os atores falam. O espectador sai do cinema com a impressão de ter assistido a um dos melhores filmes do ano. Não perca.

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 7 de junho de 1977)