30.3.07

SAMUEL FULLER, o gênio do olho

Exibido na semana de inauguração da Sala Cinemateca, Ladrões do Amanhecer, de Samuel Fuller, é puro cinema emoção, sem cair nos estereótipos do thriller ou do gênero melô


Trama por trama, drama por drama, o que importa em Os Ladrões do Amanhecer (Les Voleurs de la Nuit, França/1983), de Samuel Fuller, não é uma coisa nem outra, mas a verve, a ourivesaria plano por plano. O gênio da agilidade do olho está mais jovem do que supõe o gagá Godard, hoje um chato de galochas.

O cinema de invenção que não soa caricato é o de Samuel Fuller. Um Fuller europeu na casca, mas norte-americano no pessimismo, aqui numa autocrítica, quase uma glosa, devolvendo aos cinéfilos da Nouvelle Vague que o valorizou um exemplo de avançar criativamente sem babaquices.

Não há fórmulas, senão pretexto para um reexame da linguagem a 24 quilates por segundo. Ourivesaria do plano no ritmo, do ritmo na seqüência, da seqüência no conjunto de uma partitura musical. Nenhuma grandiloqüência sinfônica, nenhum atonalismo blasé, nenhum pedantismo. Apenas um violoncelo e alguns violinistas. Mais adágio que para concerto. E Jimi Hendrix comparece num pôster na loja de instrumentos musicais. Música da câmera? Música de câmara. O protagonista curte isso, Bonnie sem Clyde. Lágrimas sem mel.

Música do olho. O próprio Fuller, então com 71 anos, assumiu uma aparição especial, como o expert Zoltan. Vive numa mansão, charuto na boca, quando é visitado pela dupla incestuosa central, que o confunde com um receptador e pede para que examine um relógio de ouro maciço. Fuller tem obsessão por relógios raros – vide Agonia e Glória (The Big Red One, 1980), onde um belo cebolão é a metáfora de um soldado que tomba na praia rochosa. Fuller revela agora algumas taras – está assistindo vídeos sobre formas de morrer, no caso, de tuberculose, babando sangue. Ele se irrita quando a dupla passa diante do vídeo – "saiam da frente!". O casal pensa que ele é doido – faz-se um primeiríssimo primeiro plano de seu olho e ele diz: "Esta minha lente de contato é uma verdadeira lupa de ourives!". Só três risos sarcásticos foram ouvidos na sala da cinemateca:o meu, o de Luiz Nazário e de outro que não identifiquei. Vale dizer que os outros 150 espectadores não estavam entendendo nada.

Fernando [?], por exemplo, levou o filme a sério, embora tenha saído achando que "o homem é realmente demais, não adianta a molecada de hoje querer imitá-lo que nunca chegarão aos pés dele". De fato, entra década e sai década, e Fuller é sempre admirado, e nunca igualado.

Não dá pé imitá-lo, seu olho de gênio é inimitável, intransferível, ou seja, é o tal olho-na-cabeça-do-poeta do qual fala Welles, aliás, ao lado de mais, temos uma trindade máxima do olho ágil. É preciso tentar perscrutar esses olhares que nos brindam tão raramente na própria história do cinema.

Godard perde muito nessas comparações do olhar de raios X. Imitou e cansou de tentar ser ou ter um olhar superior e não conseguiu. Vejamos, p. ex., como Fuller ousa fazer 3 ou 4 movimentos de zoom de invenção, quando os puristas pensam que essa lente não dá samba. Exemplo 1º) o violoncelista caminha na avenida, ao lado do Beaubourg, em Paris, e a câmera o enquadra em travelling no meio da multidão. Corta-se para um plano geral em contra-plongê e a zoom faz um movimento out, recuo rápido, enquadrando o personagem já nas escadarias; 2º) quando o personagem interpretado pelo Chabrol, sim, Monsieur Le Tartuffe, Claude Chabrol, cai do prédio, ali pelo 9º andar, a câmara não mostra a queda – faz uma zoom-in em umas nove escalas, "tremedinha", simetricamente, até primeiro plano do corpo; 3º) o efeito ficou tão criativo, original, que é repetido em branco e preto. Aliás, outro dia conversando com Hermano Penna (Fronteiras das Almas) ele me dizia que um dos melhores filmes que já viu na vida todo feito com zoom, me parece que era um filme polonês, "por sinal, muito mais niilista do que Cinzas e Diamantes".

Voltando a Fuller. A trama é irrelevante, embora sem clichês – Fuller é mestre em saber subvertê-los, pois para ele "cinema é emoção"; outra definição (esta é a que está em Pierrot Le Fou:"o cinema é um campo de batalha: a guerra, o amor, a morte") – não é exatamente essa a ordem, mas o sentido vale. O importante, não só neste filme francês, é essa ourivesaria da emoção. Uma emoção desdramatizada, antimelaço, o contrário do gênero melo. Foi nessa desdramatização que a Nouvelle Vague o elegeu mentor, um dos. Consiste no que? Vamos tentar ver: primeiro em antiheróis, embora Fuller tenha sido "herói", sim, Herói da Segunda Guerra Mundial, o que lhe valeu até mesmo "inveja" numa Hollywood convencional em que os diretores se limitaram a fazer documentários sobre. Jornalista, Fuller viveu a trincheira. Bem, é acusado ainda hoje de fascismo – mas trata-se antes de uma lucidez de direita que a esquerda só teve teoricamente. Cinéfilos eventuais de um PT embrionário não podem ver nisso nenhuma provocação , ou Ezra Pound estaria em pior situação. O fato é que a arte não tem ideologia - dá o néctar às ideologias. Estas pintam e bordam em cima, enquanto o talento revolucionário fica sempre acima.

Taí esse divertissement de invenção do Fuller que é tão talentoso que transcende o prazer de ver um filme. Ficamos tão putos que teremos que ter uma cópia em vídeo para rever como exemplo-do-que-é-saber-fazer-cinema. Tanto talento num filme só contra tanta mediocridade assolando. Fuller foi/é paradigma de independência. Mestre do olho, sempre pega um fotógrafo-iluminador que traduza o seu olhar inquieto, explorando genialmente os recursos de cenário na relação com a movimentação de câmera e atores. Poucos atores, sempre. E sempre um excesso de emoções desdramatizadas – seu segredo, ou um dos. Mas como é possível emocionar – sem cair nos estereótipos do thriller, um de seus gêneros-chave – apenas com alguns tostões de produção? A resposta está neste Ladrões da Noite, como em praticamente em todos os filmes que fez desde 1949. Uma excepcional concatenação visual numa mise-em-scène diabólica, intraduzível em palavras, pois essencialmente para acompanhar, no caso, ler o som e ouvir a imagem, mas numa articulação de cortes secos, por analogia ou não.

Botemos alguns defeitos. Os 20minutos iniciais estão algo desengrenados. Fica-se num virtuosismo de seqüência para seqüência , problema de roteiro, dele com um parceiro – não conhecemos o romance que deu origem ao filme, por sinal que nem interessa. Noel Simsolo já escreveu sobre essas deficiências, mas reconhece que é "um filme fulleriano como nunca". Bateu.

É botar no vídeo – aliás, o filme será lançado comercialmente, breve – e babar com um plano atrás de outro. Começa com um coquetel de imagens de ação, dando ênfase à batuta do mestre regente – ao final, o bastãoé novamente enfocado em primeiro plano, fixo. Admirável ou estonteante toda a seqüência final da fuga do casal que acaba encarnando uma versão atípica de Bonnie e Clyde. Fotografia-iluminação maravilhosas. Mas a mise-em-scène de Fuller se estende à montagem ultraconcisa, nos deixando sem fôlego entre um corte magistral e outro ainda mais genial. Vá ser magistral assim em outros [?],Mister Fuller.

Suas cenas & sacações não saem da cabeça dos cinéfilos & provavelmente farão a cabeça dos cinepoetas desdramatizados dos anos 90.Fico pensando naquela seqüência de diálogos mínimos e contundentes em que um personagem leva à delegacia um gravador de música que – não por acaso – tinha registrado a voz da personagem feminina, Bonnie, autoacusando-se pela morte do molieriano, sempre de olhos saltando nas órbitas (Chabrol, com óculos fundo-de-garrafa,lembrando o nosso querido Carlão Reichenbach). Aí o vizinho (por sinal há algo de Janela Indiscreta, de Hitchcock, ironicamente, com verve) diz ao delegado: "Agora o senhor que trate de arrumar uma imagem para esta voz". Seria como se Fuller estivesse parodiando o cinema mudo onde se tratava de achar um grito, por sinal o hitchcockiano para uma imagem, Há muito mais a sacar nesse filme-síntese sobre cinema, mas...

... sempre é bom lembrar – se há niilismo na violência, há também prazer. Nada de Nietszche – fora com os intelectualismos apolíneos ou dionisíacos. Fuller está além: está cinefilosofando uma poética de outra ordem. Cinematograficamente genial & imprevisível , a não ser que você tenha os olhos de...

... Digamos: linceletrônico.

Piorou – a sintaxe visual de Fuller dribla até a semiótica do século 21. Sem ser pós-picas. É o antigão tesudo. Basta. (JF)

Cine Imaginário, nº 41, abril de 1989


1 Comments:

At 11:36, Anonymous Anônimo said...

Gostei muito do texto!
Sabe onde posso arrumar este filme ?

abraço

 

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