As salas de horror da doutora Suspiria
JAIRO FERREIRA
Tentei duas vezes, na semana passada, assistir ao filme "Suspiria", de Dario Argento, e tive que sair bufando das salas. Vejam em que cinemas tive coragem de ir: Marrocos e Central 1.
Ao entrar no Cine Marrocos, vi um borrão vermelho na tela. Não me assustei porque sei que o diretor Dario Argento é dado aos efeitos especiais mais extravagantes. Fui me esgueirando pela lateral, procurando uma poltrona vazia, sem a ajuda de qualquer lanterninha. Sentei numa que estava quebrada, ou melhor, não cheguei a sentar, porque naquela escuridão não há quem não apalpe antes para ver se há poltrona. Naquela fileira, encontrei duas ou três quebradas, mas sentei numa que ao menos tinha assento. Apoiei bem as mão e fui soltando o corpo devagar. O assento caiu no chão e resolvi assistir ao filme em pé. A imagem era um borrão só, o som estava cheio de interferências. Desisti de vez quando percebi que uma pulga estava me atacando.
Teimoso, desconfiando que o filme valia a pena, corri ao Central 1, na av. Ipiranga. Entrei e achei que estava tudo muito estranho: os borrões vermelhos continuavam na tela, como no Marrocos, mas a diferença é que dessa vez tudo era silêncio. Dei um tempo, achando que se tratava de uma seqüência sem som, mas aí surgiram muitas legendas na tela e descobri o óbvio: o som da projeção estava desligado. O mais estranho é que ninguém assobiava, ninguém gritava "olha o som". Nada disso. Tomei a iniciativa de reclamar ao gerente, que logo tocou uma campainha, alertando o projecionista. O som foi ligado, mas aí pensei comigo: o som daqui é tão deficiente que o melhor mesmo é assistir mesmo sem som. Mas me irritei com uma cortina que joga luz na tela a cada vez que entra um espectador, além de um vozerio vindo da sala de espera. Dei tudo por perdido e jurei nunca mais voltar a essas duas salas.
Mas vejam bem: desisti das salas, não desisti de assistir ao filme. "Suspiria" estava em cartaz também no Ibirapuera 2, lá na zona sul, perto do aeroporto. Cada avião que pousa causa um estrondo que deixa qualquer outro ruído fora do ar por alguns minutos. Isso, porém, não seria o mais grave, desde que a projeção estivesse boa. E não é que estava! Entrei na sala e não vi nenhum borrão vermelho, embora a cópia seja puxada ao rubro. O som também estava perfeitamente audível, tanto que passou o "trailler" de um filme nacional e consegui entender tudo o que diziam. O ar condicionado não estava ligado, mas também não se pode exigir tudo; meu único azar é que o ar só foi ligado na sessão seguinte, quando a sala ficou mais cheia.
No Ibirapuera 2, deixei de bufar, embora não desse para suspirar a contento. Mas o filme suspirou por mim. Trata-se de um filme de horror, suspense e pavor do início ao fim. Logo nos 15 minutos iniciais percebi outra evidência: o horror é a projeção do Marrocos e Central 1; o horror é só o filme na projeção do Ibirapuera 2.
"Suspiria", de resto, me gratificou. Dario Argento, ex-crítico, bateu todos os recordes de citação. De cara, numa tempestade no aeroporto de Roma, cita o Hitchcock de "O Homem que Sabia Demais". A personagem chega a uma mansão e já começam homenagens a "O Solar Maldito", de Roger Corman, "Os Inocentes" (através de um garoto loirinho), ao "Dentes de Aço" dos últimos 007 (através de um criado que usa uma brutal dentadura).
A linha condutora de Dario Argento é mínima, mas desenvolvida ao máximo de substância narrativa. Numa frase, é a trajetória de uma jovem que vai estudar balé em Roma e descobre um reduto de bruxaria. Mas o diretor recheia esse clichê com alusões a dezenas de filmes. Passa pelo "Exorcista", "Carrie, a Estranha", "O Gabinete do dr. Caligari", "A Profecia", "Os Pássaros", "Psicose", "A Câmara de Horrores do dr. Phibes", "O Ano Passado em Marienbad", "O Bebê de Rosemary", "O Inquilino" e até mesmo seu próprio filme "O Gato de Nove Caudas".
Em matéria de reciclagem de clichês, há muito não via algo parecido. Dario Argento é fulminante: não há sequer uma seqüência que possa ser atribuída a "ele". Todos os "seus" personagens lembram personagens de "outros" filmes. Quando uma bruxa secular é desintegrada até virar pó, a referência é o final de "O Vampiro da Noite", de Terence Fisher; quando uma personagem leva uma navalhada, há um detalhe do corte e homenagem direta ao Buñuel de "A idade do Ouro". Só quem assistiu a muitos filmes de horror e, de resto, muitos clássicos de todo cinema, é que poderá verificar e se deliciar com essa brincadeira. O esquema deve ter sido este: Dario Argento montou um cenário fantástico, dentro de uma enorme mansão, cheia de labirintos e alçapões, e resolveu colocar dentro dela todos os filmes de que gosta. Para quem gosta dos filmes de que ele gosta, "Suspiria" é certamente um filme a ser lembrado na relação dos melhores de 80.
(Folha de S. Paulo, 5 de fevereiro de 1980)
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