13.3.07

CRITICANARQUICA ANOZERO DE CONDUTA

A Cinegrafia foi uma revista editada pelo Carlão Reichenbach, Inácio Araujo e Éder Mazini. Entre os colaboradores, estavam o Jairo e Ozualdo Candeias. As ilustrações eram assinadas por um tal de Khoury. Embora a contracapa prometesse para a segunda edição uma matéria especial sobre "Reed, Máxico Insurgente", do Paul Léduc, a revista ficou neste número único (julho de 1974).

Foi na Cinegrafia, por exemplo, que saiu a famosa entrevista (15 páginas!) com o Paulo Emílio feita pelo Carlão e o Inácio.

Os dois próximos textos foram tirados da revista.


PS: o crédito a quem de direito: o artigo foi republicado na Contracampo (http://www.contracampo.com.br/25/zerodeconduta.htm), quando eu e o Ruy Gardnier pesquisamos material do Jairo na Cinemateca do MAM/RJ. (JT)

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Meus cadernos de cinema/cahiers du cinema escritos com uma Parker 51 que acabei perdendo numa poeira, em 63, registraram & comentaram 1.200 filmes, com o que comecei a pagar imposto de renda crítica ao único crítico que respeitei (Jean-Claude Bernardet, na fase anárquica de UH 62/63). Biáfora era o mestre de berço e os cahiers roubados sempre na cabeceira ao lado do Spica.

A admiração física pelo cinema estava nascendo. Comprei e bifei então todos os livros de cinema. Uns quinze, entre nacionais e coleção espanhola Rialp. Li todos de cabo a rabo, andando pelas ruas da vila Carrão, Tatuapé, ônibus onde passageiros davam tiros & intervalos das sessões de cinema na área: cines Universo, Bras Politeama, Piratininga, Gloria, São Luiz, Aladin, São Jorge, Penha Palace e Príncipe, Jupiter & demais poeiras adjacentes. Solitário ou acompanhado de um colega de infância imbecil, o Cálgaro (até hoje meu amigo: só tenho amigos sinceros que aceitam as minhas agressões frontais), eu era, o anti-intelectual por excelência. Não é como no Day for Night ou nos filmes do Godard, a mania & tradição francesa do intelectualismo, onde os personagens acabam de ver um filme e já agarram uma revista. Eu buscava informação para entrar no cinema bem calçado. Pois nessa época não havia escola de cinema. Tive que ser autodidata. O cinema profissional que me esperava, entretanto, era uma selva, na Boca do Lixo a cultura era a vivência profissional. Fiquei meio sacaneado com isso e apelei para o ambiente dito cultural, profissionalmente empírico, o cineclubismo, felizmente, terminou me devolvendo à Boca do Lixo. Exorcizei-me da formação autodidata e fiz as primeiras amizades no Costa do Sol, Honório (da 8ento Freitas). Isso em 65/66. Eu já escrevia no São Paulo Shimbun (jornal da colônia japonesa) & as "brainstorms" que originavam as críticas nasciam com técnicos & diretores de cinema da Boca. Principalmente o Candeias, que se recusava a ir em cinema (antes da "Margem").

Meu diploma tinha sido uma curta mas fulminante liderança cineclubística no Dom Vital, onde o Zé Júlio Spiewak me apresentou o Sganzerla. O Trevisan acompanhou comigo toda essa época, pois trabalhava no Cinemateca. Era um encucado & julgava-me "sem-fundamentação", dizendo que eu era inconseqüente. O cara demorou mas se retratou e ficamos unha e carne até ele dar o grito libertário com Orgia. As Críticas do "Shimbun" continuavam. Eu ganhava uma ninharia, mas recusei sistematicamente passar para outros jornais. Só a marginalidade do "Shimbun", que eu distribuía de mão em mão, garantia a liberdade crítica. Não era critica de jornal: era crítica de cinema, crítica brasileira legítima, pois abalizada junto ao ambiente cinematográfico brasileiro, paulista em particular. Estava nascendo o JT, com página inteira de crítica, eu (§) montes ao Sganzerla crítico, ou Capovilla, conteúdista. Lima, um mineiro cinemaníaco, foi expulso do Dom Vítal, num de- bate sobre "Menino de Engenho". Os demais críticos de SP eram fantasmas. Apelidamos o Alfredo Sternheim, que se assinava "S" de "O Sombra". O Fassoni era neutrol puro, portanto saudável. O Ignácio Loyola me deu toda a promoção. O Orlando Parolini, primeiro crítico do "Shimbun", ficou de eminência parda até que assimilasse o anarquismo dele para ser eu mesmo e inclusive contestá-lo radicalmente (os anárquicos são pólvora crítica versus nitroglicerina cultural), mas até hoje o Parolini é um poeta melhor que Piva e Willer, justamente por isso perdido no anonimato.

"Pierrot le Fou", do Godard, tinha chegado com um atraso de pelo menos 7 anos no Brasil, como criação, pois eu & Parolini já tínhamos adaptado vivencialmente não só o Rimbaud, mas Lautréamont também. Deglutimos tudo antropofagicamente, antes da diluição tropicalista. A tragédia: Parolini, muito doido, destruiu em 68 o média-metragem "Via Sacra", fotografado pelo Reichenbach, então aluno da ESC. Assim, o testemunho só sobreviveu mesmo guttemberguiamente. Era a minha primeira direção. Brigas Rimbaud/ Verlaine.

O cinema nacional prosseguia de mao a piao. Godard era deus. Glauber ("Terra em Transe") era pederastia & lirismo caótico. Sganzerla, com "Luz Vermelha", não me impressionara no lançamento, mas depois passei dois anos dissecando o filme e considerei o bicho como a revolução fílmica a que eu inclusive me propusera. Tinha eclodido a Boca do Lixo como movimento. Voltei a ela, disposto a me afundar nos pântanos da rua do Triunfo. Alidado com Callegaro ("Pornógrafo"), consegui me libertar novamente: até hoje acho o filme tão bom quanto "0 Bandido". Como crítico ainda e sempre no "Shimbun" a idéia de ser um baluarte da crítica me deu grandes prazeres. Em 69/70 eu resolvi assumir Rimbaud "in totum": autoflagelação numa quitinete do Glicério para fazer a melhor crítica de cinema do Brasil. O estômago contra as costelas, anotações críticas do silêncio do cinema nacional. O Jean-Claude não escrevia mais. Pelo Trevisan, conheci-o pessoalmente. Confirmou-se o respeito. Mas a minha luta (mein kampf) era também contra ele, Realismo Crítico. Contra essa limitação, embora salvaguardando-a e aliando-se a ela dentro de um processo. Aliás é a batalha que continua com meu amigo Petri: um continuador de Jean-Claude? Claro que não, mas incorporando-o dogmaticamente. Quando, da minha parte, os dardos críticos continuam rasgando as limitações do realismo crítico. Prosseguirei a guerra até a exorcização de Oswald de Andrade, Brasileiro & antropófago, o revolucionário total. Por isso ninguém se retrata: eles ainda acham que o MacLuhan é um reacionário, coisa que não importa nele, & de lingüística sabem tanto quando a vovó cibernética de tricô. Escrevem sobre filmes sem saber que a moviola é uma teia de aranha elétrica & magnética. O Inácio Araújo é o único montador que conheço a ser ao mesmo tempo um sintetizador lingüístico & editor crítico, talento que segundo Biáfora o cinema nacional "não merece".

Como se nota, só há meia dúzia de críticos de cinema consideráveis em SP: eu, discípulo libertário e autônomo do Biáfora, e o Paulo Emílio Salles Gomes, que na década de 40 foi mestre do Biáfora e, nos anos loucos de 60, mestre do admirável Jean-Claude Bernardet, que agora tem por diluidor o caríssimo Renato Petri. Em síntese: Paulo Emílio foi o grande precursor, escreveu um livro sobre Jean Vigo para libertar-se ("exorcismo"), e sabemos muito bem quem foi o avô Vigo novecentista, tanto quanto ignoramos o Zelão, pai do Hélio Oiticica. A crítica de cinema, nesta paulicéia nada desvairada, nasceu com Paulo Emílio e poderá morrer comigo, gerações extremas de uma anarquia crítica. Os demais críticos trabalhadores & bem intencionados inclusive são sucata jornalística, portanto não consideráveis cinematograficamente.

(Cinegrafia, número 1, julho de 1974)