11.7.07

O iconoclasta Eizo Sugawa

JAIRO FERREIRA

"Caça às Feras" (1973) é o último exemplar de uma trilogia eclética que o diretor japonês Eizo Sugawa, nascido em 1930, inaugurou com o eletrizante "Morte à Fera" (1959) e desenvolveu com o também inquietante "Na Trilha das Feras" (1964), "thrillers" niilistas que dissecavam implacavelmente as mazelas da primeira arrancada industrial no Japão ainda convalescente dos traumas pós-Segunda Guerra Mundial.

Em "Morte à Fera", Sugawa apresenta o seu deflagrador personagem principal, Date Kun (brilhante interpretação de Tatsuya Nakadai), como um novo tipo de assassino que iria surgir nos grandes centros urbanos. Há uma discussão entre professores de uma universidade sobre o assunto ao mesmo tempo em que um robô em miniatura passeia sinistramente pela mesa. O poeta Rimbaud não é citado, mas ali estava uma de suas máximas devidamente adaptada aos primórdios da cibernética: "Eis aqui o tempo dos assassinos".

Date Kun age impulsivamente. Sua trajetória de crimes começa com a explosão de uma bomba de fabricação caseira no campus da universidade. O personagem é um inconformista, um revoltado, um terrorista. O que faz é contestar radicalmente um sistema no qual não vê perspectivas. E a abordagem existencial de Eizo Sugawa deixa evidente a sua empatia com esse anti-herói ao mesmo tempo em que a ação da polícia é minimizada.

Numa época em que predominavam as aventuras de samurai e os melodramas exacerbados, "Morte à Fera" era uma exceção no cinema japonês. Mas logo se viu que Eizo Sugawa não estava só. Seu terrorista era Yoshio Shirazaka, o mesmo de "A Fera Azul", de Hiromichi Horikawa, onde Tatsuya Nakadai interpreta uma variante do já célebre Date Kun. Outra sintonia é com Nagisa Oshima que realizaria o libelo "Juventude Desenfreada" (1960) e o anárquico "O Túmulo do Sol" (1964).

Temas diversificados

Antes de realizar o segundo exemplar da trilogia das "Feras", Sugawa ampliou os horizontes de seu niilismo com filmes diversificados: "Arma Fatídica" (1960), sobre suicídio; "Desafio à Vida" (1961), reminiscências da Segunda Guerra Mundial; "Aquela Mulher de Osaka" (1962), com uma bela Heiko Dan vivendo uma feminista que se revolta contra a massificação do trabalho numa fábrica de produtos em série. Houve ainda outra boa dose de desencanto com "Liberdade sem Esperança" (1962), sátira cruel em torno da instituição do casamento.

Esses filmes chegavam regularmente aos cinemas de São Paulo. Sua estética era um coquetel de invenção plano a plano, sempre com cortes de impacto, utilização criativa da tela cinemascope, ritmo narrativo de rara fluidez.

No livro "O Filme Japonês" (1963), editado pelo Grupo de Estudos Fílmicos, o poeta Orlando Parolini define o contexto do cineasta:

"Chamam-no comumente de niilista. Seu niilismo, no entanto, parte de um ponto em que para ele, Eizo Sugawa, as doutrinas sociais ou religiosas já contribuíram com tudo o que poderiam contribuir e, se da aplicação delas poderão ainda surgir outros efeitos benéficos, estes virão demasiadamente lentos. Nós não podemos esperá-los''.

Radiografia da perversão

Eizo Sugawa não via saídas para o homem urbano. Quando se pensava que ele tivesse esgotado o assunto, surge uma nova radiografia da perversão: "Na Trilha das Feras" (1964), segundo exemplar da trilogia de "thrillers", lançado em São Paulo em outubro de 1966. A escalada industrial japonesa, vista por dentro, era o ponto de partida. Os personagens são "big shots", espiões industriais e proxenetas. O filme é uma denúncia de corrupção, uma espécie de anátema, sem qualquer moralismo e também sem qualquer esperança. Sugawa não poupou críticas à esquerda japonesa, no caso pulverizando um industrial corrupto que, na juventude, foi líder estudantil. "Na Trilha das Feras" tem muitos pontos de contato com "Homem Mau Dorme Bem" (1960), de Akira Kurosawa, mas sem a crueza de Sugawa que conclui o filme com um personagem sendo incendiado com gasolina numa banheira.

Retorno ao niilismo

Os ventos não estavam favoráveis, no fim dos anos 60, ao niilismo de Eizo Sugawa, que sobreviveu dirigindo filmes de encomenda. O retorno a seu tema predileto se deu com "Caça às Feras", filme que encerrou a sua trilogia das "Feras" e o penúltimo que realizou antes de se afastar dos estúdios com "Volúpia da Vingança" (1974).



"Caça às Feras" gira em torno de um seqüestro nada convencional. Uma organização terrorista seqüestra o presidente de uma fábrica de refrigerantes, a "Pop-Cola", exigindo em troca da libertação a publicação da fórmula do produto pelos jornais. A matriz em Nova York tenta solucionar o caso com dinheiro, o que complica a situação.

O Japão tinha mudado muito entre 1959 e 1973. Eizo Sugawa não sustentou até o fim a sua tese ou axioma de que o crime compensa. Se "Caça às Feras" tivesse sido realizado nos anos 60, a polícia certamente seria ludibriada pelos seqüestradores. Restou então a impressão de que o filme é uma retratação de Eizo Sugawa diante da polícia de seu país. Irônico epílogo para um cineasta iconoclasta que ousou demolir as instituições japonesas enquanto isso foi possível.

(Folha de S. Paulo, 21 de dezembro de 1986)