18.2.07

Um feitiço decente no ciclo de Sganzerla

JAIRO FERREIRA

De hoje a domingo próximo, o Cine Clube CAAE da Fundação Getúlio Vargas estará apresentando a primeira mostra menos incompleta do cinema de Rogério Sganzerla (colaborador da Folha) de quem já se viu muito mas não suficientemente "O Bandido da Luz Vermelha" (68) e "A Mulher de Todos" (69), respectivamente amanhã, às 21 horas, e Sábado, no mesmo horário.

Não suficientemente porque agora é preciso relacionar esses dois marcos no experimental contemporâneo ao quase mitológico "Sem essa Aranha" (70, amanhã em duas sessões, às 19 e 21 horas), ao inédito e certamente revelador "Mudança de Hendrix" (80, hoje Às 19 horas) e ao subestimados fantástico e paleolítico "O Abismu" (Domingo em dus sessões, Às 19 e 21 horas).


Podemos começar por qualquer um eles, pois em Rogério tudo é uma coisa só e isso seria tudo ("toda revolução nasce e termina na mente, livre ou não"). Mas o que seria é serial e isso é muito sério: um psicanalista diria que há um Rogério em cada filme e que quem fez um não poderia Ter feito o outro. "O Bandido" é muito diferente da "Mulher de Todos", este não tem nada a ver com "O Abismu", "Mudança de Hendrix" retoma "O Bandido", mas "Sem Essa Aranha" é outro papo. Seria isto: todos seus filmes são diferentes um do outro, mas por isso mesmo iguais. Uma coisa só, mas muito grande, multifacetada ou não, capaz de agitar a imaginação do estudioso como nenhum cineasta brasileiro conseguiu e isso num terreno inexplorado, instigante: não é exagero dizer que Rogério Sganzerla é o Orson Welles brasileiro e eu poderia escrever horrores comparando a filmografia de um e outro.

Começaria pelo "Bandido" que está para "Cidadão Kane" como "A Mulher de Todos" para "A Dama de Xangai". O encontro ambos, inclusive, já existe em correspondências e nos copiões avançados do filme que Rogério está realizando atualmente, "Toda a Verdade" (título provisório para "Its All True"/42 de Welles). Só não sei se "O Estranho" de Welles equivale ao "Abismu" ou à "Copacabana Mon Amour", lances menos geniais de Rogério, que me forneceu um texto inédito sobre "O Bandido":

"O que me fez rodar esse monstruoso painel do subdesenvolvido submundo político-social seria o impulso de Welles (em todo sentido o maior cineasta do Ocidente) em "Touch of Evil" ("A Marca da Maldade") em tudo dizer sem dizer nada, observar o essencial: discutir as relações do homem e do Estado, quer dizer, o homem e ele mesmo – sua mente, o verdadeiro problema (onde começa e termina qualquer revolução) – o outro (novo) homem, a humanidade".

"O lado policial narrado por um locutor esportivo já ficou óbvio para quem acompanhou os casos Nixon e Médici, mas para uma boa porcentagem da platéia é preciso ainda fazer engolir certas verdades essenciais, como por exemplo quem realmente acompanhou certos descasos de 68 para cá sabe que em política como em qualquer outra coisa o feitiço pode virar contra o (mau) feiticeiro. Sobretudo se ele não sabe fazer feitiço decente que prende a gente, sem vela vintém – caso de quase totalidade da direita ocidental e da esquerda – paradoxalmente – por enquanto também".

"Aos 22 anos não tive parcela do que precisava nem a necessária habilidade para trabalhar e encaixar os múltiplos fragmentos de um painel radiofônico vomitado – documentário tendendo ao cinejornal de 90 minutos sobre, no fundo, hoje assim me parece, um mal digerido e enjoativo enjôo de um jogo de futebol mal transmitido: a primeira idéia surgiu com o impulso e fazer um filme policial narrado por um comentarista esportivo – e não foi nisso que o Brasil virou?"

"Depois do policialesco tentei fazer uma chanchada mas acabei realizando uma aventura pornográfica" (já entramos em "A Mulher de Todos") "em homenagem às fitas alemãs ou suecas classe B: outro filem pejorativo cujo estilo obsceno serve pare melhor retratar nossa realidade – não por moralismo mas por ideologia. Em termos de "mise-en-scéne", "A Mulher" corresponde ao meu primeiro curta-metragem, "Documentário"/67, baseado na concisão e simplicidade do tema em questão. Gosto de filmar com a câmera fixa, admito travellings elucidativos, aprecio panorâmicas didáticas, sem artifícios. Prefiro os longos silêncios, a música em baixo volume. Evidentemente "O Bandido" era o contrário disso tudo porque trata-se de uma inspiração violenta, espanto e agitação diante da realidade (...) Depois de ter visto alguns filmes sobre mulheres (Rogério se refere, entre outros, às "Libertinas"/68, de Carlos Reichenbach, Antônio Lima e João Callegaro, precursores da pornochanchada) resolvi fazer também, para tentar provar que o gênero não é necessariamente medíocre. O assunto não importa muito, o que vale é o tratamento".

A última frase do parágrafo acima já foi pronunciada por Hitchcock, diriam. Mas eu não estou tentando provar que Rogério Sganzerla é um inovador. Ao contrário, ele é o "João Ninguém" de Noel Rosa. Só sendo Ninguém pode se tornar alguém ou, como escreveu numa de suas crônicas recentes aqui na Folha, "não sou alguém, sou ninguém, isto é, sou eu e Deus e mais uma partícula o pensamento revlucionário que não se conforma com a simples instrução das aparências".
Ou seja, não há nada de novo no cinema internacional pós-68. O que há é uma sintonia visionária, entre Rogério e Godard ("Salve-se quem Puder"/80 era título de um artigo meu de 71 no São Paulo Shimbun, retomado em crônica do cineasta na Folha, então sintonizado em Hendirx, "Fora dele não há salvação").

Ainda não assisti "Mudança de Hendrix", mas conheço "Sem essa Aranha" desde 78, quando foi exibido pela primeira vez publicamente na memorável mostra "Horror Nacional" do Festival de Brasília. Trata-se de apenas uma das sete maravilhas da produtora Belair que, entre janeiro e março de 70, surgiu como um abalo clandestino no depauperado cinema nacional. Aí está a fenda que abertura nenhuma trouxe à tona. Uma ponta desse iceberg se revela agora, 10 anos depois de tudo que acabou, ou melhor, imortalizou-se em película historicamente revolucionária.

"Filme de interrogação sem respostas culturais, ‘Sem Essa Aranha’ pretende refletir a realidade nacional através da deformação obscena do cinema em cinema nacional, da liberdade platônica sonhada pelo ideário poético de guerreiros gregos em simplesmente terror-de-esquina, da mensagem em piada sórdida, do golpe na gargalhada impessoal com a consciência do som péssimo, atores ruins, exploração e cinema brasileiro. Enfim, meus filmes são antes de tudo óbvias autocríticas que os intelectuais jamais poderão entender; meus filmes são seus próprios defeitos; meus filmes são aquilo que a produção não conseguiu; meus filmes são exata e concretamente aquilo que nunca poderei filmar porque como todo mundo sabe o cinema brasileiro é o máximo porque é impossível".

(Folha de S. Paulo, 12 de junho de 1980)