O terror invade o pornô
Há um ano atrás, os jornais norte-americanos deram grande destaque a um filme que estava em exibição especial nas salas de Nova York, com ingressos que chegavam a custar até 500 dólares. Esse filme, chamado simplesmente "Snuff", estava lançando uma nova moda, destinada a incrementar a violência no cinema, como se isso ainda fosse possível depois dos famosos "banhos de sangue" de Sam Peckinpah, cujos orçamentos são calculados por litros de sangue (400 em média por cada filme).
Tudo podia ser mera publicidade, mas pouco ficou decidido até o momento. Os distribuidores alegam que não sabem nada sobre a produção de "Snuff", pois limitam-se a distribuir o produto. O filme não é assinado por ninguém e não há nome de atores ou técnicos. A única palavra que aparece na tela – em letras vermelhas, é claro – é Snuff, que vem da gíria norte-americana e, traduzida em gíria carioca, deve significar "apagar", ou seja, matar realmente as vítimas.
Enquanto o filme continua faturando, surgem diversas versões sobre sua procedência. Há muita especulação em torno do caso, mas já é certo que foi filmado num país da América Latina, a Argentina. Os produtores, entretanto, são norte-americanos e, segundo os jornais de lá, vieram filmar na Argentina devido às facilidades para escapar a um possível cerco policial e só estão exibindo o filme nos EUA porque aí é mais fácil se defender das acusações. Enfim, uma transação perfeita.
Com base nessas informações, surge o primeiro filme nesse estilo no Brasil: "Snuff – Vítimas do Prazer", de Cláudio Cunha, cujo stand já está exposto em frente ao Cine Marabá, que está exibindo "A Profecia". Nas telas, o público pode ver o "avant-trailler" do filme, composto de entrevistas com espectadores à porta do próprio cinema. O entrevistador pergunta: "O que você faria se assistisse um filme onde as pessoas morrem de verdade?". As respostas são as mais variadas e, entre a mais tipicamente brasileira, destaca-se um espectador que responde: "Eu acho sensacional, desde que tenha mulher pelada".
Cláudio Cunha, diretor de "Snuff – Vítimas do Prazer", explica seu filme: "É a história de dois produtores de filmes clandestinos que pretendem realizar um filme no gênero snuff no Brasil. Eles chegam aqui e contratam a equipe técnica, visitam as bocas do lixo e do luxo, procurando as atrizes e vão envolvendo elementos de uma pequena produtora local. E, no filme que eles começam a fazer, as mortes acontecem realmente. Quer dizer, não matamos ninguém, embora nossas cenas tenham sido filmadas com um realismo impressionante".
Cláudio Cunha começou no cinema como diretor de pornochanchada ("O Clube das Infiéis", 1973), passando logo a um filme de melhor nível: "O Dia em que o Santo Pecou" (1976). Ao mesmo tempo em que cuida de um posto de gasolina, "de onde tiro o dinheiro para fazer cinema, quer confessa também que "Snuff – Vítimas do Prazer", é seu filme mais importante até o momento. E ele explica o que lhe atraiu nesse projeto:
- Ao longo de sua história, o cinema sempre namorou a morte, quero dizer a morte verdadeira, sem truques, sem cortes. Quem não se emocionou com o documentário "Corações e Mentes", que atinge seu ápice dramático na cena de execução do prisioneiro vietcong? Quem não teria ficado constrangido ao ver as chacinas filmadas pelo segregacionista Jacopetti em "África, Adeus"? Quem não se estarreceu com as imagens do cinegrafista que, documentando batidas de tropas militares no Chile, acabou filmando sua própria morte? Entretanto, o fato mais abominável, registrado propositadamente por uma câmera, ocorreu recentemente. Basta lembrar que, há uns dois meses atrás, durante uma exibição de "Snuff", em Nova York, os estudantes sul-americanso resolveram fazer uma passeata em frente ao cinema, com cartazes e faixas em que se liam frases no estilo "Na América Latina a vida não vale nada".
Para fazer o roteiro de "Snuff – Vítimas do Prazer", Cláudio Cunha convidou Carlos Reichenbach, também diretor de cinema, responsável por "Lilian M – Confissões Amorosas" (1975), um dos melhores filmes brasileiros sobre a prostituição e suas transfigurações sociais, na linha crítica de "A Mulher de Todos" (1969), de Rogério Sganzerla, e "As Escandalosas" (1971), de Miguel Borges. E Carlos Reichenbach se entusiasmou com o roteiro de "Snuff – Vítimas do Prazer":
- O que me atraiu no roteiro foi a possibilidade de exercitar o chamado metacinema, ou seja, o cinema que fala do cinema, desnudando-se a si mesmo e se desmascarando na frente do público. Por isso discutimos muito, eu e o Cláudio, sobre o cinema norte-americano, sobre as produções classe B, Samuel Fuller, Norma Foster, Robert Gordon, Don Siegel, Budd Boetticher e outros diretores que sempre estiveram mais ou menos marginalizados. E discutimos principalmente sobre as multinacionais do cinema e seu relacionamento com os países da América Latina. Fizemos um levantamento de dados, onde vimos que eles são sempre paternalistas e, quando filmam por aqui, estão interessados em usar o baixo preço da mão de obra e o material humano. Em "Snuff", quero dizer, o tal filme americano, a utilização do material humano chegou ao ponto extremo: a morte verídica. Resolvemos então fazer um filme inspirado nisso, mas basicamente um filme denúncia.
"Snuff – Vítimas do Prazer", que entrará em cartaz no Cine Marabá depois de "A Profecia", acompanha a trajetória inescrupulosa de dois produtores, Michael Tracy (Hugo Bidet) e Bob Channing (Fernando Reski), que estão dispostos a realizar um snuff no Brasil, mas alegam que se trata simplesmente de um filme pornográfico para o mercado europeu. Eles contratam técnicos na Boca do Lixo e, entre as noitada nas boites, falam desbragadamente em inglês, deixando os técnicos e atrizes sem entender nada. Carlos Reichenbach comenta:
- Cláudio Cunha aproveitou integralmente as idéias do roteiro e foi muito feliz utilizando legendas nas seqüências em que os dois impostores falam em inglês. É um excelente forma de denunciar a malandragem que está por baixo das multinacionais do cinema, além de dar um aspecto altamente crítico a um filme nacional, pois já fizemos até um teste e, nas seqüências faladas em inglês com legendas, o público pensa realmente que está assistindo a um filme norte-americano. No entanto, trata-se de um filme brasileiro.
Utilizando ainda o esquema da pornochanchada, já que não faltam mulheres nuas no filme (Rossana Ghessa, Nadyr Fernandes, Lúcia Alvin, Patrícia Celere, Fátima de Jesus), "Snuff – Vítimas do Prazer" termina realizando o que se pode chamar de casamento de pornochanchada com o cinema de terror. Cláudio Cunha não gosta de falar em pornochanchada:
- Meu filme não tem nada a ver com pornochanchada. Fiz um filme sério, tratando de fatos que estão acontecendo. Não quis fazer um filme para divertir, mas principalmente para mexer com as emoções do espectador. Eu acho que o cinema vive basicamente de emoções e, se há mulheres nuas aqui ou ali é porque elas de fato estão em toda parte. Mas o desenvolvimento do filme vai indo em ritmo de suspense cada vez maior. Por isso não vamos permitir a entrada de espectadores nos últimos 15 minutos de projeção, pois essa é a única forma de deixar o espectador sentir maiores emoções sem interferências de pessoas que entram e saem. E lógico que, quem quiser poderá sair antes. Mas duvidamos que isso aconteça.
Carlos Reichenbach, que deverá iniciar brevemente seu novo longa-metragem, "Bandidas e Safados", afirma que seu trabalho como co-roteirista é o primeiro que o satisfez por completo, ao contrário de outro trabalho no gênero, feito pra Roberto Mauro, que "pegou um argumento meu e modificou completamente, eliminando tudo que havia de bom". E acrescenta: "Com Cláudio Cunha fizemos realmente roteiro de cinema. Passamos dias discutindo filmes como "Trama Diabólica", de William Castle, ou "O Sol por Testemunha" de René Clair. O resultado foi um trabalho de deglutição, isto é, criação em cima de filmes de cinema. Por isso não vou adiantar mais nada. Espero o momento em que o filme irá entrar em cartaz para ver a platéia se assustar".
Jairo Ferreira
(Folha de S. Paulo, 2 de março de 1977)
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opa
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