25.2.07

Julio Bressane, rebelde da América

JAIRO FERREIRA

O experimental no cinema brasileiro é jóia rara, pérola crítica rodeada de inocência por quase todos os lados. A frase é uma tentativa de exprimir o que não é fácil, o que não pode ser definido aristotélica, acidental ou ocidentalmente. No Brasil, com generosidade inclusive, o que não é fácil existe e resiste. Aqui só não existe cinema experimental – existe, contudo, o experimental no cinema brasileiro.


O parágrafo acima me parece uma boa forma de anunciar, sem clarim mas com clareza, algo inédito entre nós: a primeira mostra quase completa dos filmes de Julio Bressane, cineasta de muitos paradoxos, do culto e do oculto e de muitos outros trocadilhos que exigem, no mínimo, algum talento para a poesia concreta. Quem organizou? O Cine Clube CAAE da Fundação Getúlio Vargas. Quando começa? Dia 30 às 20 horas? Qual o primeiro e o último filme a serem exibidos? "O Anjo Nasceu" abre e fecha o ciclo, não gratuitamente: "fechar é abri", diz Bressane, mas é bom que não se tire muitas ilações políticas da frase.

Permeando a abertura e a fechadura, serão exibidos mais onze longa-metragens de invenção, sendo dois inéditos em todo o território ("Cuidado Madame"/1970 e "Amor Louco"/1971). Sobre esse filmes muito falados, embora alguns sejam quase mudos, sendo todos pouco vistos, mas nada de definitivo será dito nesta matéria, uma leve introdução aos filmes de Bressane. Isso porque ninguém está habilitado, nem mesmo o próprio cineasta, a falar de seus filmes sem assisti-los no mínimo cinco vezes cada um e, no máximo, quantas conseguir (esses filmes viciam). "O importante é rever", costuma dizer o autor. Sua obra e sua personalidade estão entre as mais originais de todo o cinema:

- O importante em arte é exprimir – o que exprime não tem importância. Eu nasci no Rio do Cão. Tudo que fiz em cinema foi no sentido de ter e dar prazer. E também um voraz apetite por obstáculos. O criar como o ler é uma operação militar. Filmes raros e extraordinários, como "Limite", podem ser feitos cinco por ano e não um em 50 anos. Cinema é sonho – a arte do futuro é a arte do sonho. O melhor cinema é feito por aquele que mais sonhar.

- Dizem algumas línguas que, no cinema brasileiro, a maldade é grande e a inteligência não é notável. Será assim? Até agora toda minha trajetória cinematográfica numa remoção de entulho ancestral. Numa poda drástica! Eu, Julinho Bressane, todas as épocas no meu cérebro, saúdo os criados de todas as raças. Evohé!

Não é exatamente assim – é mais ou menos assim que se expressa Bressane. Seus textos são raros e quase impublicáveis no ritmo normal da imprensa diária, uma das razões pela qual praticamente não dá entrevista (" não ser inter-vírus"). Prefere a conversa generosa e sempre inquietante, o que ele chama de "batuque dos astros", uma caminha rumo ao Sétimo Céu, morro carioca de vista aprazível, mágica. Aí ele diz o que nunca disse e deixa qualquer um preocupado: "Pois é: conversamos sobre tudo isso, mas o importante é o que ficou por dizer". Isso é subjetivo, claro, pressupondo que restou algo de muito concreto:

- O cinema experimental pede anistia! O cinema experimental quer ocupar espaço. O filme que desenterrou o cinema experimental no Brasil foi "O Anjo Nasceu".

- Arte é imitação – imitação de um processo da natureza – não cópia. Arte é deformação – é anormalidade: arte é conflito.

- Cinema pornô? Eu sou por um cinema erótico. O que não se pode confundir é erotismo com essa rede de onanismo picareta que vem constituindo a mente cinematográfica contemporânea. Penso que hoje em dia vale menos a Dulcinéia do que a Dulce nua.

Em janeiro de 1970, juntamente com Rogério Sganzerla, Bressane fundou a Bel Air, produtora que realizaria 5 filmes, entre os quais "Cuidado Madame", dele, e "Sem Essa Aranha", de Sganzerla. Por enquanto só vi esses dois e confirmei a expectativa: são o experimental por excelência no cinema, mas por isso mesmo passa a ser. Esses dois filmes não estão no gibi, não constam nos almanaques Do INC ou da Embrafilme. No filme de Sganzerla, inclusive, Helena Ignez exibe um mapa esfarrapado onde não consta o Brasil, como se os ratos tivessem roído o papel. A Bel Air foi "um terremoto clandestino que sismógrafo algum registrou":

- A transgressão, a rachadura que é a Bel Air ainda não foi examinada devidamente. Os filmes não chegaram ao público. Continuam numa cortina de silêncio. A Bel Air é uma lufada de ar novo na atmosfera anestesiada e vacilante do cinema brasileiro.

- Os filmes da Bel Air tiveram seu acesso às salas de exibição proibido. Entretanto, foram esses filmes que transformaram o panorama dos produtores que fazem cinema. Todo este ar novo quem trouxe e gerou foi a Bel Air, terremoto clandestino, vento que sopra de uma pátria cinematográfica futura. O cinema nacional está de olho no sucesso – o cinema experimental está de olho na sucessão.

Há muito mais uma censura estética do que policial em torno dos filmes de Bressane. Em 1970, o INC implicou com "O Anjo Nasceu" e "Matou a Família e Foi ao Cinema" porque ambos foram rodados em 16mm e ampliados posteriormente. Comentarista oficiosos torceram o nariz à sintaxe revolucionária do cineasta, repetindo a intolerância histórica.: o artista que ousa alterar estruturas de linguagem e narrativa nunca é bem visto em sua época. Curiosamente, 7 anos depois, a Embrafilme iria incorporar gloriosamente em seu cartaz "Nosso Cinema – 80 Anos Depois" uma frase curiosa de Bressane: "Nós estamos fazendo os melhores filmes do mundo e vocês não estão entendendo nada". Bressane fala como filma, ideogramicamente. Não faz discurso – fala por aforismos:

- A arte abola o fato pessoal. Esse é o negócio. Não ser um – ser vários. O que interessa é o multipessoal e o pluri-subjetivo. Ver é ver: isso é lapidar e poderia ser um aforismo Bel Air. Arte é interpretação individual de uma sensação geral.

- Pelo que é se sabe o que não é. O que interessa é o que não é. E como a fala que a gente fala – o que interessa é o que não se fala. Interessa o que não aparece, não o que deixamos no papel, mas o que permanece secretamente fora dele.

- Cinema é coisa de especialista. E melhor ser um poeta capaz de ser 500 do que 500 que possam ser um só. Não há essa de pior ou melhor. O que foi feito – tudo – conta: existe. Devorar é romper. Só rompe realmente quem conhece a causa, com conhecimento de causa.

Entre os filmes que serão exibidos, "Amor Louco" ("Crazy Love"/1971) é um dos mais cinematográficos. Trata-se de uma espécie de operação de catarata na linguagem do cinema. Guará auto-opera seu próprio olho com uma faca e, em seguida, há uma operação na lente da câmera, tudo passando a ser visto numa nova perspectiva. O que Bressane faz com um espelho não tem precedentes no cinema: o plano compreendido como montagem. Cinema cosmológico: a câmera, o tripé, o fotógrafo e o diretor integrados em planos-sequência já montados no ato de filmar. Cada plano começa e termina onde começou. Vem daí a frase de Bressane: "fechar é abrir".

Sobre "A Família do Barulho" (1970), produção Bel Air, Torquato Neto escreveu: "Utilização eficaz (inovadora) da linguagem do cinema. Montagem absolutamente não discursiva. Um plano é um plano. Guará, Helena, Otelo, Kleber, Poty: preferência nacional. Unidade total a partir do aproveitamento malandro do indivíduo – ator sob/sobre o personagem. Cinema de invenção. Originalidade para o mundo. Do lado de fora do concurso etário quem é mais brasileiro aqui?".

"Memória de um Estrangulador de Loiras" (1971), a exemplo de "Crazy Love" (nada a ver com a canção de Paul Anka), também influenciou cineastas ingleses, invertendo o fluxo do colonialismo cultural, como Orson Welles já havia feito em 1942, quando aqui esteve filmando o morro, o carnaval, os jangadeiros, Grande Otelo e a praias de Salvador ao Rio. Welles não conseguiu terminar seu filme, "It’s All True", uma "bad trip", mas disse: "Um dia eu voltarei". Bressane também poderia dizer: Um dia eu voltarei a Londres". Sganzerla está tentando realizar "Toda a vedade", reconstituindo toda essa história, alterando a visão que se tem do cinema brasileiro. Aliás, é impossível falar de Bressane sem falar de Sganzerla. Há um ano atrás, Bressane me disse que tinha assistido 12 vezes "Verdade e Mentiras" de Orson Welles.

A curva sensitométrica da filmografia de Bressane parece Ter atingido um limite com "O Rei do Baralho" (1973), ensaio sobre a chanchada, ou melhor, meta-chanchada, pois a velha chanchada já era meta-cinema, parodiando o cinema estrangeiro. O filme se passa nos estúdios da Cinédia, um capítulo fundamental da história do cinema brasileiro incorporado a outro capítulo chave do experimental nacional, já que "O Rei do Baralho" é uma espécie de lance de dados mallarmaico na mitologia da chanchada, gênero neo-síntese da originalidade brasileira.

"O Anjo Nasceu" é estruturado a partir do Cinematógrafo Lumière. Primórdios da invenção do século. Um filme em branco e preto, onde os personagens são signos da película: o branco (Hugo Carvana) e o preto (Milton Gonçalves), marginais líricos e cafajestes. Glauber Rocha costuma reivindicar para si essa invenção, alegando que já tinha feito isso em "Câncer" 9agosto de 1968). Do Cinema Novo, Glauber é o único grande cineasta experimental, respeitadíssimo por Bressane e Sganzerla, não havendo motivo para discussões no gênero "eu fiz primeiro". Bressane faz questão de esclarecer, porém, que seu atual "O Gigante da América" não é nenhuma resposta à "Idade da terra", que Glauber está concluindo.

Recentemente estive nos estúdios da Magnus Filmes, asssitindo as filmagens de "O Gigante da América", o primeiro filme que Bressane faz com financiamenteo da Embrafilme. Acompanhei a seqüência de um baile babilônico, feita sobre o principal cenário de "Intolerância", de Griffith que, como se sabe, foi um dos mitos do Orson Welles cinéfilo. Do roteiro, 30 páginas que mais parecem um poema de Mallarmé, retirei algumas pérolas: "O verdadeiro implica o falso. Eu sou absurdo pelo que procuro e grande pelo que encontro. O barco do sonho não tem porto. As buscas insensatas são parentes das descobertas imprevistas. O papel do inexistente existe". Bressane me mostrou o cenário dessa "intolerância nacional" e sentenciou: "Pitangueiras não dá manga", aforismo, aliás, dito no filme por um dos personagens.

Como José Mojica Marins, Orson Welles, Rogério Sganzerla, Glauber Rocha e outros poucos cineastas americanos (do Norte ou do Sul), Julio Bressane pertence a uma raça em extinção: a raça dos rebeldes da América. Em tempo: Jean-Luc Godard e Jean-Marie Straub, baluartes do experimental, também são rebeldes, mas da Europa.

(Folha de S. Paulo, 30 de março de 1979)