18.5.07

Os mundos paralelos de Khouri

JAIRO FERREIRA

"As Filhas do Fogo", de Walter Hugo Khouri, a mais inaudita e inquietante experiência na área do horror poético, desde que José Mojica Marins inventou o gênero no cinema nacional (seu filme "Ritual dos Sádicos", em 1969, continua proibido pela Censura), estréia hoje nos cines Ipiranga 1, Astor, Center, Top Cine, Cinesparcial e Paissandu/Sala Independência. De saída, porém, é bom esclarecer que o único ponto comum entre um cineasta e outro é o horror poético, mas com uma diferença fundamental: Mojica faz horror grosso, Khouri fez um horror finíssimo. Khouri sempre foi um intelectual:

– O meu fascínio pelo clima fantástico, pelo irreal, pelo estranho e pelo insólito vem desde as minhas leituras de infância e continuou pela adolescência e pela idade adulta, aí já abrangendo todos os domínios da arte literatura, artes plásticas em geral e, naturalmente, cinema. Desde muito cedo me familiarizei e me apaixonei também por autores como Edgar Allan Poe, Henry James, Hawthorne, Sheridan Le Fanú e também Kafka, Borges, Lovecraft, além de uma infinidade de outros, abrangendo todos os gêneros possíveis. Lembro me perfeitamente que uma das minhas primeiras experiências de adaptação cinematográfica, escrita aos 17 anos, foi feita sobre o conto "O Gato Preto", de Alan Poe.

Apesar dessas influências confessas, "As Filhas do Fogo" está muito mais para Tomu Uchida do que para a literatura fantástica. Uchida é o maior cineasta japonês de todos os tempos e um dos dez maiores do cinema em geral, mas nem mesmo a crítica francesa descobriu isso ainda, o que deverá acontecer brevemente (no momento eles estão descobrindo Yazujiro Ozu, Teinosuke Kinugasa e Kenji Mizoguchi). Khouri e alguns poucos cinéfilos paulistas tiveram a sorte de assistir tudo de Uchida em São Paulo, nos bons tempos do cinema japonês: "Espada Diabólica", nina trilogia de cair o queixo, "Miyamoto Musashi", sobre o espadachim Zen e ainda "Estranho Amor" e outras obras primas que não voltam mais. A parapsicologia, ciência recente, já estava em forma poética em todos esses filmes, mas Khouri pesquisou também fora da área cinematográfica:

– Com o advento da divulgação em âmbito mundial das experiências de Parapsicologia, os experimentos de Rhine, a moda de Jung e inúmeros outros fatores, o gênero ampliou-se e adquiriu mesmo certas características científicas, sem perder, contudo, a sua aura de mistério, de fantasia, de terror e de transcendência. O fantástico e o sobrenatural passaram a ser encarados sob novas formas, as pesquisas ampliaram-se, gente considerada "séria" passou a se interessar por esses assuntos, mas a Poesia essencial, a magia e o "firisson" que envolve todos esses fenômenos continuaram a prevalecer sobre tudo.


– Dentre as novas pesquisas surgidas e divulgadas em anos mais recentes (apesar de sua origem remontar há muito tempo) a que mais me fascinou foi a que se refere ao registro de vozes de pessoas aparentemente mortas em gravadores de fita magnética. A conjunção de um elemento de alta tecnologia eletrônica e de um fenômeno parapsicológico marcante e estranho me pareceu algo fascinante e aterrador.

– Comecei a estudar o assunto, com enorme curiosidade. Tomei conhecimento das primeiras experiências do pintor sueco Friedrich Jurgensson, que começaram quase acidentalmente, das pesquisas importantíssimas de Konstantin Raudive e também dos brasileiros como Hilda Hilst, George Magyary e outros, além das excelentes reportagens da revista "Planeta". O livro "Carry on Talking" ("Os Espíritos Comunicam-se por Gravadores"), de Peter Bander, também foi muito importante para ampliar o meu conhecimento do assunto e das bases cientificas das experimentações. Mas, acima de tudo, o que mais me interessou foram as lições transcendentais e filosóficas que as experiências com as vozes e os gravadores propunham. Problemas relacionados com a morte, com o tempo, com o espaço e com a própria essência da existência humana.

– Foi ai que me veio a idéia de realizar um filme em que esses fenômenos estivessem inseridos, de forma dramática e funcional evidentemente, sem nenhuma pretensão científica ou sectária. Foi sempre minha intenção captar o sentido poético e trágico que o fenômeno das vozes de pessoas mortas registradas em aparelhos eletrônicos sugere. E a partir dessa posição concebi uma história de clima fantástico e atemporal, onde as épocas e os acontecimentos se misturam e se sucedem em sincronicidade, ampliando assim o espectro dos fenômenos parapsicológicos além do registro das vozes. Assim também a premonição, os universos paralelos, os elementais, a percepção extra-sensorial e muitos outros fenômenos coexistentes no filme, num clima de fantasia poética e mórbida, envolvendo todos os personagens.

"As Filhas do Fogo" foi lançado experimentalmente em Curitiba, cidade experimental em muitos outros setores, batendo todos os recordes de bilheteria do cinema nacional. O fato foi atribuído ao tema do filme, parapsicologia. É a primeira vez que um filme brasileiro entra de sola no assunto, pisa firme na linguagem e mergulha no horror poético de corpo e alma. O filme deverá estourar também em São Paulo, mas, a julgar pelas reações do Festival de Gramado, onde foi exibido "hors concours", "por questão de ética, já que foi filmado nessa cidade", será malhado impiedosamente pela mesma critica que sempre pichou todos os outros filmes do cineasta (15, antes deste).


"O filme é totalmente vazio", "não tem conteúdo", "é um sonífero" e outros lugares comuns. O cineasta nunca respondeu a essas "acusações" e, desta vez, continuará não respondendo. Sobre a crítica, de uma forma geral, Khouri diz o seguinte: "ela ainda não aprendeu a distinguir o que é assunto, tema, conteúdo, estilo, linguagem e narrativa".

Como já assisti ao filme, devo lançar ao ar alguns dados que poderão ser úteis às discussões que ele deflagrará. Não sou suspeito para falar, porque nunca fui entusiasta dos filmes de Khouri. Gostei apenas de "Noite Vazia", "O Anjo da Noite" e "O Corpo Ardente", mas acho "As Filhas do Fogo" disparadamente seu melhor filme. Os que acusam o cineasta de ser "vazio" são nada mais do que "patrulheiros ideológicos", que já existiam muito antes dessa expressão, diga-se de passagem. Vazios são esses patrulheiros, que cobram de um artista como Khouri o que eles mesmos não têm: talento, antes de mais nada. E, se falam tanto em "vazio", pressupõe-se que há filmes "cheios". E de fato isso não falta no mercado: filmes cheios de intenções mercadológicas, feitos para "encher" o mercado com bagulho sócio-ideológico que não tem nada a ver com cinema. Nesse mercado vazio de criatividade, o filme de Walter Hugo Khouri é uma exceção: encherá o público inteligente de prazer, tal a dignidade de sua estrutura narrativa.

"As Filhas do Fogo" é um balde do água fria nessa mentalidade xenófoba que quer entulhar de Brasil por todos os lados os seus filmes, tornando os irrespiráveis O grande colírio para essa poluição e o filme de Khouri, ambientado em Gramado, uma cidade que não parece ser brasileira, mas é. Cai neve em Gramado e o cineasta filma uma das seqüências mais poéticas do cinema brasileiro, com sua câmera tornando visível o que os olhos dos bitolados não enxergam. Percepção extra-sensorial, aliás, não é prato para quem tem couro grosso. Um dos grandes méritos do filme é popularizar a parapsicologia, isto é, popularizar o que é impopular, sem cair no folclore ou no que Oswald de Andrade chamava de "macumba pra turista".

O que havia de pior em outros filmes de Khouri, a petrificação dos atores, transfigura-se em "As Filhas do Fogo". Selma Egrei interpreta uma mulher que já morreu. Por isso ela é estática. Khouri consegue inventar uma nova dramaturgia ao colocar lado a lado vivos e mortos, uma interpenetração de tempo e espaço, como preconizam as pesquisas que falam em espaços e mundos paralelos. Duas jovens (Paola Morra e Rosina Malbouisson) passeiam pelas florestas de Gramado, um dado naturalista que Khouri transfigura mediante uma talentosa panorâmica pelos arbustos da floresta, sugerindo uma nova dimensão de tempo, inquietantemente ambientado no mesmo espaço físico. Esse recurso pode não ser novo, embora raro, mas nunca foi utilizado dessa forma, levando o espectador a um clima poético digno de Edgar Allan Poe. Nesse sentido é que o filme tem nível internacional, é tão bom quanto "Shock", de Mário Bava ou "Patrick", de Richard Franklin, que foram premiados no último Festival de Cinema Fantástico de Sitges, na Espanha.

Atualizadíssimo com a onda semiológica, Khouri manipula magistralmente os signos visuais e sonoros. Um exemplo, o chá verde (aliás titulo de um conto de Sheridan Le Fanú), que é servido pela parapsicóloga (Karim Rodrigues num de seus melhores papéis) às duas jovens, contém uma folhagem que, posteriormente, ressurge como peça de um colar no pescoço de uma das personagens. Ou então uma gaiola intrigante, rodeada de algas, que dará a chave da seqüência final. Rogério Duprat, que já tinha feito música para outros filmes de Khouri, foi convidado também para este e trabalhou com total dedicação, "porque saquei nele, além da qualidade dos anteriores, um lance de incrível humanização das pessoas e um jeito muito maluco de mexer com o tempo e a roda das coisas (nada a ver com Marienbad), uma sorte de discronia magica". Talvez seja isso: "As Filhas do Fogo" é um filme mágico e, considerando-se que cinema é, antes de tudo, magia, a conclusão só pode ser uma – a de que o filme é cinema, isto é, linguagem de cinema, algo que aparece raramente no país.

(Folha de S. Paulo, 5 de março de 1979)