25.4.07

Anarquia poética contra o cinemão


JAIRO FERREIRA

A partir da próxima segunda-feira, num circuito encabeçado pelos cines Marabá e Olido, estará em cartaz um novo filme paulista, que muitos não hesitarão em classificar como "mais uma pornochanchada da Boca do Lixo". O título nem sequer disfarça essa impressão: "A Ilha dos Prazeres Proibidos". O produtor é Antônio Polo Galante, capaz de fazer ao mesmo tempo os piores e os melhores filmes. O diretor, porém, é Carlos Reichenbach, hoje um dos cineastas mais polêmicos do cinema brasileiro: "Sob o rótulo de pornochanchada, bilheteria certa, ocultam-se hoje os biscoitos finos da produção independente. Se tivesse que classificar, diria que meu filme é uma aventura deflagradora, feita em ritmo dos seriados que passavam nos cinemas nos anos 40 e 50". Aqui, uma entrevista com Carlos Reichenbach:

Folha: Como surgiu a oportunidade de realizar esse filme?

Reichenbach:
Há algum tempo, o Galante me propôs fazer um filme de reformatório de mulheres. Eu não dirigia desde 75, e a idéia me instigava. Escrevi um argumento usando o repertório dos filmes do gênero, dandoum cunho anárquico muito pessoal, inspirado em um dos filmes que mais gosto: "Zero de Conduta", de Jean Vigo. Denominei o projeto "As Rebeldes" e ficamos esperando o momento certo de realizá-lo. Nosso contato diminui quando fui filmar "Capuzes Negros", e a onda do gênero acabou passando. Posteriormente, fiz alguns trabalhos para ele, e durante um papo levantei uma questão que achava interessante. O Galante sempre produziu em quantidade, e de uma forma ou de outra, no meio da volumosa safra, apareciam títulos de importantes realizações do cinema paulista. De cabeça, me lembro de "O Pornógrafo", de João Callegaro, "A Mulher de Todos", de Rogério Sganzerla, "Em Cada Coração um Punhal", com episódios de João Batista de Andrade, Sebastião de Souza e José Rubens Siqueira, "As Deusas", de Walter Hugo Khouri, "A Guerra dos Pelados", de Sílvio Back. Contei a ele que, certa época, me interessei em filmar uma espécie de continuação do originalíssimo filme de Sganzerla, retomando a idéia de uma ilha onde personagens libertários co-existissem pacificamente com renegados de toda a espécie. Na essência, um filme de humor. O titulo, retomando "A Mulher de Todos", que era ambientado na chamada Ilha dos Prazeres, deveria ser este, mas o produtor acrescentou "Proibidos", exultando.

Folha: a aproximação com o filme de Sganzerla fica só no titulo ou tem algo mais a ver?

Reíchenbach:
No filme de Sganzerla, o fênix orgástico foi batizado de "A Ilha dos Prazeres Extremos" e aí cessam as identificações com "A Mulher de Todos". Afora o título e o espírito anárquico, meu filme é mais um dos meus exercícios de metacinema. Sempre Imaginei fazer alguma coisa que tivesse o ritmo dos antigos seriados da RKO. Um filme para o público do cine Arizona, que desse a impressão de que a cada dez minutos entraria um letreiro: "Continua na próxima semana, não perca...", mas misturado ostensivamente com vários gêneros. Fiz o filme sob essa inspiração, acrescentando novas idéias e principalmente o humor à poesia. Meus roteiros e o cinema que eu gosto de fazer tomam corpo na medida em que tentam se aproximar dos filmes que eu gosto de rever ("A Marca da Maldade", "O Desprezo", "Crepúsculo dos Deuses", "A Lei dos Marginais", "Intriga Internacional", "O Tigre da Índia").

Folha: O que você acha que o cinema deve ser hoje?

Reíchenbach:
Basicamente, um filme pra mim deve sugerir. Em todos os sentidos. Detesto o filme de tese, o cinema-denúncia, o filme que se auto-promove, o cine-verdade. E acho que essa tendência do cinema atual é a que mais contribui para a miséria criativa do momento cinematográfico mundial. Nada mais sintomático do que Cannes premiar "Pai Patrão", um filme maravilhoso que faço força para ignorar. Nada mais sintomático que a vanguarda estar sendo chamada hoje de reacionária. Jean Marie Straub filmando Schoenberg é muito mais sugestivo e revolucionário do que o 200° filme cubano dirigido telepaticamente por Fidel Castro. Isso sem falar do chatérrimo cinema polonês/tcheco/russo, revisitanto os terrores da Segunda Guerra Mundial. Mil vezes mais prefiro o sugestivo ping-pong documentado pelos técnicos chineses.

Folha: O que você entende por "sugestivo"?

Reichenbach:
Sugestivo é Makavejev em "Mistérios do Organismo" (1971), Brian de Palma ("Trágica Obsessão", "Carrie, a Estranha"), "Agonia", de Júlio Bressane, e o genial "As Filhas do Fogo", um filme aterrador de Walter Hugo Khouri como nunca se imaginava. Sugestivo é Nagisa Oshima com "O Império dos Sentidos" e "O Império da Paixão", descobrir Sam Wanamaker ("Simbad contra o Olho do Tigre"), um novo Samuel Fuller. Sugestivo é fazer um filme de cinema (entendido como política) sem falar em política (entendida como cinema) ou vice-versa. Sugestivo é reler Edgar Allan Poe, Rimbaud, Blake, Sá Carneiro, Jorge de Lima, Oswald e Sousândrade, ouvindo ao mesmo tempo as trilhas cinematográficas de Bernard Herman ou as sonatas de César Franck, ou ainda o último disco de Walter Franco.

Folha: Você tinha todas essas preocupações culturais quando realizou "A Ilha dos Prazeres Proibidos"?

Reichenbach:
Quando realizei esse filme, me preocupei em não complicar nada. Ê o que chamo de sugestão na empatia. Por isso a estória é linear, simples. Trata-se de um filme de aventura, como eu gostaria de assistir. Uma trama simples que prende a atenção e o espetáculo mostrando coisas que eu gostaria de sugerir. Tentei usar todos os chavões do gênero, exacerbando quando julgava necessário. Acho que o excesso distancia e permite ver o que interessa. Se o gênero exige melodrama, criei diálogos melados e procurei dublar o mais dramaticamente possível. Se exigia sexo, besuntei o corpo dos atores com óleo, fiz a atriz gemer. Se exigia violência, explodi um personagem. Há de tudo em "A Ilha dos Prazeres Proibidos". Do faroeste ao dramalhão, do policiai à chanchada, da pornô à poesia. É um filme sobre a solidão, o exílio, a rebeldia, o inconformismo, o amor e a morte. Um filme que se auto-define na boca dos personagens. Sem modéstia, um filme sugestivo sobre muitas coisas.

Folha: Atualmente, as discussões sobre o cinema brasileiro se limitam a um único tema: o mercado de exibição e sua conquista. De um lado, há o chamado Cinemão da Embrafllme, de outro, o Cineminha, isto é, o cinema experimental. Qual é a sua posição diante disso?

Reichenbach:
O delírio mercadológico está acabando com o cinema do Brasil. O Cineminha quer ser Cinemão, o Cinemão tem vergonha de não ser Cineminha. O novo está ficando velho, o novíssimo implodiu e morreu nas estradas de "Orgia" (1971), de João Silvério Trevisan, ainda interditado pela Censura. O cinema novérrimo nem sequer surgiu. Quem sobrou anda trocando as idéias pelo "bordereaux", o relatório das rendas. A câmara na mão foi trocada pela grua feita em fundo de quintal por José Manir. Não acredito em primeira, segunda ou terceira posição. Cinemão e Cineminha são coisas da Embrafilme, ou melhor, de quem transa com ela. Nunca me interessei em fazer meus filmes com verbas oficiais. Ajudei na luta da conquista do pólo cinematográfico de São Paulo, mas ainda não me interessei em apresentar projetos. Continuo achando que financiamentos oficiais só devem ser dados para filmes anticomerciais, para filmes prontos e que estão nas prateleiras. Se dependesse da Embrafilme, juro que estaria fazendo Cineminha.




Folha: A produção Independente ainda representa uma saída para o cinema brasileiro ou está sendo asfixiada pelos filmes do Cinemão da Embrafilme?

Reichenbach:
O asfixiamento é um fato, mas a produção classe "B" da rua do Triunfo, por exemplo, resiste e fatura alto. Consigo fazer meus filmes sem verbas oficiais, não tenho nenhum mecenas entre a família, torrei meu único dinheiro em "Liliam M" e não me arrependo. Resolvi ser técnico para não abandonar a profissão. Sou agora registrado como diretor de fotografia, gosto de mexer com refletores.

Folha: Você aceitou as imposições do produtor quando foi realizar "A Ilha dos Prazeres Proibidos"?

Reichenbach:
Eu fiz o filme que quis. O Galante me deu toda a liberdade de filmar à minha moda. A única imposição era o tempo de filmagem, que tinha que durar 20 dias. Achei até bom, porque sei que depois de 20 dias, a equipe começa a apresentar sinais de desgaste, perde o pique inicial e isso se reflete no resultado final. Por isso procurei me cercar de bons assistentes, de técnicos criativos, como Hideo Nakayama, Isabel do Amaral, Marino Henrique, Luis Souza, Amaral, Edson, gente que se desdobrava nas funções para atingir um resultado que considero excepcional, dado o prazo, claro. Se evitamos o uso de "travellings", gruas e "dollys", foi para ganhar tempo.

Folha: Além da boa bilheteria que "A Ilha dos Prazeres Proibidos" deverá render, já que foi co-produzido pela companhia exibidora Sula, que outro tipo de repercussão você espera do público?

Reichenbach:
Gostaria que as pessoas que gostam de cinema e que acreditam que o cinema deva ser político sem falar de política assistissem ao filme. Creio que elas acharão que o filme é, no mínimo; engraçado. Gosto muito dos atores: Roberto Miranda (em perfeita sintonia com a criação), Fernando Benini (repensando sua participação no cinema experimental), Neide Ribeiro (a força do olhar acima da plástica perfeita), Meyre Vieira (uma revelação trágica por trás do talento cômico) e Carlos Casan (a elegância e o profissionalismo extraordinários) que já filmou com Leopoldo Torre-Nilsson, Fernando Ayala e Jacques Deray.

Folha: Por que seu filme anterior, "Sede de Amar", com a Sandra Bréa, ainda não foi exibido?

Reichenbach:
Essa foi uma realização bastante difícil, tem roteiro de Mauro Chaves, demorou 60 dias para ser concluído. Era um filme projetado para 35
dias, no máximo, Trata-se de algo que, sob a ótica da Embrafilme, seria Cinemão. Um filme comercial, elegante, caro, mas de lucro certo. Um desafio que aceitei como exercício de "mise em scéne". Ele será lançado neste mês de Janeiro no Rio.

(Folha de S. Paulo, 12 de janeiro de 1979)