17.4.07

O cinema delirante de Walter Lima


Cineasta de poucos e bons filmes ("Menino de Engenho", "Brasil Ano 2000"), integrante do Cinema Novo em sua melhor fase (1965 a 1968, não por coincidência as datas em que realizou esses dois filmes), Walter Lima Jr. lança hoje seu último e decisivo filme, "A Lira do Delírio" (cines Ipiranga 2, Metrópole,Center, Belas Artes/ Sala Vila Lobos. Metro 1, Gemini 2, Festival, Piratininga). derradeira aparição de Anecy Rocha nas telas. O cineasta apresenta seu filme:

– A idéia era fazer um filme musical a partir de canções de carnaval, acho que era assim, uma idéia litero-musical. E teria sido desta forma se o carnaval daquele ano não nos envolvesse tanto. E assim nos perdemos na festa e quando a gente se perde no carnaval vale dizer que o descobrimos. As máscaras caem, as fantasias se rasgam, a realidade e o sonho se misturam. A liberdade se inaugura. No carnaval, o consciente é inconsciente. É a subversão psíquica onde a catarse vence. Mas havia o projeto do filme – o sonho dentro do sonho real – e era preciso levar avante. Poucos dias depois das filmagens em Niterói a idéia já era bem outra: o carnaval me surpreendera de tal forma que o que consegui filmar em cinco horas de copião tinha 60% de cenas de violência e isto não era o que eu acreditava como base para um musical. Mas afinal eu conseguira registrar a minha visão do carnaval e era duro reconhecer isso. Por isso gastei muito tempo para aceitar a idéia de um outro filme. Mas que filme?


– Há uma frase de Jean Cocteau que diz: "O cinema é a única arte que capta a morte (e a vida) em seu trabalho diário" e esta frase me criava a idéia de fazer um filme que levasse anos para ser feito, acompanhando aquelas pessoas e deixando que o tempo corresse sobre elas. Eu fora a Niterói com a ideologia de um Meliés, ou seja, querendo forçar a minha posição de câmera, o meu ponto de vista e o resultado se aproximava da posição de um Lumière, onde o registro documental prevalece sobre o onírico: houve uma greve na saída da fábrica e surgiu o herói. Deu-se o imprevisto e graças a ele o filme começou a viver. Um filme, como qualquer obra de arte, exige o risco absoluto. É preciso navegar para conhecer. De resto foi o que fiz nos anos que se seguiram. Enquanto navegava, aprendia a comandar o barco e a determinar o rumo. Os bons e os maus ventos me trouxeram ao porto do delírio, onde bebi o fel e o mel alternados ou misturados e senti o travo da ressaca.

– Creio que cada filme tem a sua forma correta de realização. Nem mais, nem menos. Isto cria uma enorme responsabilidade e, até que pudesse ter certeza do resultado final, resolvi aprender a fazer o meu filme. Comecei a tarefa fazendo documentários para o cinema, depois para a televisão e até chegar ao primeiro plano da fase final da "Lira" havia rodado 50 documentários e três anos e meio haviam decorrido. Afinal: Lumière e Meliés se combinariam. Lumière era o som direto, arma poderosa do meu aprendizado, e Meliés, o cinema de invenção, poético e criativo. E assim foi. Os atores que haviam participado dessa longa procura se arriscavam com suas vidas e sentimentos. A equipe era uma afinadíssima orquestra onde o mestre Dib Luft era novamente um iniciante entusiasmado, Carlos Del Pino um assistente como nunca tive, Rui Medeiros, um chefe-eletricista para o qual não existiam problemas e Paquetá, um chefe-maquinista como deve ser. As filmagens da "Lira" nunca viram outro clima que não o de intenso entusiasmo. Fazíamos um filme, inventávamos o cinema. O resultado de tudo isso é que, apesar de trabalhar apenas sobre uma rígida estrutura de módulos, sem roteiro definitivo, pude optar na moviola por cinco versões diferentes do mesmo filme. Ele abriga o espaço poético atingido pelas cordas da lira. O cinema reale o cinema aparente, a encruzilhada do cinema de autor: e agora a vida!


– Viva a vida que nos permite ver e fazer cinema. Na "Lira", os gestos são acaso e necessidade. Não representam a compreensão literária do filme. Eles são o gesto simplesmente,uma outra linguagem.um outro código, nunca uma intenção premeditada. O duque de Guise há muito está morto, abaixo portanto a literatice que sufoca o cinema, justifica o autor e robotiza o ator. Good-bye famous artists in famous plays, a Paramount já é uma companhia de petróleo.

A crise do cinema de autor é o confronto com a vida. E a vida compreendeu nessa vontade e nossa esperança e se deixou filmar. A verdade apareceu, então, ao lado da mentira, como devia. O real e o aparente mirando-se no espelho. "A Lira do Delírio" busca a aventura da reinvenção do cinema conscientemente. Junto com o público, módulo fundamental de seu bordado. Não é o fim de uma procura, também nisto ele é eloqüente e imodesto.



Essas palavras, como se nota, não fariam parte do repertório do Cinema Novo mais dogmático, conservador e reacionário que insistiu em continuar existindo até 1976, ano que Glauber Rocha, seu profeta, retornou ao Brasil e reconheceu: "Durante anos, diziam que o Cinema Novo tinha morrido, agora eu é que digo: o Cinema Novo morreu". Isso causou espécie entre os integrantes do movimento, Walter Lima Jr. entre eles. Hoje, Lima Jr. Afirma: "Glauber está glauberiano, mas Godard não esta godardiano". Realmente. O papa está papal. Não quis reconhecer a experiência de seus colegas que ficaram no Brasil, como Paulo César Saraceni, que rodou em 1973 o alucinado "Carnaval, Amor e Sonhos", depoimento pessoal dos mais válidos, exorcização diretamente ligada a este "A Lira do Delírio".

Em sua modéstia e sinceridade, Walter Lima Jr. não poupa ninguém: "Acho doloroso ter que cutucar essas pessoas que eu adoro, mas um filme como "Tudo Bem", do Jabor, por exemplo, me parece profundamente velho e velho fora de hora, porque tem uma postura cepecista. Achei também um desastre o "Anchieta" do Saraceni. São pessoas que ficaram encasteladas, falando consigo mesmas, quando o importante nesta fase de abertura é que exista uma abertura das pessoas, uma abertura nossa e não essa que nos é imposta".

Em consonância com isso está Rogério Sganzerla quando afirma que "tudo é uma coisa só e isso é tudo''. Ou seja, não há diferença entre o Cinema Novo que revolucionou o cinema brasileiro de 1962 a 1967 e o experimental que radicalizou essa experiência entre 1967 e 1971. As broncas pessoais emperraram o processo, mas agora ai está um Walter Lima Jr. assumindo que o experimental sempre existiu: "A fase mais rica do cinema brasileiro não é a do Cinema Novo, mas justamente essa que veio em seguida e perdura até hoje. Essa é a fase mais interessante porque está baseada na invenção, na poesia, na metáfora, no trabalho de criação avançada, peculiaridade do cinema nacional que, justamente por não ter uma infra-estrutura, possibilita esse descompromisso com e em relação à indústria. Em lugar de falar em experimental eu prefiro falar em invenção e em aventura. São poucos os cineastas que assumem o risco, aventura e é isso o que me interessa: ousei uma nova forma, uma concepção nova para abranger essa complexidade que é o Brasil dos últimos anos; E, assim, "A Lira do Delírio" se coloca como um filme em aberto".

Procurando escapar aos rótulos, Lima Jr. não gosta de falar em Cinema Novo e também não faz nenhum elogio da loucura que é o cinema brasileiro dos últimos 12 anos. "Acho um verdadeiro suicídio fazer um filme que não chegue ao público. Já fui crítico de cinema e conheço bem os movimentos fundamentais do cinema, a "Avant-Garde", o expressionismo, o cinema russo, o neo-realismo, a "Nouvelle Vague", o "Underground americano". O que eu faço em "A Lira do Delírio" é uma reciclagem de tudo isso e por isso gosto de falar em Meliès e Lumière, como Júlio Bressane fala em Griffith e Rogério Sganzerla fala em Orson Welles. Assimilei isso tudo no meu filme, transformando esses signos de tal forma que o grande público possa entender, porque o momento não é propicio a radicalizações. O momento está exigindo uma abertura que venha das pessoas. Por isso eu estou me abrindo, única forma de recuperar o que perdemos, a liberdade e a capacidade de diálogo".

Mentalidade ventilada, Lima Jr. pode ter feito um filme que dá alegria ao espectador, mas os bastidores do cinema brasileiro ainda vivem um processo doloroso. Basta lembrar que Anecy Rocha, atriz principal de "A Lira do Delírio", já não existe. Essa irmã de Glauber Rocha, no momento em que se afirmava como uma das melhores atrizes do cinema brasileiro ("Tenda dos Milagres", "A Guerra Conjugal", "Os Vampiros" e este "A Lira do Delírio") morreu tragicamente em 1977, caindo no poço do elevador do prédio em que residia. Ela era casada justamente com Walter Lima Jr., esse cineasta talentoso e sofrido, que inclusive prefere nem comentar o episódio.

(Folha de S. Paulo, 18 de junho de 1979)

2 Comments:

At 14:07, Anonymous Anônimo said...

Li há poucos meses atrás sua biografia "Viver Cinema". Maravilhoso! um dos maiores realizadores de cinema do país. Meu filme preferido dele é A Lira do Delírio, mas A Ostra e o Vento e O Monge e a Filha do Carrasco também são muito bons.

(http://claque-te.blogspot.com): A Pele, de Steve Shainberg.

 
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