Eles estão à solta
Houve um tempo em que eu detestava o termo "udigrudi", lançado por Glauber Rocha para definir o que seria uma sintonia pós-Cinema Novo. Hoje eu adoro ser chamado de "udigrudi", mas me chamam de Mister Cinema de Invenção! Ironia da sintonia? Sejamos claros: cinema no Brasil só existe graças ao Cinema Novo. Acaba de ser lançado um verdadeiro tratado postal do Glauber – Cartas ao Mundo - (Companhia das Letras). Folheei e não achei lá a única carta do Glauber que esclarece a transição entre Cinema Novo e Udigrudi. Eu já até fui megalômano como Glauber, mas aprendi a ser egoísta com Raul Seixas e por isso sou obrigado a citar trechos para as novas gerações:
"Prezado Jairo Ferreira: você pode ter uma fórmula para definir Cinema Novo ou Udigrudi, estas cinefilias não me preocupam (...) Você que é ótimo deveria escrever sobre isto, uma análise dialética da matéria cinematográfica cinemanovista e udigrudista ... De qualquer forma todos os dois nos nascem de Glauber Rocha, antes ou depois do Kãncer. Entre Cinema Novo e Udigrudi, entre eu. Rogério e Julinho ainda existe Helena Ignez." Rogério é Rogério Sganzerla, Julinho é Júlio Bressane.
Rogério Sganzerla é paleolítico & atonal. Perpetrou um dos três melhores filmes brasileiros de sempre: O Bandido da Luz Vermelha; Júlio Bressane é ágrafo, iléxico & afásico: Matou a Família e Foi ao Cinema é talvez seu filme mais emblemático. Três décadas após as primeiras experimentações, a dupla da Belair [produtora fundada por Sganzerla e Bressane em 1970, voltada para a produção de filmes de baixo custo] ainda gera expectativas. Equivale à dupla Candeias/Zé do Caixão, mas não vou delirar aqui. Por que eles são importantes?
Há duas décadas eu tinha uma leitura da obra de ambos; hoje tenho outra. Cheguei à conclusão que ambos são místicos. São transcendentais, metafísicos. Querem uma prova concreta do lance holístico? Helena Ignez virou Hare Krishna, ela que foi a mulher de todos... Era a baiana loira mais sensual do mundo e não existe nenhum filme que supere A Mulher de Todos (1969), para alguns o filme é ainda melhor do que Luz Vermelha.
Sou muito suspeito para escrever sobre a obra da dupla do sublime vôo dos anjos, como acertou Jean-Claude Bernardet. Convivi principalmente com Sganzerla desde 1964. Como então ter um distanciamento crítico?
É simples: há tempos não nos vemos. Pound já dizia que o mau crítico se identifica facilmente quando desanda a falar mais do autor que da obra. Aprendi via Irmãos Campos, mas o que interessa aqui é constatar que gradativamente vou esquecendo a pessoa física e lembrando mais da figura astral da dupla do barulho. Dá pra esquecer as imagens de filmes como Sem Essa, Aranha (1970), de Sganzerla, todo em plano-seqüência?! Dá pra esquecer Memórias de Um Estrangulador de Loiras (1971), do Bressane? Os homens passam, a obra fica.
O espaço intergaláctico é pequeno pra ir fundo, mas é bom lembrar que alguns filmes da dobradinha ainda estavam inéditos até pouco tempo atrás. Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970) estreou na TV Cultura há pouco mais de um ano, mas foi visto como "reprise": de qualquer forma me pareceu uma "bad trip" – João Silvéno Trevisan disse que não agüentou o Gilberto Gil homenageando Sganzerla... Mas deixa pra lá: Barão Olavo, o Horrível (Julio Bressane, 1970), eu ainda não vi, é um cinemascope também.
Saiamos já do baixo para o alto na tradição do hermetismo e confessemos que é grande a curiosidade em torno de Tudo é Brasil, de Sganzerla, e Miramar, de Bressane. Sganzerla certa vez parodiou o próprio Hermes Trismegisto: "O lance é levantar o baixo e baixar o alto". Gênio total! Já as frases lapidares de Bressane são tantas que não consigo destacar as melhores. Imagine um cara que escreveu sobre mim: "Eu para falar do cinema do Jairo quero um ano e meio de prazo"... Brincadeira"! É por isso que eu disse ao Adhemar de Oliveira que talvez eu nem fizesse esta matéria, pois sou muito suspeito...
... Eu tenho uma semana de prazo pra entregar essa matéria e vou cometer algumas elipses. Vou naquela que sempre fui: um vampiro de cinematecas. E então esse vampiro de 600 anos vai lembrando que tudo começou na década de 60, quando Carlão Reichenbach conheceu Andréa Tonacci.
Tonacci e Sganzerla revolucionaram, respectivamente, com curtas experimentalíssimos – Olho por Olho e Documentário. Essa crônica eu já escrevi, mas vou escrever e novo, pois se todos querem posso contar de forma diferente...
Haja elipse, pois já estou no novo filme de Andrea Tonacci, a maravilha sem título sobre a Biblioteca Nacional. Ele me dizia que eu ia ver um "institucionalzão". Chego lá e vejo uma poética melhor do que Toda a Memória do Mundo (1956), de Alain Resnais. É Tonacci em plena forma em 1997, com fotografia de Mário Carneiro.
Meu irmão Juka assistindo a Bang Bang em vídeo ao som de Emerson Lake & Palmer sacou: "Mas essa cena da bailarina espanhola eu já vi no filme do Carlão, Alma Corsária"... Correto: é uma homenagem do Carlão ao Tonacci que me emprestou uma cópia do média Blá Blá Blá (1968) e aí saquei como ele fulmina todos os discursos, ditatoriais ou não. O talento visual é tanto que chega a irritar... Nunca ninguém filmou carros tão bem quanto Andrea Tonacci, já dizia Paulo Emílio Salles Gomes. E eu acrescentaria: nem mesmo Monte Hellman em Two-Lane Blacktop (Corrida Sem Fim), remoto precursor do já cult de David Lynch, que posso chamar de um "on the road" metafísico com o slogan "Com o pé na estrada e a cabeça nas estrelas"...
É todo um lance de cinefilia que o Glauber não curtia. Eu conversava há pouco com o Tonacci sobre Allen Ginsberg, William Blake e aquele do Tarzan - não confundir os dois Burroughs: Edgar Rice Burroughs é autor do Tarzan, William S. Burroughs é o papa da Beat Generation. E quando acabar o maluco sou eu. Também pudera: o maluco beleza Glauber pediu que eu deveria escrever sobre isso... Tá vendo, dona Lúcia? Ta vendo, dona Eugênia? Tá lendo, dona Alzira? Pira piramidal da ioga fundamental!
No meu livro Cinema de Invenção exagerei no capítulo Bressane, situando-o nos cornos da lua. Na reedição (1998) quero extrapolar no capítulo Sganzerla, o homem dos olhos de raios laser. Até o pior filme dele (O Abismo) tem lances geniais. "A linguagem é o logos do pensamento" (Blavatsky o Plínio Marcos também curte: & o Plínio é hoje talvez o único gênio vivo de nosso teatro) . No Abismo há o lance do OM, que Zé Ramalho (outro gênio!) homenageia numa canção dedicada a Carl Sagan.
Júlio Bressane é o homem da transcriação, mas é católico como Hitchcock. O admirável poeta Pedro de Souza Moraes (um beijo, Leda!) sempre me dizia que "o Bressane se limita ao expressar-se apenas por provérbios". Procede: Julinho está mais para Padre Vieira, enquanto Sganzerla e "reencarnação" de Oswald de Andrade.
Já Carlos Reichenbach é o cinepoeta do tetragrama visionário. Extrai profecia de pornochanchada da Boca do Lixo (O Império do Desejo, 1980). Mas não vou falar muito do Carlão, pois me falta distanciamento critico. Ainda há poucos fizemos Murilendo, um video "de encomenda" para a TV Cultura e que Luiz Rosemberg Filho amou, assim como Drago.
Tonacci é outro papo. É alquimista a quilates por segundo. Gosta de física quântica, nasceu em Roma, mas prefere viver no Xingu! Também gosta de Raul Seixas, que aliás está para mim como Noel Rosa pra Sganzerla. Tonacci por vezes se perde em projeto inexeqüíveis & vem adiando sua volta ao longa de ficção (ecológica e científica) desde a velha Casa de Imagens que deu com os burros n'água inclusive... Deixa pra lá: vamos falar do que interessa ao progresso: Agora Nunca Mais. Seria o It's Now ou Never na voz de Elvis ao som do ritual indígena! E você pensou que fosse alienígena? Tonacci é nonsense, é transchanchada: vide a cena do táxi em Bang Bang: essa eu parodiei no meu filmico O lnsigne Ficante, que também "influenciou" um filme do Bressane, Cinema Inocente (1980, está sendo telecinado em homenagem a Torquato Neto). Tonacci é gênio, mas vamos mudar a retranca: o lance agora é curta. Curta circuito.
Almeida Saltes, o eterno presidente, dizia em 1966 que "o curta é uma espécie de certificado militar do cineasta". Sem ócio não há sacerdócio. O negócio é a negação do ócio. Metafísica de bar.
E por falar em bar: Matrix, Brancaleone. O lance é Vila Madalena. Paolo Gregori é o maior animador cultural do planeta, além de cinepoeta de total sintonia eremita, telemita! Que Fim Levou a Mocinha da Sauna Mista? Sobre o guerrilheiro Marighela ele fez Mariga, um banho de sangue no fusquinha metralhado. Ah, em matéria de curta não se pode esquecer Ma che Bambina (1986) do grande A.S. Cecílio Neto, que tá de longa prontíssimo, A Reunião dos Demônios.
Outra revelação da experimentália curta-metragística: Noite Final Menos Cinco Minutos (1993), de Débora Waldman, a princesa de Babylon. Não dá pra falar de todos, mas é preciso não esquecer do califa de Bagdá, Arthur Omar: O Som. OM ou AUM, a mais sagrada de todas as palavras da índia...
Meressias, Sinhá Demência! É ou não, Christian? E viva Toninho Buda: E viva Renata Druck e seu Espírito Desencarnado!
Evoé Baco!
JAIRO FERREIRA
(Cinema, número 9, nov-dez 1997)
2 Comments:
quando eu li
E por falar em bar: Matrix, Brancaleone. O lance é Vila Madalena. Paolo Gregori é o maior animador cultural do planeta, além de cinepoeta de total sintonia eremita, telemita! ,
aí que eu reconheci.
eu vi o Jairo ler esse texto. Acho inclusive que ele escreveu isso pra ocasião: era uma sessão de curtas justamente no bar Matrix, organizada pelo Paolo Gregori, que exibiu esses filmes que ele cita no final do texto e mais alguns (um deles era o que eu estava trazendo do Rio, fazendo um favor para o André - era "o palhaço xupeta").
Isso pode ter sido publicado em 1997, mas acho que esse evento rolou entre o final de 95 e o início de 96 - ou seja, o texto é dessa época. O Paolo Gregori deve lembrar disso com mais exatidão.
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