14.4.07

Entrevista com Jairo Ferreira

A entrevista abaixo foi realizada por Paulo Sacramento e Arthur Autran, no tempo em que os dois estudavam cinema na ECA-USP. Foi publicada no número 1 (setembro de 1991; houve outros?) da revista Paupéria, editada pelos dois acima e por Vitor Ângelo. (JT)


Jairo Ferreira é cineasta e crítico, escreveu o livro Cinema de Invenção, fez crítica nos jornais São Paulo Shimbun e Folha de São Paulo e dirigiu os longas O Vampiro da Cinemateca e O Insigne Ficante, além de vários curtas.

P: Você está relançando o seu livro cinema de Invenção. Quais as alterações da nova edição?

JF: A nova edição será revista e ampliada. Vai ter 5 novos capítulos, uns 3 ou 4 de complementação teórica, mas isto não chega ainda ao que era o projeto original. Este era um livro de 400 ou 500 páginas, é por isso que eu demorei tanto para preparar o livro. Comecei em 77 e ele só foi publicado em 86. Como eu não encontrava editora para publicar um livro tão volumoso eu tive que fazer uma versão de 300 páginas.

O livro pretendia acompanhar cronologicamente a evolução do experimental no cinema brasileiro. Alguns cineastas continuam até hoje fazendo filmes, mas isso não faz parte do cinema experimental como movimento. Não tem nenhum cineasta que fez parte do cinema marginal que está fazendo cinemão atualmente. Aliás, tem, viu. Eu estou pensando no Neville d'Almeida. Ele começou fazendo cinema experimental e a partir do A Dama do Lotação aderiu ao cinemão. Ele não fez parte da primeira versão do livro porque eu achei que ele não tinha importância para entrar como um capítulo. Ele ficou furioso, na época eu estava na Embrafilme e ele me telefonou dando um esporro, dizendo não admitir um livro falando de cinema de invenção e não citando os seus filmes.

Além do Neville ficaram de fora outros cineastas como Geraldo Veloso, Elyseu Visconti e o Caetano Veloso. Pois Cinema Falado é um filme isolado, não faz parte do marginal como movimento. Ao mesmo tempo, ao fazer um levantamento do cinema marginal eu acabei fazendo um levantamento do cinema brasileiro. Marginal é o nome dado pelo pessoal da Boca do Lixo, mas experimental é um nome que resiste mais ao tempo. Limite é um filme experimental, no entanto não é da Boca do Lixo. O cinema experimental começou antes com Tesouro Perdido do Humberto Mauro, se é que não começou antes com os filmes do início do século que já se perderam. Aí eu fui fazendo um levantamento de todos os ciclos do cinema brasileiro até chegar ao ciclo experimental que é a síntese. Para entender bem isso há uma colocação minha: o cinema novo no começo dos anos 60 surgiu como o primeiro movimento que deu respeitabilidade ao cinema brasileiro. Nosso cinema não era respeitado nem aqui nem lá fora, era um folclore dizer que tinha um filme chamado O Cangaceiro que passou no mundo todo. Com o cinema novo o cinema brasileiro começou a tomar consciência da sua própria evolução. O cinema marginal é filho do cinema novo, ou melhor, irmão. Só que houve uma briga, uma ruptura, porque o cinema novo estacionou numa coisa política enquanto o cinema marginal continuou revolucionando não só na forma como nas idéias. O cinema novo tinha deixado de ser revolucionário para ser reacionário. Tem várias distinções a fazer entre o cinema novo e o cinema marginal. Eu estava pensando agora numa coisa nova,nunca dita por mim de forma explícita como eu vou dizer agora: o cinema novo era um negócio político, sociológico, de uma ideologia marxista, enquanto o cinema experimental não tem uma ideologia definida, não é marxista, pelo contrário, se liga em coisas de exoterismo, ocultismo e tal. Pode pegar um por um, a começar pelo Mojica, um dos grandes inspiradores, são todos místicos. O Elyseu Visconti é pai-de-santo. Já no cinema novo não tem nenhum místico.

P:Como foi a repercussão do seu livro?

JF: Foi a melhor que um livro sobre cinema brasileiro já teve no Brasil. Foi elogiado em todos os estados, eu tenho um book desta altura só de elogios, só houve uma resenha contra, do Fernão Ramos. Muitos acharam que foi o livro mais importante do cinema brasileiro. Eu não posso dizer se é ou não, ainda não consegui fazer uma auto-crítica a esse nível. A repercussão foi imensa. O editor calculou mal, fez só dois mil exemplares e o livro esgotou em três meses. O editor faliu e eu estou tentando relançar o livro por outra editora.

P: Os textos inéditos são da época ou foram escritos especialmente para a nova edição?

JF: Na versão original de 500 páginas tinha capítulos com Gustavo Dahl e Paulo César Sarraceni. Sarraceni é cinema novo, mas ele entrou por causa de um filme chamado Amor, Carnaval e Sonhos. Este aí não tem nada de cinema novo. O Gustavo entrou porque O Bravo Guerreiro é tanto cinema novo quanto experimental, tem uma coisa de curtir o desespero que não é bem cinema novo. Agora eu reescrevi e publiquei no Cine-Imaginário todos os capítulos que vão entrar na segunda versão. Os capítulos que vão entrar são Neville, Geraldo Veloso, Caetano Veloso, Arthur Omar e Martico, que fez Adiós General com roteiro do Rosemberg, e o Sílvio Lana que fez o Sagrada Família.

P: Além da sua atividade crítica você realizou alguns filmes em super-8. Você conseguiu distribuir estes filmes?

JF: Em matéria de acumular funções acho que bati o recorde, porque eu comprei a máquina, o projetor, montei, fui ator, sonorizei, produzi, roteirizei, mixei, fiz a música no violão.Eu exibi e projetava na casa de amigos, já que era para brincar de cinema experimental quis mostrar ser possível exagerar nas funções.

Comercialmente não teve exibições, apenas caseiras e em cine-clubes, por exemplo em 77 eu inaugurei o cine-clube Riviera no restaurante Riviera. Passou o filme Hoje é dia de futebol do Zé Antônio Garcia que era o primeiro super-8 dele e era complemento do meu filme O Vampiro da Cinemateca.Só que inaugurou e fechou logo em seguida porque correu um boato de que tinha uma cena de pornografia no filme, de fato tinha uma cena rapidinha, mas era pornográfica mesmo. Aí o cine-clube inaugurou e fechou no mesmo dia.

P: E como você vê o fim do super-8?

JF: Eu acho que o super8 pode ser ressuscitado a qualquer instante, assim que tiver laboratório para revelar aqui. Ele comporta a utilização profissional.A película suporta até 100 anos, o vídeo por mais que se conserve, a imagem vai caindo.

P: Em um artigo seu na revista Artes você chama atenção para o fato deste cinema ter sido pouco visto.Existe a demonstração de um limite na proposta marginal?

JF: A coisa de ser pouco visto eu explico pelo lado do ocultismo: a coisa de iniciados é para iniciados, não adiante fazer a nível de consumo de massa. O tarô e o zen-budismo, por exemplo, viraram moda. O zen-budismo a nível de consumo de massa é absurdo, perde totalmente o sentido. Se colocar um filme marginal para ser exibido junto ao grande público este não vai aceitar, pois não é o público alvo. Este filme não foi feito para um público de maioria, foi feito para uma minoria que sempre vai ser minoria. Sempre não,com o tempo esta minoria vai aumentando, mas é coisa de séculos.




P: Mas filmes como O Bandido da Luz Vermelha foram sucesso de público. Como pode?

JF: Foi exceção. Isto é coisa que só acontece no Brasil, um país subdesenvolvido. Nos EUA o underground é exibido em escolas e coisa e tal, nunca chega a um cinema normal. Aqui no Brasil A Margem foi exibido no cine Paissandu como se fosse um filme normal. O Bandido deu certo, ficou duas semanas no Marabá e no Olido. Como é que um filme experimental como o Bandido deu certo numa sala comercial? O Bandido estava 50 anos à frente de sua época. De hoje então deve estar uns 80, pois o cinema brasileiro regrediu de lá para cá.

P: O Marabá já era na época o cinema de maior média de público?

JF: Já, sempre foi. Mas outros filmes experimentais foram exibidos em salas comerciais e ficaram apenas 2 ou 3 dias. Eu comecei no Shimbum em 65 e deixei em 72, então eu acompanhei o movimento todinho lá, você pode ver que várias vezes quando eu comento um lançamento do chamado cinema marginal na platéia só estavam eu, o Carlão e dois espectadores. O Longo Caminho da Morte, do Calasso, no cine Marachá, só teve 3 ou 4 espectadores na sessão das oito quando eu fui. O Gamal, do João Batista de Andrade, se bem que seja um equívoco, a proposta é marginal mas beirou a ideologia fascista, ficou 4 dias quando lançado no cine Paulistano. Até chegar uma hora na qual os exibidores se mancaram: "esses filmes marginais, da Boca do Lixo, não vamos lançar mais, pois afinal todos afundaram". Não lançaram e nem podiam lançar, pois estavam todos presos na censura. Entre 70 e 71 a censura proibiu um lote de 50 filmes.

P: E estes filmes faziam carreira no interior do país também?

JF: Foram lançados nas capitais, interior do país raramente, assim como no exterior raramente por iniciativa própria dos diretores. O Rogério levou para a Europa O Bandido da Luz Vermelha, exibiu na França para cineastas franceses, mas não aconteceu nada. O Bressane exibiu todos os filmes dele em Londres e dizem que escola onde foram exibidos fizeram sucesso, o que ele não prova porque nunca mostrou documentos disso, e fica difícil acreditar num cara que de dez coisas que ele fala nove são mentiras totais.

P: E indo por este lado da exibição comercial quando se deu o rompimento do cinema marginal com esta? Pois houve uma época em que estes filmes fizeram sucesso, é o caso de As Libertinas e O Pornógrafo. E como se deu este aborto do cinema cafajeste? Pois pelo que me consta os filmes do Callegaro foram sucesso de público e mesmo assim ele abandonou o cinema.

JF: Você quer que eu fale do Callegaro? Porque assim como ele, aliás é uma característica deste movimento, há muitos cineastas de um filme só. Visconti, Calasso, Trevisan e dezenas de outros...

P: Mas foram fracassos ao passo que o Callegaro não...

JF: É, ele não, seus filmes se pagaram rapidamente e foram muito bem de bilheteria. Mas acontece que o Callegaro estava em outra jogada, era o esquema de fazer jingles para filmes comerciais, ele se deu muito bem, ficou milionário. Então para ele não houve interesse em voltar a fazer aquele tipo de cinema que ele soube fazer tão bem. É uma desistência. E cada vez que ele fala em voltar a fazer um filme de longa-metragem tem que ser no esquema cinemão.

É o caso que houve com o Neville d'Almeida, que resolveu mudar a linha. Não dá para dizer que este Matou a Família e Foi ao Cinema, esta versão, tenha alguma coisa de experimental. Há uma diluição muito remota de experimental. Quando a mulher morre a câmera fica rodando, vai dizer ser isto experimental? Ele está usando um recurso do cinema experimental dentro do cinema comercial, o filme perde a função de experimental e passa a ser diluição que o povão pode entender facilmente. O fato da Maria Gladys interpretar 3 ou 4 papéis poderia ser experimental, mas no Neville vira cinemão. Globo Repórter, um filme sensacionalista a nível de Gil Gomes. Um caso de cineasta experimental abrir mão da proposta.

A grande maioria deles se parou de fazer foi por falta de condições, mas se fizerem continuarão sendo experimentais. O Carlão Reichenbach concilia o comercial com o experimental. Mas se você pegar Filme Demência, prevalece o experimental. Já no Anjos do Arrabalde prevalece a linguagem comercial, mas tem uma abordagem algo experimental, que não é descaradamente uma entrega, uma concessão ao público. É difícil conciliar coisas de agradar uma minoria que podem agradar uma maioria. O Carlão é o mestre neste lance. Teve o Ivan Cardoso, que conseguiu isto muito bem em O Segredo da Múmia. Não foi um sucesso retumbante, mas foi bem. A chanchada fazia isto também, o Carlos Manga. Nem Sansão nem Dalila é hoje considerado um clássico da chanchada e no entanto é um filme altamente experimental. Experimental fora do cinema marginal, que tem isso, você acha experimental na chanchada, no ciclo de Recife, no ciclo de Campinas, sempre houve, desde o começo do século, desde que se faz cinema no Brasil sempre existiu o experimental isoladamente. Como movimento foi neste período, 67-71. Depois voltou a aparecer de maneira isolada aqui e ali, mas não é mais um movimento. Talvez pudesse ser movimento através do curta metragem. Mas os cineastas de curta não estão preocupados em ter o que eu chamo de sintonia experimental no curta metragem. O curta está indo para o caminho do cinemão, filmes de ficção com atores, uma puta produção. No final aparece um crédito de três minutos, toca uma música inteirinha como se fosse um longa metragem. É um curta, tem dez minutos e aparecem 500 nomes na tela. Então não é curta, é imitação de longa, cinemão. Mas há curtas que isoladamente são a continuação do cinema experimental.

P: Você poderia especificar hoje em dia estes filmes?

JF: O Francisco César Filho, por exemplo, o primeiro filme dele com a Tata Amaral. Poema, Cidade. Aquele negócio de filmar painéis de letras. No Bandido o Rogério filma no Estadão, que hoje é Diário Popular. Quer dizer, quem começou com esta brincadeira toda foi o Orson Welles no Cidadão Kane. O Rogério apenas reciclou, chupou e reciclou. Porque não adianta chupar por chupar, tem gente que chupa e fica uma imitação sem qualquer originalidade. O Rogério pôs o carimbo, a impressão digital dele. O Chico César Filho faz isso no Poema, Cidade, diferente pois ele está falando do Augusto de Campos. Tem um cineasta nissei, Joel Yamagi, que fez um documentário altamente experimental sobre uma comunidade de negros chamado Cafundó. É um documentário mas não parece que é documentário porque ele encenou, ele conviveu com a comunidade transformando os caras que não eram atores em atores. Foi a técnica usada pelo Flaherty em Nanook, o Esquimó, que é um dos maiores documentários que já foi feito. Isso é altamente experimental, é o que eu chamo de cinema de invenção. O Joel foi o primeiro a fazer isso no Brasil. Aliás o Joel é um talento de quem ninguém fala. Ele fez um longa em nove planos-seqüência, Roma, Amor. O Rogério já tinha feito isso em Sem essa Aranha e o Glauber em Câncer. Se bem que o Glauber não fez planos de dez minutos, fez de cinco, seis minutos. De dez minutos total mesmo foi o Rogério e o Joel. No curta eu tinha feito o plano mais longo, que era de quatro minutos em O Guru e os Guris. Agora fiquei sabendo que a Flávia Moraes fez um curta com um plano de sete minutos. Quer dizer, isto eu acho que é o resgate do experimental no curta. Mas eu ainda não vi o filme, estou louco para ver.

O experimental parece que parou mas não para nunca. Quanto a esta palavra, experimental, não ia ser utilizada por mim nunca, teve uma época que eu abominava esta palavra. Experimental era sinônimo de amador, diletante, eram aqueles caras que não tinham talento nenhum. Geralmente tinham um bom emprego e falavam "Ah, vou comprar uma câmera para brincar" e aí botavam nos festivais e não se salvava quase nada, era um horror. Eu saía correndo, não queria nem passar perto. Aí o Rogério Sganzerla me chamou a atenção para que o Orson Welles usava o termo experimental, e usava numa boa. É que o termo foi sendo rebaixado, sabe quando um termo perde a força? Eu decidi não usar mais este termo. Tanto é que o título do meu livro era O Experimental no Cinema Brasileiro. Eu acabei abolindo este título porque por mais que o Orson Welles goste, o Sganzerla use, pra mim não tinha força. Aí eu botei o termo invenção. As novas gerações, o pessoal que está fazendo curta, tem uma certa prevenção com o termo experimental. Alguns fazem cinema experimental e não assumem.

P: E como você vê a produção atual de cineastas daquela época que continuam na ativa fazendo filmes, e a renovação de suas propostas?

JF: Olha, aí tem que pegar caso a caso. O Bressane continua fazendo cinema experimental. Agora o Ivan Cardoso, se você falar pra ele de cinema experimental ele já nem quer mais saber. Com este Escorpião Escarlate que ele acabou de lazer ele quer mais é atingir o grande público, usar atrizes que são chamariz de bilheteria, enfim, passou para o cinemão. Eu não vi ainda este filme, mas As Sete Vampiras é um filme que não tem nada de experimental. O Carlão continua sendo experimental, sempre vai ser, ele é um experimentador, um inventor mesmo. Quando ele está fazendo música ele está fazendo música de invenção, ele sempre curtiu a vanguarda. Então continua fiel à proposta, mas sabe que não pode mais fazer um filme como Audácia!, que por sinal é um filme que ele quase renega. Na hora que ele renegar eu vou assinar no filme Jairo Ferreira. Eu fui co-argumentista, co-dialoguista, assistente de direção, continuísta, fotógrafo de cena e ator. Um cara que faz seis funções num filme desse é co-autor. Por quê é que não assinou lá um filme de Carlos Reichembach e Jairo Ferreira? Com o tempo ele passou a não gostar do filme e eu cada vez que vejo acho que é muito bom. Porque é uma porralouquice, tenta ser uma paródia do Bandido da Luz Vermelha, evidentemente sem aquela consistência, mas é uma tentativa de paródia da paródia, porque o bandido já era uma paródia.

P: O que houve na época foi uma auto-exclusão dos marginais ou se impôs esta exclusão a eles? Hoje esta exclusão está superada?

JF: A tendência naquela época era muito política. Era a ditadura do cinema novo. A ditadura ideológica do cinema novo é uma coisa muito séria. Foi por isso que o Rogério Sganzerla quando fez A Mulher de Todos decidiu romper definitivamente com o cinema novo. Quando ele fez o Bandido ele queria fazer parte do cinema novo, mas o cinema novo não aceitou. Na sessão do Bandido no laboratório Líder, quem conta muito bem esta história e o Fernão Ramos no livro dele, o Rogério convidou todos os cineastas do cinema novo que ele pode. O Glauber saiu sem falar uma palavra e as outros silenciaram também por se sentiram ameaçados: "Pô, esse Rogério parece que é mais talentoso do que todos nós aqui juntos". Então se criou uma briga, uma coisa idiota pra burro, coisa de ciúmes. Isso também pelo fato de que o Rogério era muito pretensioso, já queria logo de cara achar que era melhor que o Glauber.

Quem tinha rompido antes só que não falou isso publicamente foi o Candeias. Ele fez A Margem para contrariar o cinema novo, que ele detestava. Ele diz que o cinema novo é hollywoodiano, por que é todo feito em cima de roteiro. Os filmes do Glauber tem três, quatro roteiros até chegar à versão definitiva. O cinema marginal nunca fez roteiro. Roteiro só para pegar financiamento, depois não usa. Sai filmando conforme dá na telha, tem o filme na cabeça.

P: Mas a questão é se esse cinema foi marginalizado ou se marginalizou.

JF: As duas coisas. Ele foi marginalizado pelos distribuidores em função da pressão dos exibidores, que recusavam o cinema marginal. Alguns cineastas também falavam: "Eu não vou nem tentar mandar pra censura, eles vão prender mesmo. Vou perder a cópia que me custou tanto." Então tem vários filmes que nem constavam do Guia de Filmes. O Guia de Filmes foi aquela publicação da Embrafilmes que dava a listagem total da produção. Nesses anos de 67 a 71 tem 50 filmes que não constam do Guia de Filmes, que os diretores não mandaram para o Concine. Eles ficaram de fora da história, da história oficial. Mas aí essas cópias também não podiam ser exibidas, a não ser em sessões de cinemateca, c perderam totalmente o interesse comercial depois de alguns anos. Em 86 a censura liberou geral, aí está anistiado tudo. Mas como é que vai exibir um filme de 1970 em preto e branco, chamado Orgia, ou o Homem que deu Cria Não tem cinema que se interesse por um filme desse. Na época já era arriscado tentar lançar no cinema, depois tem um valor meramente arqueológico.
Houve um resgate primeiro pelo meu livro, que foi a síntese completa, e logo depois pelo livro do Fernão Ramos, e tem outros livros também. Tem um livro que não foi publicado de um pesquisador da Bahia. Ele fez entrevistas com dez cineastas do cinema experimental. Tentou editor e o editor achou difícil. É o mesmo editor do meu livro, ele falou "eu acho bom mas não dá para publicar porque não tá com condições". Eu abri o caminho, mas fechou no ato. O livro do Fernão Ramos está nas livraria até hoje, não esgotou a primeira edição. Quer dizer que não teve muita aceitação. O meu esgotou em três meses, está claro que houve uma aceitação total. Tem vários livros que são importantes e nuca foram reeditados, inclusive o Revisão Crítica do Cinema Brasileiro do Glauber.

P: Você colocou como uma das características do cinema marginal a figura do cineasta de um só filme. Qual a trajetória dos cineastas que se enquadram nesta definição?

JF: Por exemplo o Ebert tem feito recentemente filmes para a TV. Ele tem uma produtora de vídeo, nunca saiu da área, continua fazendo fotografia. O filme dele é o caso de filme preso por mais tempo na censura. 17 anos, de 69 a 86. A cópia desse filme sumiu na censura. A cópia que foi exibida na Mostra Cinema de Invenção foi feita recentemente, se pretendia lançar nos cinemas. Aliás o Candeias também trabalhou na TV Cultura, durante uns três ou quatro anos. Ele tem uma produção em vídeo que nunca foi pro ar por ser muito radical. Eu nem sei como ele ficou por lá tanto tempo se nenhum filme ia pro ar. Esses vídeos estão no acervo da TV Cultura. Eu não conheço nenhum, e tem dezenas. E ninguém viu. É trabalho de arqueologia mesmo. E é cineasta que está aí, está vivo, sabe onde deixou as cópias, pra quem quiser pesquisar. Imagine então se a pessoa morre. Tem um cineasta que está ameaçando toda hora que vai jogar os negativos de seus filmes no fundo de um rio, é o Luiz Rosemberg Filho. Tem filmes que ele fez que não tem mais cópia, e de um outro o negativo se perdeu. Quer dizer, eu não sei também se perdeu porque ele deixou que se perdesse porque era ruim mesmo. Também não vamos querer criar mito em cima de um negócio que era tão ruim que o próprio diretor destruiu. Não se sabe, nem vai se saber.

P: Os vídeos que o Rosemberg chegou a fazer ele ainda tem cópias?

JF: Deve ter. São altamente experimentais. O mais legítimo cinema experimental feito em vídeo.

P: O Antônio Lima, o que está fazendo?

JF: O António Lima voltou para Belo Horizonte. Tem a família lá e voltou a ser jornalista. Não quer mais saber de cinema, nem de ir ao cinema. Bom, ele nunca foi experimental, só fez o episódio de As Libertinas e do Audácia!, mas teria feito cinema comercial.

P: E o Otoniel Santos Pereira?

JF: Recentemente o Carlão me deu notícias dele, está no ramo de publicidade. Esse aí ganhava todos os prêmios de super-8, além de ter feito o curta O Pedestre, em 66. É interessante notar que o cinema experimental antes de acontecer como movimento aconteceu através de curtas. Por isso é que eu digo que esta movimentação atual de curtas pode dar daqui cinco, dez anos (se tanto) numa nova fase do cinema experimental.

P: E como você vê o núcleo de cinema do Sul?

JF: O Ilha das Flores é surpreendente. Eu acho cinema experimental de primeiríssimo time. É um fenômeno. Prova que do curta metragem é que estão saindo as revelações. No Sul tem gente muito talentosa. Meia dúzia pelo menos de primeiro time. Alguns deles já passaram inclusive pelo longa, e fizeram bons filmes.

P: Como você vê o boom do curta?

JF: Esse boom foi de tendência nitidamente cine-mão. Dos quatro premiados de Gramado 86, tem o Ma che, Bambina! que é o mais experimental. O resto é bem cinemão. Então se fala o boom do curta. Tem o boom do curta de tendência cinemão e o boom do curta de tendência experimental. No experimental a tendência é muito menor. O formato curta é o mais propício para experimentação, mas a maioria que começa quer fazer cinemão. É a tendência errada, é um equívoco. Porque a lei do curta não tem mais, não tem lei de nada. Então vai exibir um filme de curta metragem pra que público? Se fosse experimental ele teria um valor histórico. Sendo de cinemão vai ter valor histórico pra pesquisadores futuros, pra ver pra que fizeram tantos filmes cinemão se não iam exibir mesmo. Pra frente algum pesquisador vai abordar a questão e ver qual foi a utilidade desses filmes, que eram centenas ao ano. Agora caiu à metade. Mas mesmo assim foram cerca de quarenta curtas no ano passado. Sem contar a produção em vídeo, aí vai mais 3(M) cineastas. De tanta quantidade, pelo menos cinco por cento de qualidade, de qualidade eu quero dizer experimental.

P: Na década de 70 havia exibição de curtas além de cine-jornais?

JF: Nos anos 70 as curtas que eram exibidos era através do prêmio de qualidade. Teve uma época que era uma massa imensa de curtas. O primeiro boom do curta foi no INCE. O INCE foi fundado depois do Estado Novo, parece que em 37. Instituto Nacional do Cinema Educativo. Se fazia tantos curtas nessa época que o Humberto Mauro foi contratado como funcionário curtametrageiro oficial. Era empregado e fez curtas durante 30 anos. Era mais ou menos como o National Film Board of Canada. O INCE durou até o comecinho da década de 60. Aí começou o INC, que inicialmente deu importância só aos longas. Começou a pintar um ou outro curta, foi crescendo o volume e o instituto resolveu dar um prêmio de qualidade para esses curtas. Ma quem ganhava era só a panelinha de cineastas do cinema novo. Por exemplo o David Neves tava sempre ganhando prêmio de qualidade. Era uma jogada política dos diretores do INC. O INC acabou em 69 e começou a Embrafílme. Aí a lei do curta você já sabe a história.

P: Além do prêmio de qualidade qual a importância do adicional de bilheteria?

JF: O adicional de bilheteria da prefeitura era excelente e existia desde o fim dos anos 50. Foi abolido entre 70, 71, por aí. A desvantagem é que o prêmio era proporcional à renda do filme, então Mazzaropi, que era a maior renda da época ganhava o maior adicional de todos. Querem que isso volte, o Carlão Reichenbach por exemplo. Mas aí tem que ser um adicional reformulado, tem que ser um adicional maior para um filme de menos sucesso e um menor para um filme de mais sucesso. Tem que haver um equilíbrio nessa história para evitar que quem não precisa do adicional leve a maior parte da bolada.

Entrevista feita por Paulo Sacramento e Arthur Autran

1 Comments:

At 14:16, Blogger leleo said...

Pô, show de bola essa entrevista. Parabéns.

 

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