4.3.08

A vida de Noel Rosa, na visão de Sganzerla

JAIRO FERREIRA

Rogério Sganzerla, realizador de alguns dos melhores filmes do cinema brasileiro ("O Bandido da Luz Vermelha"/68 e "A Mulher de Todos"/69), pelo que deflagraram no processo cultural do País, ficou muitos anos afastados das câmeras ("para não me confundir com a mediocridade dominante" ) e só voltou à tona em 1977, quando filmou "O Abismu ou Sois Todos de Mu e Não Sabeis", inexplicavelmente ainda não lançado pela Embrafilme. Esse mesmo órgão, de forma curiosa, concedeu-lhe, entretanto, um bom financiamento para a realização de "Papai Noel Rosa", cujas filmagens se iniciaram há 15 dias no Rio de Janeiro. Sganzerla veio a São Paulo rever amigos num fim de semana e se manifestou entusiasticamente sobre seu novo filme:

"Noel, gênio total, mestre inconteste da língua, nos faz vibrar o que de melhor se produziu em termo de texto – com uma única exceção nesse século: Guimarães Rosa. A sua performance lingüística é comparável a de um Euclides da Cunha, por exemplo (e quem mais?). Noel aproxima a noção básica do texto com a mente livre e em seus ideogramas e epigramas lapidares compõe a nova e natural língua milionária de um Brasil menos burro e mais profundo".

"Ao contrário do que se pensa, não há em Noel crítica de costumes, mas apenas o ritmo adequado à construção física do carioca. Basta citar suas opiniões, transcritas por um pesquisador, para perceber que o homem, além de escrever bem demais, pensa diferentemente e propõe algo que os malandros neurastênicos, egocêntricos ou inconseqüentes da imensa e necessária roda de nacional não pensaram fazer: Noel é um pensador e, nesse sentido, só pode ser comparado a Jimi Hendrix.

Essa ligação Noel Rosa/Jimi Hendrix pode parecer pouco ortodoxa aos estudiosos da música popular brasileira, mas não assusta a quem teve a sorte de assistir ao "Abismu" em sessão especial. Nesse filme, Sganzerla utiliza músicas do genial guitarrista do início ao fim. E não faltam pontos de contatos entre ambos, que morreram tragicamente na flor da idade. Mas prossegue Sganzerla:

"Som natural e pré-historicamente milionário: samba/embolada Identificação com o subconsciente coletivo através de uma nova prosa urbana, livre e bem acabada, onde, como em Hendrix, não se perde tempo em odes à namorada ou suspiros pretensamente românticos. Não. Noel como Hendrix propõe mudar a mente contemporânea ("I could change your mind; I don't live today maybe tomorrow"/"Até manhã se Deus quiser: quem gosta de mim sou eu").

Visionário, Hendrix realmente "não viveu em sua época, talvez amanhã". Seu som está muitos anos na frente de tudo que se faz hoje em música Pop. E Noel Rosa é um caso raro de poeta, músico e pensador brasileiro dos anos 30 que continua atual. Tão atual – ou à frente – que só agora começa a ser redescoberto. E, como se vê, através do cinema, arte que às vezes aspira a ser música (velho e sempre novo ideal grego: toda arte aspira a ser música). Sganzerla sabe disso há muito tempo.

"Feitiço sem farofa, sem vela, sem vintém. Noel, o gênio – et pour cause –incompreendido, vitimado por mal-entendido histórico. Noel, o maior criador rimbaudiano, o surrealista mascarado, o provocador de versos, o homem do silêncio e do ruído brutal, mestre alquímico do repouso e do movimento, da presença e da ausência. Basta estar atento às musicas como "Malandro Medroso" e "Maria Fumaça", absolutamente cerebrais e aparentemente "inconseqüentes". Afora a capacidade do improviso e da gesta épica, cartilha do poder que eu me proponho a decifrar para a grande massa ignara de intelectuais medíocres: poucos ou quase ninguém entendeu ao nível da criação da obra e importância interna de Noel ou Hendrix, aliás, criadores comparáveis não somente pela extensão de sua vida curta, gênios ceifados em plena flor da idade, mas pela quantidade e versatilidade de sua obra extensa, da capacidade de tentar e não conseguir repetir-se (ou autoparodiar-se) no verso polido ao máximo abissal e sempre ameaçador à mente convencional".

Para interpretar o papel de Noel Rosa nesse filme, que já consumiu três anos de pesquisas, Rogério Sganzerla escolheu Joel Barcelos, cuja semelhança (Noel/Joel) física com o poeta é flagrante Mas as semelhanças não param aí: Sganzerla também tem alguns traços noelinos. O cineasta, que já foi jornalista não concede "entrevista": ele mesmo senta numa mesa da redação e produz seus textos deflagradores. Termina de datilografar uma parte da "entrevista" (melhor seria falar em "inter-vista"/ e entrega ao "repórter" o manifesto que se segue:

"Chegou, senhoras e senhores, a hora de abrir o jogo e instalar imediatamente os pingos nos "is" do panteão da mente livre, isto é, sem medo do novo homem e da nova humanidade. Chegou a hora de abrir o jogo após um decênio de fidelidade e pesquisa em todo sentido encampando as verdades históricas de obras verticais que se elevam por altíssimos páramos até horizontes insuspeitados ou inalcançados pelos outros contidos viventes. Noel ou Hendrix ou a grande obra de arte – do deslimite da criação total – gênios, sim, propõem tudo o que um imbecil de classe jamais poderá entender. Mas eu, por exemplo, entendo a burrice e até faço questão que continuem assim para mais facilmente caírem do cavalo".

"Noel, o gênio total, morreu a 5 de maio de 1937, isto é, 9 anos antes de eu nascer, pôs em questão toda a necessária jogada da obra de arte barroca e moderna milenar e milionário deslimite da criação... Ponho os pingos nos "is" da historia e, a partir de agora, ninguém poderá ignorar a máxima importância desse soberano do verso e do reverso, artista e homem maior (sim, porque a essa altura não entrarei no equívoco luso-carioca de dividir o universo da criação da personalidade do artista necessariamente contingente e complementador). Chegou a hora de gritar alto e em bom som que o maior, feliz ou infelizmente, nessa terra, se chama Noel Rosa e que ninguém – ele é grande entre os grandes (na década prodigiosa de 30, entre Cartola. Lamartine, Ary e não sei mais quem) – sequer chegou a seus pés...".

"Noel, o gênio. Noel, o pensador. O criador – da condição oriental do artista, mesmo e principalmente se nascido nas condições adversas do capitalismo ocidental – artista maior invejado, explorado, agredido mas exatamente por isso maior ainda".

"Não me desculpem se pareço apologético, mas para falar de Noel é assim mesmo, só como seus companheiros e amigos sinceros intuíram e o povo de Vila Isabel até hoje intui e se refere a ele: um cara muito inteligente, um gênio – ou como se referiu Álvaro Moreyra, é muito grande esse pequeno Noel".

"E é isso que pretendo erigir: uma concepção nada medíocre do artista mais original e profundo de todo século que em sã consciência só pode ser comparado – pasmem – com James Marshall Hendrix em tudo, Orson Welles no cinema ou Shakespeare no texto e na habilidade (isto é montagem, ideografia do relacional do personagens...), os grandes e tradicionais exemplos exemplares provindos da mesma linguagem que produziu os gregos da fase áurea. Homero, Shakespeare, Dante, Cervantes, Camões, Castro Alves, todos eles, indistintamente, gênios totais".

Sganzerla já se desculpou pela apologia, mas nem era preciso: quem o conhece sabe que ele é assim mesmo – quando está filmando mergulha de corpo e alma no assunto, como se tentando reinventar o mundo através de um filme. A pretensão é grande mas o assunto também o é: uma vez terminado o filme, a visão que se tem da música popular brasileira certamente ficará abalada. Isso porque Rogério é um cineasta de terremotos – terremotos culturais que um movimento como a Bossa Nova, por exemplo, não teve sismógrafos para detectar. E, no entanto, tudo isso são coisas nossas, são nossas coisas – já
dizia o gênio.

(Folha de S. Paulo, 6 de setembro de 1979)

29.1.08

Cineasta fica nu para a platéia horrorizada

JAIRO FERREIRA
Enviado especial

Salvador – Durante a mostra "O Horror Nacional", ocorrida no recente festival de Brasília, o eminente homem de cultura universal e de cinema brasileiro em particular, Francisco Luis de Almeida Salles, afirmou que "é preciso horrificar as pessoas para que elas readquiram a visão, pois sem horror não há visão". Essa frase lapidar cai como uma luva nesta 7ª Jornada Brasileira do Curta-Metragem que se realiza aqui em Salvador. A única diferença é a cor local: parafraseando Almeida Salles, posso dizer que è preciso haver um desnudamento cultural, pois só assim as pessoas poderão readquirir a visão e ver com olhos livres, como propunha o poeta Oswald de Andrade.

Explicando melhor: o nível dos filmes apresentados na Jornada está tão baixo que, pior. è impossível. Uma situação que. evidentemente, reflete-se nos debates que estão tão insossos, "dirigidos" e repetitivos que chegam a saturar. Inesperadamente, porém, um acontecimento da maior importância sacudiu a poeira da polêmica provinciana, embora ainda não tenha dado a volta por cima: durante um dos debates mais repressivos, o jovem cineasta Edgar Navarro tomou o microfone e disse o seguinte: "Quem tem o microfone tem o poder. Agora eu vou enrolar vocês todos com o fio deste microfone, vou tirar toda a minha roupa e espero que vocês abandonem esta sala, porque eu quero ficar nu e só aqui. Vocês falam muito em realidade social, mas esquecem que antes é preciso se descobrir a si mesmo".

Tudo isso pode parecer exagero, mas não é: aconteceu aqui em Salvador, aliás, o único lugar do Brasil onde essas coisas poderiam acontecer. Parece que o calor escaldante que faz nesta cidade provoca alterações físicas e mentais nas pessoas. Como foi que isso aconteceu? Qual era a situação anterior que levou o cineasta Navarro a tomar essa atitude tão radical? Bem. na verdade, a maioria das pessoas está encarando isso como folclore. Por ora é oportuna a opinião do diretor da Jornada do Curta-Metragem, Guido Araújo:

"A Jornada tem uma tradição de liberdade muito grande, conquistada com muito trabalho e esforço durante os últimos sete anos. Meu único temor é que atitudes como a de Edgar Navarro possam comprometer essa mesma liberdade, porque muitas pessoas podem interpretar de forma equivocada e negativa aquele gesto. Sempre lutei para que houvesse muita alegria neste encontro, mas o cineasta foi longe demais. Minha esperança é que ele justifique a sua atitude, fazendo dela algo mais conseqüente".

No dia em que foi exibido o filme "Exposed", de Edagard Navarro, o chamado astral baiano estava muito carregado. Os cineastas foram chamados à mesa pelo coordenador dos debates, o crítico José Carlos Avelar e, um por um, foram dizendo o que já tinham feito em cinema antes do filme exibido no dia. No momento em que Navarro pegou o microfone, recusou-se a dar prosseguimento aquela chatíssima explicação de "curriculum vitae" e recitou em francês um rápido poema de Marcel Proust, lembrando seus tempos de escola. Até aí, tudo bem. Acontece que, logo depois houve uma intervenção, ou melhor uma provocação de Bernardo Vorobov, programador do Museu da Imagem e do Som de São Paulo: "Eu acho que, dos 15 filmes apresentados hoje, somente três devem ser debatidos aqui". Foi o suficiente para que Navarro abandonasse a mesa, dizendo que tinha recebido um sinal. Foi sentar-se no meio da platéia, humildemente, pois seu filme "Exposed", um dos mais aplaudidos na Jornada até aquele dia, não tinha sido citado entre os três escolhidos por Vorobov, uma situação em parte assumida pelo coordenador dos debates. Dai para o "strip tease", foi só uma questão de tempo. No dia seguinte, porém, Navarro pegou o microfone (depois de muita batalha) e fez uma respeitável autocrítica:

"Eu estava muito triste porque meu filme não podia ficar excluído da discussão. Com a minha atitude não tive intenção de agredir ninguém, porque me considero um pacifista. Perdi a minha mãe aos nove anos. Tive que ler muito Freud para me manter vivo, para conseguir chegar até aqui. Agressão é o que houve naquele debate em direção a mim e não da minha parte".

A atitude do cineasta, certamente, esta muito coerente com o seu filme "Exposed", palavra que vem impressa no fim dos cartuchos de filme Super 8 e que significa "exposto". O que Navarro fez não foi outra coisa: ele expôs o filme e completou o ciclo, expondo-se a si mesmo física e mentalmente ao público. Comentário do cineasta Rogério Duarte:

"A partir desse filme, eu começo a respeitar o Edgar como um grande cineasta. O filme è sobre ele mesmo e tem momentos de cinema superior: a cena em que aquele fogo queima na tela. com a música cantada por Caetano, "Coração Materno", é de arrepiar".

Por enquanto, estou cobrindo e descobrindo a Jornada do Curta-Metragem no que ela possa ter de cinema, compreendido como invenção e criação, pois é isso o que falta ao atual cinema nacional. Essa não e apenas uma opinião pessoal minha: o consenso da grande maioria dos cineastas aqui presentes também acha que não adianta nada ter uma lei e um mercado de curta-metragem nas mãos e nenhuma idéia na cabeça. Esta é portanto uma Jornada que nem Freud explica. Tudo termina amanhã, quando será exibido "25" (Vinte e Cinco) de Ze Celso Martinez, que chegou anteontem aqui. Estão presentes também Cosme Alves Neto, da cinemateca do Museu de Arte dpRio de Janeiro, os críticos Jean-Claude Bernardet e Alberto Silva, cineastas como João Batista de Andrade e Thomas Farkaz, além do ministros das comunicações Euclides Quandt de Oliveira, que deverá chegar para uma mesa redonda. Resta esperar que eles expliquem o que nem Freud explica.



22.1.08

Biáfora: tentações de um raro cineasta


"A Casa das Tentações", escapando milagrosamente à mediocridade geral do cinema que se faz atualmente em São Paulo, começa a ser exibido a partir de hoje nos cines Copan, Regina, Augustus, Gazeta, Palmela e San Remo. Trata-se do terceiro longa-metragem de Rubem Biáfora, um cineasta brasileiro que só faz cinema de dez em dez anos: em 1957, realizou "Ravina" e, em 1967, "O Quarto".

– O mínimo que eu posso dizer é que não estou me repetindo. Quando fiz "Ravina", minha preocupação era desenvolver um certo tipo de romantismo, que terminou sendo uma experiência gótica. Já em "O Quarto", procurei o verismo e muita gente começou a dizer que eu tinha aderido ao neo-realismo. Mas não era bem isso: no fundo mesmo, o que interessa é que os filmes tenham consistência humana. E é isso que eu tento fazer novamente agora, mas partindo para uma comédia que tem base dramática.

Utilizando uma narrativa anti-linear, isto é, sem o tradicional começo, meio e fim, o novo filme de Biáfora ambienta-se "nas altas e também nas pequenas esferas sociais", procurando devastar os bastidores e desmascarar o comportamento hipócrita da maioria das pessoas.

– Meu filme gira em torno da corrupção, da mediocridade e também da ingenuidade dos chauvinistas subdesenvolvidos. Todos estão procurando um lugar ao sol, correndo atrás do dinheiro. O personagem de Pedro Stepanenko, por exemplo, tem um diálogo bem esclarecedor: "Vamos explorar o ponto fraco dessa gente decadente", diz ele. Basicamente o filme é a história de dois vigaristas que exploram a profissão mais antiga do mundo, mas devidamente encobertos por uma fachada. A minha defesa foi jogar um sarcasmo em cima deles, atingindo os tradicionalistas decadentes e os incompetentes de forma geral.

O cineasta define seu filme como "uma farândola", realizando um tipo de cinema que não pode ser classificado como pornochanchada, Cinema Novo ou Cinema Marginal O que será então?

– Como gênero, fiz uma mistura de drama e comédia, apresentando recursos ora oníricos, ora realistas e, muitas vezes, com alusões bíblicas. Confesso que a intenção inicial era só dramática, mas depois, trabalhando o comportamento dos personagens, fui acrescentando o sarcasmo em cima de quase todos. Para surpresa de muita gente, um dos personagens que eu mais respeito no filme é o do "hippie", interpretado pelo Flávio Portho, que tem uma preocupação mística e se destaca dos demais.

Em seu livro "Revisão Critica do Cinema Brasileiro", Glauber Rocha fez duras criticas à "Ravina", realizado em co-direção por Rubem Biáfora e o falecido Flávio Tambellini: "Ravina é a coroa mortuária de uma mentalidade pequeno-burguesa que persegue um ideal aristocrático. Pasticho mal feito de dramalhões argentinos, por sua vez influenciados por antigos dramalbões americanos de William Wyler, notadamente "Jezebel" e "O Morro dos Ventos Uivantes", "Ravina" é um exemplo de como não se deve fazer cinema em qualquer parte do mundo". Mas o próprio Glauber Rocha se retrataria mais tarde, enviando uma carta a Rubem Biáfora, por ocasião do lançamento de "O Quarto", em 1968, onde confessou que "esse filme é um depoimento comovente e humano".

Com uma carreira cinematográfica que tem 30 anos, embora seus três filmes longos não lhe tenham ocupado mais do que seis anos, Rubem Biáfora é também uma das maiores autoridades de cinema no Brasi. Faz arquivo de filmes desde 1928, guardando tudo sobre os lançamentos do cinema estrangeiro e nacional. Sem maiores esforços de memória, consegue lembrar os principais dados dos filmes exibidos no Brasil principalmente até 1950. Dai para cá, ele prefere consultar os índices. Mas seu novo filme não tem quase nada a ver com essa erudição. Ao menos é o que ele garante:

– Em "A Casa das Tentações", só identifico uma influência muito leve de um filme de Vincent Sherman, com Ida Lupino e alguma coisa de "Cul de Sac" ("Armadilha do Destino"), de Roman Polanski, no que diz respeito ao absurdo e à perversidade. E lógico que tem ainda a influência absorvida dos musicais da Metro, particularmente de "O Pirata", de Vincent Minnelli. O que fica no inconsciente é uma coisa e outra é fazer citações propositais, coisa que eu evitei, pois não teria cabimento fazer isso quando estou procurando fazer um trabalho pessoal. Considero satisfatório o resultado plástico do filme, a procura da intensidade dramática na cor. Como se sabe, poucos se preocupam com a cor entro nós e eu acho que isso é uma necessidade, mas não teria sido possível se o fotógrafo Cláudio Portioli não tivesse entendido as minhas intenções, tanto que ele foi ao mesmo tempo fotógrafo, iluminador e assistente de direção.

Com um elenco dos mais diversificados do cinema nacional, o filme deu uma boa oportunidade ao diretor para trabalhar com tipos humanos. Os atores principais são Flávio Portho, Elizabeth Gásper, Pedro Stepanenko, Cavagnole Netto, Francisco Curcio, Áurea Campos, entre outros, mas a vasta galeria é completada por participações de elementos dos mais variados setores do cinema nacional: Rubens Ewald Filho, crítico de cinema; Fauzi Mansur, Carlos Reichenbach, Heron D’Avila, Edward Freund, Anselmo Duarte, todos diretores de cinema. Outras figuras de destaque que também estão no filme: Bernardo Vorobow, Paula Ramos, Miro Reis, Wilson Louzada, Betina Viany, Liana Duval, Leina Krespi, Marlene França, Selma Egrei, Paulo Hesse, Pedro Paulo Hatheyer, Sérgio Hingst, Arasary de Oliveira, a bailarina Marilena Ansaldi e Silvio Reinoldi, o próprio montador do filme.

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 29 de agosto de 1977)


20.1.08

Khourioso, cafônico, paleolítico

O cinema paulista continua desenvolvendo, ainda, a pior dramaturgia do País, transformando atores de carne e osso em estátuas caricatas na linhagem remanescente da velha e paleolítica Vera Cruz, esse fantasma que ressurge até mesmo nas pornochanchadas. "A Noite das Fêmeas" (em cartaz nos cines Olido e República) traz esse mofo dramático de uma forma talvez inconsciente, já que o diretor Fauze Mansur julga estar dando "um salto adiante". Ledo engano, diria aquele locutor de voz cavernosa, outra figura típica dessa tendência tétrica.

O filme é khouriano (ou melhor, "khourioso") a partir dos letreiros de apresentação: duas máscaras que lembram civilizações antigas e sombrios toques de um piano "cafônico", diluição do estilo "dodecafônico" que Rogério Duprat produzia para o Walter Hugo Khouri de dez anos atrás. "A vida imita a arte"? Mas desde quando Oscar Wilde é lido na Boca do Lixo? "Assim é se lhe parece"? Uma coisa é certa: se Fauze Mansur conhecesse a última frase, que é de Pirandello (1867-1936), antes que esta crítica fosse publicada, teria mandado o seu trucador colocá-la às pressas nesse filme pretensioso, ma irremediavelmente retrógrado, mas não atonal. Talvez, nesse caso, sobrasse a frase, já que sem ela sobra muito pouco.



Marlene: imitando o pior da vida

O erro de Fauze Mansur neste filme é o erro do "Movimento Boca do Lixo" de uma forma geral. São cineastas semi-analfabetos que querem se "intelectualizar". Fauze fez bons filmes ( "Sinal Vermelho", "A Noite do Desejo", "Sedução"), mas agora quis dar um salto maior do que a perna. Ele não sabia que era preciso muita cultura semiológica e metalinguística para mexer com realidade/ilusão, ator/personagem e outros babados. A culpa é também de Marcos Rey, o argumentista, responsável por algumas das piores coisas que tem surgido ultimamente. O resultado é esse: Jean Garret não se assume como um bárbaro sem cultura e entra bem com "Possuídas pelo Desejo"; Fauze Mansur não se assume como um classe média de linha árabe e quer chegar a ser um Khouri, mas usando um câmera que treme mais do que terremoto (Cláudio Portioli é bom apenas como fotógrafo e iluminador). Assim não dá!

Para demonstrar como o diretor não se assume: o título original é "Ensaio Geral", conforme se vê nos letreiros. Já não bastava encher os cartazes de gratuitas mulheres nuas? Não. Fauze Mansur ainda arrumou um título apelativo: "A Noite das Fêmeas". E isso tudo poderia ser esquecido se o filme tivesse fluência narrativa e humor, duas coisas fundamentais que ele não tem. A narrativa é pesada e consegue dar um blefe no espectador, pois oculta apenas um grande vazio.

O que adiantou esse grande elenco "all star"? O melhor é Carlos Bucka, que se salva por mérito pessoal, ajudado por seu porte físico de jovem Orson Welles. Os demais, como Marlene França são vítimas do clima de tensão que passou dos bastidores para a tela e ficou estampado em fisionomias contraídas: a arte imitou a vida no que ela tinha de pior. E o que parece que não havia na vida (leia-se ambiente de filmagem) é o que falta em quase tudo que se faz nesta Capital: humor. Há quem pense que humor é necessário só em comédias. Outro ledo engano. Se o filme pretendia ser um drama leve, resultou num dramalhão pesado.

Com todos os erros, "A Noite das Fêmeas" está fazendo grande sucesso de bilheteria: rendeu 27 mil cruzeiros no primeiro dia de exibição no cine Olido, contra 32 mil de "Dona Flor e Seus Dois Maridos" no cine Ipiranga. O ruim imitou o pior.

Jairo Ferreira


(Folha de S. Paulo, 27 de novembro de 1976)

16.1.08

O jazz criminal do pistoleiro Calmon

JAIRO FERREIRA

Em Hollywood, ainda um paraíso dos artesões de cinema, o fato é rotina: um diretor faz contrato com determinado estúdio por alguns anos ou por um série de filmes, indo, depois, para outro estúdio, sempre realizando trabalhos de encomenda. No Brasil, sequer há estúdios (há galpões improvisados): o diretor artesão pode trocar, quando muito de produtor. Isso está acontecendo com Antonio Calmon, diretor de "Eu Matei Lúcio Flávio" (a partir de hoje nos cines Ipiranga, Metrópole, Art Palácio São Paulo, Rio Branco e circuito): após uma profícua associação com o produtor Pedro Carlos Rovai, ele experimenta o estúdio Magnus Filme, de Jece Valadão. Segundo referências, trata-se de novo salto qualitativo na carreira de Calmon, pistoleiro de aluguel que faz filmes como quem toca jazz:

– "Eu Matei Lúcio Flávio" é meu sétimo longa-metragem e também meu trabalho mais completo e realizado. Nesse filme eu apenas não tive melhores condições de trabalho como também creio ter chegado a um amadurecimento como diretor. É nele que concretizo a proposta que desenvolvi em meus três últimos filmes ("Gente Fina é Outra Coisa", "O Bom marido" e "Nos Embalos de Ipanema"), ou seja, a de um cinema basicamente preocupado com o grande público e com a criação de uma dramaturgia popular, sem os cacoetes de estilo geralmente associados aos filmes de preocupação social, produzidos no País. O primeiro dado dessa proposta é o rompimento com a leitura política inaugurada pelo Cinema Novo nos anos 60 e com a ideologia a ela subjacente.

Eu critico o que se convencionou chamar de cinema político pela sua ineficácia em chegar ao grande público, embora teoricamente esses filmes tratem de seus problemas. É um cinema feito por intelectuais, estudantes universitários e demais representantes de uma elite cultural ilhada num país onde a maioria da população é analfabeta – ou semi-analfabeta.




– O subdesenvolvimento provoca em nós uma necessidade de autojustificação por nossa incômoda situação de minoria privilegiada num país onde a miséria cresce assustadoramente. Estou farto da discussão interna e culposa, das regras do bom-tom artístico, assim como da boa consciência política. Acho que é função do artista brasileiro contemporâneo transformar-se numa espécie de antena receptora das manifestações de mudança acelerada em processo no Brasil com todas suas contradições. E numa segunda etapa, o artista deve transformar-se numa antena difusora que participe da criação de uma cultura de massas para brasileiros. Ou seja, estou preocupado com o novo e não com a cultura bacharelesca, mesmo que de oposição. Não adianta tentar combater a avalanche de filmes estrangeiros e nossa própria produção baixamente comercial com filmes ascéticos, cheios de dignidade mas incompreensíveis para a massa.

Cabe lembrar que Calmon teve uma formação eclética: foi assistente de Arnaldo Jabor ("Pin-orama") e Glauber Rocha ("O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro"), mas também de Júlio Bressane ("Cara a Cara") e Gustavo Dahl ("O Bravo Guerreiro"). Ele é um dos poucos que assimilou o melhor do Cinema Novo e o melhor do Experimental que se opôs ao Cinema Novo, quando este começou a ficar velho. Filho de ambos movimentos, muito distintos, por sinal, Calmon já começou a ser ele mesmo há algum tempo – talvez seja o caso de se falar numa terceira posição, mas é melhor não criar rótulos.

Esse "novo produto cultural para a década de 80", pelo visto, começa a ser feito pelos mesmos cineastas dos anos 70: Glauber Rocha terminará "A Idade da Terra"?; Rogério Sganzerla começou seu filme sobre Noel Rosa e prepara "Toda a Mentira"; Júlio Bressane está concluindo "O Gigante da América"; Neville de Almeida conclui "Os Sete Gatinhos". Mas é Calmon quem dispara na vanguarda da retaguarda artesanal, porque é o que tem mais auto-crítica e demonstra que soube aprender com os erros de seus colegas de geração.

– Em "Eu Matei Lúcio Flávio", começo a desenvolver um novo momento na busca de um cinema popular e contemporâneo. Trabalhar com e para Jece Valadão é muito mais do que um relacionamento de um diretor com o ator produtor. A meu ver, o Valadão é um dos raros arquétipos de comportamento nacional com quem a população se identifica de maneira completa. Talvez disso decorra a imagem negativa que dele circula entre as elites: cafajeste, violento, machão, grosso e portanto, de direita. Acho que o comportamento do personagem Jece Valadão é recusado pela intelectualidade por não constar dos manuais importados que guiam nosso pensamento político. E nem poderia já que ele ó um brasileiro autêntico e não o Cllnt Kastwood que os escravos de Hollywood cultuam nem o Gian Maria Volonté com quem nossa esquerda se delicia. Mas um herói ou anti-herói nacional. Prefiro assumi-lo em sua complexidade a etiquetá-lo com rótulos e preconceitos. Acho que o carinho e a admiração que o povo tem por figuras como o Jece ou o Roberto Carlos transcendem os rígidos padrões ideológicos que os condenam.

– Mas para mim o desafio maior foi fazer um filme baseado na pessoa do ex-policial Mariel Mariscott, essa figura notória da crônica policial carioca. Ele já estava indiretamente retratado em "O Passageiro da Agonia", de Hector Babenco, um de nossos raríssimos filmes em que a qualidade não prejudicou a comunicação com o público e onde se dava o confronto do bandido Lúcio Flávio, quase transfigurado num guerrilheiro urbano, e a figura do policiai Moretti, representante da repressão e da corrupção. Meu filme é deliberadamente mais ficcional, embora procure demonstrar que a violência criminal e a violência policial são duas faces da mesma moeda.

– Mariel Mariscott, ex-salva-vidas, ex-leão de chácara, ex-agente da policia judiciária, ex-guarda-costas de dois ministros da República, ex-homem de ouro da polícia carioca – está preso e é acusado de vários crimes do Esquadrão da Morte. Esse esquadrão surgiu logo após a criação, pelo então secretário da segurança carioca, de uma equipe para o combate ao crime organizado no Estado da Guanabara. Diga-se de passagem que isto aconteceu no auge da repressão policial do período Médici.

– A prisão de Mariel Mariscott não significou o fim das violências e arbitrariedades da polícia civil e militar; pelo contrario, hoje está mais claro do que nunca que a polícia existe para a manutenção de um "apartheid" menos ostensivo que o da África do Sul, mas igualmente odioso. Assim como o cinema, o teatro e a literatura que alienam do seu consumo a maioria da população. Não vejo diferença entre policiais torturadores e os criminosos que nos assaltam e assassinam. Mas como cidadão responsável não posso deixar de ver em nós mesmos, representantes da "intelligentsia" nacional, uma considerável parcela por toda essa violência. O povo é a nossa musa, mas não faz parte do nosso cotidiano.


(Folha de S. Paulo, 8 de outubro de 1979)

13.1.08

Zé Mojica na busca de uma manchete

JAIRO FERREIRA

"Respeitada seja a visão de quem quer ver; mesmo que essa visão provenha das projeções mentais de um cego". Com essa epígrafe visionária, digna do melhor Jorge Luiz Borges, do melhor Jerônimo Bosch e do melhor William Blake, para citar apenas três gênios poéticos de diferentes épocas e nacionalidades, tem início "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo", extraordinário filme de José Mojica Marins que estréia hoje nos cines Premier e Avenida.

Comparar Mojica Marins aos gênios citados pode parecer ousadia exagerada, mas não é. O cineasta paulista não pode ser entendido e nem discutido a partir de referências meramente cinematográficas, porque o cinema brasileiro está vivendo um momento medíocre, um vôo rasante na cultura, enquanto Marins se destaca como artista único, o primeiro dos cineastas obrigatórios desse deserto fílmico. O único detalhe é este: a necessidade de separar o joio do trigo, de não confundir "Delírios de um Anormal" com "À Meia Noite Encarnarei no teu Cadáver" ou "Perversão" com "À Meia Noite Levarei sua Alma". Em outras palavras: Marins é capaz do pior e do melhor e "Manchete de Jornal" é o que ele fez de diferente depois de alguns anos de repetições e desacertos. Fala o gênio:

– "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo" é um filme que fiz num fim de ano, com produção dos meu técnicos habituais, dedicado a eles, uma boa forma de dar um prêmio a eles. Náo vou ganhar um tostão com esse filme porque as porcentagens são todas da equipe, principalmente Satã, o homem que tem sido visto como meu guarda-costas, que me acompanha em tudo o que faço. Foi ele que me socorreu no fim do ano passado, quando o caixão que também me acompanha nos últimos 16 anos caiu sobre mim, no fim de uma macabra festa de aniversário (onde o homenageado era justamente o caixão), o que me valeu uma boa fratura da clavícula. Eu estava formando uma dupla com Satã, semelhante ao Mandrake e ao Lothar, e não poderia deixar de ir à Espanha mostrar meus filmes. Se consegui chegar lá, munido de sete atestados médicos, foi com a colaboração de Satã.




Marins, Satã e Antonio Ráfales: menção especial na Espanha

– O que eu mostro nesse "Manchete de Jornal" é a trajetória de um jornalista que sai de casa de manhã, buscando uma manchete. Mas é preciso saber ver: o que eu entendo por jornalismo não é o que outros entendem. Já me perguntaram porque esse jornalista, que eu mesmo interpreto no filme, tem as unhas compridas. Respondo que ele está fazendo uma promessa: não cortará as unhas enquanto não conseguir a manchete, se conseguir. A manchete que ele busca não é uma noticia comum, sensacionalista, dessas que se lê nos jornais diariamente. Esse jornalista busca algo que os outros jornalistas não buscam e que é a informação que ninguém deu. Ele não é um repórter acomodado e por isso sofre, fica decepcionado com a realidade. O roteiro é fruto de minhas leituras do Apocalipse bíblico, mas interpretado segundo a minha visão.

Como já assisti ao filme, posso confirmar que Mojica Marins está na pista certa da informação nova. O que o jornalista de seu filme busca não é nada mais do que a informação de primeiro grau, essa mosca branca dos anos 70. Com efeito e como é feito: isso é o mais importante do filme. Contando com um mínimo de recursos de produção, o cineasta consegue o máximo de concentração. Há no filme, inclusive, uma sequência de implosão da informação: o jornalista visualiza o Apocalipse da comunicação, com mil imagens que são projetadas a partir de sua mente. Dai a sua consonância com "O Aleph" que, curiosamente, o cineasta não leu, porque seus livros habituais não são os de Jorge Luis Borges, mas simplesmente historias em quadrinhos.

– Eu tinha esse roteiro guardado há muitos anos e não encontrava uma oportunidade pra realizar o filme. Muitos cineastas queriam me comprar o roteiro, mas não abri mão. Eu sabia que esse filme poderia significar um renascimento da minha carreira e as pessoas que viram o filme disseram exatamente isso: que é o melhor que já fiz desde os primeiros, principalmente os dois de horror, "À Meia Noite Levarei sua Alma" e "À Meia Noite Encarnarei no Teu Cadáver". Eu quis mostrar que existo também sem o Zé do caixão, mas o jornalista desse filme é uma projeção desse personagem. Eu disse na Espanha que uma coisa é Mojica Marins e outra é o Zé do Caixão. O sofrimento do jornalista é o meu sofrimento. Zé do Caixão busca o filho perfeito, que só pode ser feito com a mulher perfeita. O jornalista busca a manchete também perfeita.

O repórter que eu interpreto no filme tem um prazo de 24 horas para conseguir a manchete redentora de ano novo. Toda a ação do filme se passa em um dia. Um dia que vale por todos os dias porque, nessa véspera de ano, o repórter vê o mundo interior, vê a história da humanidade e vê todas as desumanidades possíveis. Essa é a realidade dele. Não fui eu que inventei o horror: o horror existe no cotidiano. Meu filme apenas reflete um pouco desse horror. O que eu inventei é o filme. Tive garra pra fazer esse filme, inventando sempre o que ainda não foi inventado, porque aquele que inventa o que já existe deixa de ser inventor.

– Sei que "Manchete de Jornal" é um filme que vai mexer com a classe dos jornalistas, mas acho que vai agradar aos bons jornalistas, aos que se dedicam de corpo e alma ao seu trabalho e que fazem de sua profissão não apenas um ganha pão. Não tive a intenção de fazer nenhuma critica aos maus jornalistas, inclusive porque estou sempre dizendo que a visão que eu tenho do jornalismo é particular, minha. Eu vejo o jornalismo da forma que está no filme. Se essa forma não corresponde à realidade, se não é bem assim, isso não me interessa. Eu acho que sou autêntico porque tenho coragem de filmar o que penso.

Mojica Marins não pode ter realmente nada contra o jornalismo brasileiro porque nenhum outro cineasta foi tão promovido como ele. Em seus estúdios da Mooca, tive oportunidade de ver o arquivo do cineasta e fiquei impressionado: todos os jornais brasileiros lá dedicaram páginas e mais paginas a ele. No estrangeiro, depois de Glauber Rocha, Mojica Marins é o cineasta mais comentado. Revistas francesas dedicaram várias páginas ao homem, que parece ser insaciável: Mojica Marins reclama que a maioria dos jornalistas que o entrevistam terminam a conversa no ponto em que deveria começar. Insatisfeito com essa situação, está escrevendo atualmente vários livros, tendo um deles já pronto ("O Universo de Mojica Marins", mesmo título do documentário que sobre ele fez Ivan Cardoso). Seu sistema de trabalho é este: nunca pára de filmar e, quando chega em casa à noite, liga um gravador e vai até altas horas da madrugada, expondo ao microfone a sua revolta constante contra o mundo, contra as injustiças que ele diz ver durante o dia. Como não pode fazer uso da máquina de escrever, devido ao comprimento de suas unhas (que variam entre 5 e 10 centímetros), deixa a tarefa de compilação a cargo de seu filho, um garotão que curte música de discoteca.

Em suma: "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo" é o filme mais revelador desse universo fantástico de José Mojica Marins, não apenas um cineasta-inventor, mas basicamente um poeta visionário, um grande pensador, o criador da metafísica do povão. Tudo o que ele pensa sobre jornalismo, informação e comunicação está nesse filme, obra absolutamente deflagradora, visceral e generosa. Trata-se se de um filme único e legítimo porque não é imitação e, certamente, não terá imitadores.


(Folha de S. Paulo, 4 de junho de 1979)

10.1.08

Brincando com um revólver de verdade

JAIRO FERREIRA

Sempre ouvi dizer maravilhas de Marco Ferreri, mas nunca pude constatar pessoalmente. Ele já fez mais de 30 filmes e, desses, nem 10 chegaram ao Brasil. Não sou entusiasta de seu filme mais famoso, "A Comilança", e só começo a descobrir o cineasta depois de ter assistido "Dillinger está Morto".

O título vem de uma manchete de Jornal antigo, encontrado por acaso por um cidadão (Michel Picolli) de bom nível social, sobre o qual pouco se fica sabendo durante o filme todo. Há um dialogo inicial entre ele e sua mulher e, em seguida, o homem começa a "não fazer nada'': anda de cá pra lá dentro de seu apartamento, liga a TV, ouve rádio, começa a preparar um jantar. Essa brincadeira, sem diálogos, é sustentada por uma narrativa apoiada exclusivamente na imagem. A câmera o acompanha inquietamente, mas quem tem que perscrutá-lo é o espectador, se é que conseguirá.

Estamos diante de um filme experimental, claro. Pensei logo em "Matou a Família e foi ao Cinema" (1969), de Júlio Bressane, também tirado de uma manchete de jornal. Ferreri não mata a família: mata a mulher e não vai ao cinema (já tinha feito uma sessão de cinema para ele mesmo), senão ao Taiti!


Se há 5 minutos de diálogo no filme é muito. Poderia ser mudo que nãofaria grande diferença. Curiosamente, a banda musical é composta de rotineiros programas de sucessos radiofônicos e, quando surge uma música extra, é brasileira. Há 3 ou 4 canções brasileiras durante o filme todo, sem créditos e não identificadas: a letra fala em "solidão" e "vou caminhando pelas ruas". Não sei se Bressane viu na Europa esse filme de Ferreri antes de filmar.

O que Ferreri quis dizer com esse filme?, perguntavam alguns espectadores após a projeção. Foi ai que pensei comigo: Ferreri não quis dizer nada, quis filmar e filmou muito bem. "Dizer" é palavra e o filme quase não a usa. A imagem, de resto, não "fala", expressa e tenho comigo que não importa o que Ferreri expressa, mas como expressa.

Trata-se de um filme sobre a mitologia do cinema. O "gangster" Dillinger aflora através de "flashes-backs" subjetivos. Tudo parece difícil, mas é fácil: com aquela carga de violência na memória, o personagem de Ferreri só poderá fazer bom uso do revólver que estava embrulhado no jornal em que leu a manchete que dá título ao filme. Piccoli brinca o tempo lodo com seu revólver de verdade, embora enferrujado. Bom cozinheiro desde então ("A Comilança" repete seu papel aqui em outra dimensão), pega o azeite caseiro e vai jogando nele as pecas da arma. Azeitar a arma durante 30 minutos é coisa de cineasta experimental: na verdade ele esta fazendo um guisado de revolver, azeitando as palas, desparafusando peça por peça. Como se isso não bastasse, tem o requinte de pintar o revólver com tinta vermelha e bolinhas brancas.




Depois de brincar com as imagens de mulheres que aparecem num filme que ele mesmo projeta para si, o personagem toma uma atitude já há muito (in)esperada: joga dois travesseiros em cima da mulher que dorme e dispara várias vezes. Como se nada fosse real, sai de manhã, pega o carro e vai dar um mergulho. Nisso está passando um navio, onde o cozinheiro morreu e é atirado ao fundo do mar, após breve "descanse em paz". Piccoli sobe no navio e candidata-se a ser o novo cozinheiro, após encontro com bela jovem de biquíni. Sua atitude final é perguntar: "Para onde vamos?". "Para o Taiti", respondeu o capitão. Na trilha sonora, volta a música brasileira: "caminhando pelas ruas", quando estamos em pleno oceano!

Não há conclusões a tirar, claro. O filme todo é aberto a múltiplas interpretações, pois o niilismo de Ferreri é total. Dá a impressão que, naquela viagem ao Taiti, ele poderá liquidar também a moça de biquíni. Mas o que acontecerá não importa, porque este é um filme em que o que acontece não tem importância nenhuma, se é que acontece alguma coisa. Cinema pode ser isso também: sonho que ninguém sonhou.

(Folha de S. Paulo, 28 de fevereiro de 1980)

9.1.08

I'm sorry, Brasil

JAIRO FERREIRA

O espectador que assiste a um filme como “Bye Bye Brasil” não sabe que o lançamento é acompanhado de um precioso folheto, só distribuído à imprensa. Nesse folheto não está somente toda a informação necessária à promoção do filme, mas também textos críticos que condicionam a todos. Assim, nem seria preciso fazer a crítica do filme, pois quem discordar das coordenadas do folheto correrá o risco de todas as pichações. É esse risco que quero assumir e começo por analisar a grande frase de Carlos Diegues sobre seu filme:

“ ‘Bye Bye Brasil’ é um filme sobre um país que começa a acabar, para dar lugar a um outro que acaba de começar”. Belo trocadilho. Passaria por “dialético”, se eu não conhecesse todos os textos de Jean-Luc Godard. Que Brasil é esse que começa a acabar? O dos últimos 15 anos, esse tremendo cliché?

O filme se passa no Nordeste, Norte e Centro do Brasil. Mas o Brasil todo não cabe em três regiões: o Brasil está em São Paulo, onde há nordestinos, nortistas, centristas, sulistas. O Brasil todo só coube num único filme, “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), de Rogério Sganzerla. porque a ação é passada em São Paulo, com todas as regiões sintetizadas na maior concentração industrial ou não do Pais. Mas “Bye Bye” também não é um filme sobre o que começa a acabar naquelas regiões. Se entendi bem, o que começa a acabar é o pessimismo e o que acaba de começar é o otimismo. Carlos Diegues será o Frank Capra brasileiro?

Todos gostariam de ter esperança no Brasil dos anos 80, mas como isso pode acontecer se, para citar um exemplo cinematográfico, os operários de um filme de Candeias tomam leite em cofrinho da poupança (quando tomam)? Diegues força a barra dessa esperança: seus personagens se arrumam na vida. Se adaptam ao sistema. “Bye Bye” me parece um filme institucional.

Cinematograficamente, o que começa a acabar é uma mentalidade do Cinema Novo, no momento em que acaba de começar o experimental. Toma-se cada vez mais difícil explicar Isso pois o Cinema Novo começou a acabar em 67 e o experimental nasceu ai Diegues não quis acabar junto com o Cinema Novo ("tenho vontade de vomitar quando falam em Cinema Novo" declarou há muitos anos). Mas entre 67 e 79 não houve discussão, debate ou critica livre: estamos começando a discutir agora, em 80. o que não foi discutido nos últimos 13 anos. Então é preciso ir devagar com o andor não quero superestimar nem subestimar “Bye Bye Brasil”. Quero apenas dizer “I’m sorry. Brasil”.

Em “Chuvas de Verão”, filme anterior de Diegues, a ação se passa em terreno emocional, areia movediça em que as coisas se tornam mais refratárias. Seria bom se, após “Bye Bye Brasil”, o cineasta desse um novo tempo para voltar com a carga toda e fazer, finalmente, um grande filme. Pois está difícil engolir a índia de “Bye Bye”, ouvindo radinho de pilha (já vi isso em “Os Pastores da Desordem”, filme grego de Nikos Papatakis, feito em 67, onde um pastor de ovelhas não descola a orelha de um rádio portátil).

Não estou sendo irônico nem maldoso: estou sendo crítico. O filme de Diegues exibe uma má consciência do Brasil. Não sei se pior ou melhor do que aquela de Arnaldo Jabor em “Tudo Bem” (1978). tentando colocar o Brasil todo dentro de um apartamento! Turismo pretensioso é tão nocivo quanto sínteses parciais e equivocas que se tomam por abrangentes. De resto, não engulo a frase final de “Bye Bye”: “Ao povo brasileiro do século 21”.

Falar em “povo brasileiro” é uma temeridade: o próprio Diegues promoveu uma sessão desse filme em São Bernardo, “para operários”, mas no debate um representante dos metalúrgicos levantou-se para dizer que lamentava a ausência de operários na sala. Ato continuo, levantou-se um metalúrgico e disse. “Mas eu sou operário”. De fato, era: antes um que nenhum. Quer dizer, o cinema poderá um dia atingir a massa, mas hoje só atinge a uma elite (a arte é elitista por natureza, pois é coisa de especialista).

(Folha de São Paulo, 22 de fevereiro de 1980)

22.10.07

Nacionais a Meio Carvão

O cinema nacional continua morrendo na contramão sem atrapalhar o tráfego. Tinha dez pessoas vendo Os Deuses e os Mortos numa sessão de dia de semana. Melhor se fechar para balanço. Não se trata de descrença: Cordélia, p. ex., é uma demonstração de alto padrão técnico-artístico. As Noites de Iemanjá é uma porcaria (Capô que me perdoe, estou cansado de saber que cineasta também tem fome, fico com o Profeta e acho que o lance é mudar de profissão). Pantanal de Sangue é uma droga, Reinaldo Barros aliás nunca foi de nada. De tudo isso é preferível Uma Verdadeira História de Amor (ex-Cio) de Fauze Mansur, que está conseguindo atrapalhar o sábado (bateu e continua a bater recordes de bilheteria no Cine Ouro). – JF

–oOo–

(Metacrítica da Criticalha – II). A morte da linguagem, que hoje em resumo interdita toda abertura como marginal ou patológica, toda divergência como aberrante – e em outro nível impõe uma sinonímia generalizada ao consumo popular de modo a reduzir uma série de significantes a um sentido único, é bem o que explica a sem cerimônia com que agora o cinema é visitado por essa crítica curiosa que O Estado achou melhor já suprimir de vez.

Estamos no domínio da redundância perfeita: o saber mediano intervém com sua compreensão possível (o cinema como hibridismo de entretenimento e “cultura”) para reforçar o que a grande indústria e os veículos tecnológicos lhe empurram como cinema. Fechado esse círculo onde todos nos entendemos (quer dizer, o Estadão e seu público), o cinema reconfortantemente volta a encontrar sua verdade instrumental (veículo de histórias, nunca de narrativas). Ou seja, veículo de uma forma narrativa essencial, contendo todas as ficções possíveis: ora, essa narrativa que a indústria cinematográfica ainda cultiva freneticamente tem, no entanto, seus referenciais básicos assentados e distinguíveis em uma linha narrativa: o romance burguês século XIX. O que permite a um imbecil que não se assina afirmar que em Lúcia McCartney as “cenas são mal concatenadas”, sem ao menos se dar ao trabalho de explicar diante de que paradigma de “concatenação” aquela se mostraá “má”. Ou mais adiante: “o milionário paulista poderia ser mineiro, carioca ou gaúcho”, reivindicando em síntese uma caracterização (psicológica) como obrigatória do “bom filme”, do que poderia não ser mais do que uma denominação. Sem imaginar que em outra situação mental (talvez a do autor do filme) “milionário paulista” não tenha de ser uma composição portadora, mas produtora de sentido.

Se tudo isso denota uma ausência absoluta de rigor, resta notar que por ironia não falta “rigor” ou vigor a essa crítica curiosa. Pronta a se segurar nos detalhes e retalhes do filme com uma obstinada intransigência, uma má consciência logo desvendada por trás dessa onipotência do senso comum: que não podendo fazer da crítica senão um instrumento de juízo e submissão às formas dadas (de cinema como de vida) tenha de alargar ao máximo os limites das severidades. Porque mesmo a precária restauração que se verifica na atualidade de um pensamento onde “prudência”, “honestidade”, “bom sendo” tinham seu lugar, já não consegue ocultar a repetição que no cinema, como fora dele, se mostra o desgaste do mundo.

Ignácio Araújo

(São Paulo Shimbun, 9 de dezembro de 1971)

16.9.07

A vitória de um horror poético e generoso

JAIRO FERREIRA

BRASÍLIA - Durante um festival festivo, como este se realiza aqui, ninguém entrar em todas e sair de todas impunemente. Por isso é necessário concentrar a atenção e o tempo nos pontos luminosos de maior interesse, aqueles que sintetizam as questões mais importantes do cinema brasileiro.

A seleção dos filmes da programação oficial, urdida através da Fundação Cultural de Brasília, não contribuiu para fornecer uma ampla visão da produção atual, já que ficou limitada a meia dúzia de filmes de uma única tendência. E, por outro lado, seria pouco saudável acordar às oito para participar de um simpósio ou um seminário às nove da manhã, inclusive porque a maioria dos convidados não vai para a cama antes da cinco da manhã, no mínimo. Surge daí um clima de horror: a impossibilidade de ver tudo, falar tudo e, menos ainda, ficar por dentro de tudo. A fragmentação é diabólica: veio da cúpula e reflete-se ainda mais fragmentada no programa individual de cada convidado.

Diante desse quadro, quem veio para ver filme só vê filme, quem veio para discutir só discute, quem veio para beber só bebe e assim por diante. O saldo do Festival é composto de estilhaços que nunca se integram, e por isso não há sequer uma pessoa que tenha deixado de dizer a frase chavão: "festival é uma loucura".

Desde o primeiro dia, concentrei meu trabalho de cobertura na mostra "O Horror Nacional", composta de doze filmes semi-interditados, pouco vistos ou recusados na mostra oficial. A intuição me dizia que o horror, com seus vampiros da cultura, terminaria por sugar o sangue cinematográfico de suas vitimas. Deu um revertério desde o momento em que a mostra oficial passou a ser horror e vice-versa, e todo esse processo antropofágico continua a se desenvolver aqui. Só terminará hoje à noite, quando serão revelados os nomes dos vencedores.


"Zé do Caixão e Satã: Os Poderes do Horror na Praça dos Três Poderes"

"Sou contra os festivais competitivos e acho que, além de limitar o número de filmes, marginalizando uns em benefício de outros, termina não cumprindo a sua função que seria primordial: propiciar uma visão total da produção. Por isso acho que os prêmios deveriam ser abolidos e o Festival passaria a ser uma grande feira, cumprindo o papel de basicamente informar", desabafou o cineasta Geraldo Sarno, cujo "Coronel Delmiro Gouveia" participa da mostra oficial.

Alguns cineastas aqui presentes acharam importante ir até á Censura Federal falar com Rogério Nunes, pedindo abrandamento e declarando-se horrorizados. O que nenhum deles lembrou, porém é que esse problema não é novo. Há dez anos atrás, a censura proibia "Ritual dos Sádicos", de José Mojica Marins, filme que completaria a trilogia formada por "À Meia-Noite Levarei sua Alma" (1964) e "À Meia-Noite Encarnarei no Teu Cadáver" (1967). Até hoje o filme tem uma cópia aqui em Brasília, guardada ou perdida nas prateleiras da censura. Então caberia perguntar: se, nem ao menos filmes de dez anos são liberados, quanto mais os que são feitos hoje? Ou seja, estão querendo passar o boi na frente da carroça, pedir abrandamento para os filmes medíocres que são feitos hoje, quando os bons e interditados de ontem continuam na geladeira

A mostra "O Horror Nacional" ganhou total consistência durante este festival porque sintetiza esses problemas. A melhor observação sobre isso saiu ontem no "Correio Braziliense". que estampou na primeira página uma foto de Zé do Caixão e seu fiel companheiro Satã, tendo ao fundo a praça dos Três Poderes, com uma legenda altamente esclarecedora: "Zé do Caixão e Satã: Os Poderes do Horror na Praça dos Três Poderes". Trata-se, evidentemente, da repercussão política deste horror que não é apenas cinematográfico. O diretor José Mojica foi aplaudido antes da exibição de "O Universo de Mojica Marins", de Ivan Cardoso, quando improvisou no palco um discurso de protesto: "Chega de importar filmes estrangeiros de horror. Nós já temos horror demais aqui no Brasil".

O documentário de Ivan Cardoso, porém, não foi muito aplaudido. Houve quem não gostasse. E, da mesma forma, o filme da mostra paralela,"Os Monstros do Babaloo", de Elyseu Visconti, também não foi aplaudido. Causou ate sensação do horror na platéia, por mostrar aberrações e selvagerias que, como observou Mojica, "o espectador às vezes tem dentro de si mas não quer revelar". Isso explica os protestos de alguns espectadores que perturbaram a projeção, achando que o filme é um horror, mas ficando até o fim o se divertindo muito com personagens fora de série: velhas de pernas tortas lutando com debilóides (Helena Ignez), homens horríveis beijando jovens sensuais (Betty Faria), gordas comendo demais (Wilza Carla) e vai por aí afora. Esse filme sofreu cortes em 1971, mas mesmo assim a censura não o liberou. Ao contrário, determinou novos cortes. "Se eu fosse fazer todos os cortes que eles pediram, sobrariam dez minutos de filme", diz o diretor Elyseu Visconti.

Comparado com filmes da mostra oficial, como "A Queda", de Ruy Guerra, o de Elyseu parece incomparavelmente novo, parece que foi feito hoje, enquanto o de Ruy Guerra – que é do ano passado – parece ter sido feito há dez anos, no mínimo, pois já está embolorado, repetindo chavões em nome de um povo e de operários do metro que o diretor não conhece, pois mora ao mesmo tempo em Moçambique e no Leblon. Vamos ver se pelo menos "A Lira do Delírio", de Walter Lima Jr. e "Tudo Bem" de Arnaldo Jabor, escapam desse déficit ideológico, esse abominável bitolamento político que não tem nada a ver com talento e muito menos com cinema. Em conseqüência, quando alguns aqui ousam falar em "ideologia", outros falam em "ideograma".

Aparentemente bem feitos, certinhos e quadrados, os filmes da mostra oficial, alguns identificados plenamente com o chamado cinemão, são na verdade totalmente falsos, impondo ao público um padrão técnico que ninguém pediu, inclusive porque fazer filme bem feito é característica do cinema americano. O cinema nacional só deixa patente sua autenticidade quando foge a esse esquema pré-fabricado para consumo rasteiro, e seu representante neste festival é o horro: filmes de Mojica Marins, Ivan Cardoso, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Elyseu Visconti e Fernando Coni Campos, um horror altamente poético que foi marginalizado mas será redescoberto num futuro que parece já ter começado.

(Folha de S. Paulo, 29 de julho de 1978)


15.9.07

Em Brasília, a maior atração ainda é o horror *

* ou leitura obrigatória após a visão de Horror Palace Hotel. (JT)

JAIRO FERREIRA
Enviado especial

BRASÍLIA – Além de um rigor excessivo e injustificado na seleção dos filmes da programação oficial, reduzidos em quantidade (apenas seis longas e dez curtas metragens) e também em qualidade (essa mosca branca), o 11º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro está introduzindo outra novidade: o fim da "mordomia", ou seja, nem mesmo as pessoas que vieram trabalhar – gente de cinema em geral, jornalistas em particular – estão recebendo credenciais, para não falar em outras comodidades mais caras. O certame, como se sabe, é organizado (leia-se desorganizado) pela Fundação Cultural do Distrito Federal que, sem dúvida, tem o direito de convidar ou não quem bem entender, mesmo que isso seja visto como elitismo, algo multo antipático, pois nasce daí um perigoso sentimento de intolerância, a defesa do Interesse de "minorias selecionadas" contra os interesses gerais do cinema brasileiro que, a essas alturas, deixa de existir ou então passa a existir absurdamente.

Afinal, o que é o cinema brasileiro? Essa confusão que se vê aqui à beira da piscina do Hotel Nacional, com burocratas de terno anotando nomes de atrizes que nunca apareceram em filme algum, diretores respeitáveis de filmes conhecidos passando o vexame de verificar que seus nomes não constam na lista de convidados, cineastas do corpo tentando um dialogo impossível com cineastas da alma? Isso é cinema nacional? Ou é desinformação dos organizadores deste festival, que já foi (há dez anos atrás) o melhor do País?

Explicar o que é o cinema brasileiro a partir de um festival como este seria realmente uma tarefa ingrata, porque aqui estão ao mesmo tempo todas as suas aberrações e também todas as suas virtudes. Aqui está José Mojica Marins, o popular Zé do Caixão, cineasta que inventou um cinema de grossura total, passeando pelos corredores de um hotel que lembra o dos filmes dos Irmãos Marx, encontrando-se à beira da piscina com Walter Hugo Khouri, o cineasta que inventou a finura do cinema brasileiro. Aqui está Ivan Cardoso, cineasta experimental que faz questão de cumprir a sua sina: experimenta tomar banho de piscina, experimenta conversar com os cineastas do chamado "cinemão". E o curioso é que tudo isso está dando certo: até parece que a confraternização existe.

Há dez anos atrás, Rogério Sganzerla ganhou bem este festival com "O Bandido da Luz Vermelha", um filme que torna-se mais antológico a cada ano que passa. Ontem Rogério chegou aqui, mas conversou pouco: não conseguia esconder uma grande mágoa, pois o seu filme "O Abismu" foi recusado para a mostra oficial. Quando lhe perguntam o que achou de ter sido boicotado, ele responde "tudo bem", mas num tom de voz muito humilde que quer significar exatamente "tudo mal". Enfim, ele já fez um manifesto contra a boçalidade e está esperando que a queda do bocal seja provocada pelo próprio. Seu filme "O Abismu", que quero inclusive rever para entender melhor, passará aqui amanhã à meia-noite e deverá provocar as reações já esperadas, uns achando que é genial, outros dizendo que é pra lá de péssimo, pra lá de Bagdá. inclusive porque a ação se passa no continente perdido da Atlântida.

Neville de Almeida é outro cineasta que teve seu filme – "A Dama do Lotação" –recusado neste festival e, claro, não está nada satisfeito, inclusive porque não está gostando da comida que servem aqui mediante a apresentação de alguns "tickets" distribuídos a convidados muito especiais. "Eu acho que meu filmo "A Dama do Lotação" é melhor do que qualquer um deste festival, não foi feito para ganhar dinheiro, como pensam alguns, mas para virar a mesa. Isso eu acho que consegui e não vou dar explicações a uma fauna de eunucos que não gosta do filme. Acho também um absurdo um país que faz cem filmes por ano ter apenas um ou dois festivais (Brasília e Gramado) para exibir pouco mais de dez filmes. Quero sugerir que sejam feitos festivais também no Rio, São Paulo, Manaus etc, única forma de dar oportunidade a todos, sem que um atrapalhe o outro".

Poucas pessoas estão comentando os filmes da mostra oficial exibidos até agora: "Chuvas do Verão", de Carlos Diegues e "O Curumim", de Plácido de Campos Jr., este feito para a televisão como piloto de série. Todos os comentários são para a mostra paralela intitulada "O Horror Nacional", que começou com a exibição de "O Rei do Baralho" e "Agonia", ambos de Júlio Bressane. Porém, em vez de comentar agora esses dois filmes e as reações que provocaram aqui, parece mais oportuno reproduzir um dos raros textos deste (Bressane) que talvez seja o mais talentoso cineasta brasileiro de todos os tempos, escrito aqui mesmo para José Mojica Marins, cujo "A Sina do Aventureiro" (seu primeiro filme, feito em 1956/57) abriu a mostra de horror – embora trate-se de um bangue-bangue – anteontem numa movimentada sessão da meia-noite:

"A Sina" ensina – alguns pontos (luminosos) em preto-branco:

1 – Novo corte na janela da câmera. Lente de cinemascope das cavernas. Recorte novo do espaço (jaula) quadrilátero da tomada: limpeza das margens: algo que antecipa visualmente o cinema moderno à Godard. Cinema muito especial com lente inventada para o próprio filme.

"2 – História da infâmia nacional: filme de interior (dos Brasis) - o mundo do capanga; do caboclo sanguinário; do estupro; do punhal; dos cavalos esqueléticos; do truco; da pinga. O estado larvar do banditismo brasileiro/faroeste com/ em carne viva.

"3 – Nova representação: nova expressão: nova fala: a fala cabocla (da tribo). Música caipira narrando a lenda que é o próprio filme: todos os lugares (IN) comuns do filme de cowboy de cinema poeira. E outros mais! Uma kafkiana foto de mulher atravessa o filme. Retrato-enigma: lapidar escolha de clichê.

"4 – Cinema-descoberta: o cinema compreendido já como montagem (raridade na cinematografia brasileira) e montagem sentida como choque: conflito: ideograma.

"5 – Cinema generoso que sugere ao espectador vários caminhos. E não um único caminho para todo o público! Descubra nesta aventura o seu atalho, a sua sina, sabendo logo que todos eles nos levam lá".

(Folha de S. Paulo, 27 de julho de 1978)

14.9.07

Curtas de Invenção: repercussões (2)

O Dia que o Vampiro Retomou a Cinemateca

Mais um ótimo texto sobre a sessão de curtas do Jairo, escrito pelo Filipe Furtado e publicado na Contracampo:

http://www.contracampo.com.br/88/pgsessaojairo.htm

9.9.07

Curtas de Invenção: repercussões (1)

Antes que eu me esqueça: A verdade e a mentira (e nenhuma das duas) no caótico ataque do vampiro à Cinemateca
por Francis Vogner dos Reis

Belo artigo do Francis, publicado na Cinética. Em http://www.revistacinetica.com.br/festcurtas2007jairo.htm

mostra: JAIRO FERREIRA PARA O SÃO PAULO SHIMBUN

12 a 16 de setembro de 2007

Em sua coluna no jornal São Paulo Shimbun, diário da colônia japonesa de São Paulo, Jairo Ferreira revelou-se um inspirado e atento crítico de exceção e o principal cronista daquilo que ficou conhecido como o Cinema Marginal. Entre 1967 e 1973, escreveu semanalmente para o Shimbun, onde – em plena ditadura miltar –, tinha rara liberdade para escrever sua reflexões sobre o nosso cinema. Em suas críticas não poupava cineastas, críticos – cinefilia – e a política cinematográfica da época: "A confusão é geral. Os debilóides discutem cinema como se estivessem decidindo o futuro do país".


De 12 a 16 de setembro de 2007, a Sala Cinemateca / Petrobras exibe 14 títulos brasileiros, garimpados no acervo da Cinemateca Brasileira, realizados no final dos 60 e comentados por Jairo em sua coluna. Entre os destaques da programação estão A mulher de todos (Rogério Sganzerla), Opinião pública (Arnaldo Jabor), Matou a família e foi ao cinema (Julio Bressane), Corpo ardente (Walter Hugo Khoury) e A herança (Ozualdo Candeias). Na abertura da mostra, após a exibição do longa Orgia ou homem que deu cria e do curta Esta rua tão Augusta, o público poderá conversar com o cineasta João Silvério Trevisan e o pesquisador Alessandro Gamo, organizador da coletânea Críticas de invenção: os anos do São Paulo Shimbun (Imprensa Oficial, 2006).

Esta mostra inicia uma programação regular da Cinemateca Brasileira que homenageará os principais críticos de cinema do Brasil, recuperando fragmentos de seus textos – republicados em nosso folheto de programação – e os filmes por eles comentados.

SALA CINEMATECA / PETROBRAS
Largo Senador Raul Cardoso, 207 – Vila Mariana
próxima ao Metrô Vila Mariana
Outras informações: 3512-6111 (ramal 210) / 3512-6101
www.cinemateca.gov.br

PROGRAMAÇÃO

12/09 – quarta

20h
Orgia ou o homem que deu cria
Esta rua tão Augusta
Com a presença do cineasta João Silvério Trevisan e do pesquisador Alessandro Gamo


13/09 – quinta
19h
O pornógrafo
Uma rua chamada Triumpho 1969/70

14/09 – sexta
19h
Matou a família e foi ao cinema
21h00
Em cada coração um punhal: três histórias que não fundem a cuca de ninguém

15/09 – sábado
16h
O caso dos irmãos Naves
19h30
A mulher de todos
21h30
O corpo ardente
As cariocas (episódio 2)

16/09 – domingo
17h
Opinião pública
19h
A herança
As cariocas (episódio 3)
21h30
Gamal, o delírio do sexo
Bárbaro e nosso

Mais detalhes em:
http://www.cinemateca.gov.br/programacao.php?id=37

7.9.07

O lixo – A Boca faz dez anos

Quem passa pela rua do Triunfo, nas imediações da Estacão da Luz, logo percebe uma estranha mistura de hotelecos, barbearias, botequins de segunda categoria e dezenas de vitrines com cartazes de cinema. No trecho entre a rua Vitória e Gusmões, em especial, concentra-se a qualquer hora do dia uma fauna das mais originais, mas que certamente não se confunde com a fauna noturna que domina a área. "Não é moralismo não, mas a policia nunca me pediu documento aqui no pedaço, porque eu posso ter cara de marginal, mau sou antes de tudo um profissionalde cinema", diz um conhecido técnico que faz ponto no bar Soberano.

Há uns cinco anos atrás, muitos diretores de cinema ainda tinham falsas veleidades e não gostavam de serem chamados de "cineastas da Boca do Lixo". Agora a situação mudou multo, pois até os mais aristocráticos (!) foram obrigados a frequentar o pedaço, que concentra desde produtoras até distribuidoras nacionais e internacionais.

O diretor Ozualdo Candeias, por exemplo, resolveu fazer um livro sobre o pessoal que frequenta a Boca do Lixo: "Não é bem um livro, talvez seja um almanaque, onde os diretores, técnicos e atores falam sobre cinema". Um repórter pergunta: "Candeias, onde é que você pode ser encontrado?" e ele responde: "Bem, quando eu não estou fazendo nada, eu venho aqui pra Boca: agora, quando tenho o que fazer também termino vindo, pois o pessoal está sempre aqui e é daqui que partem as equipes de filmagens e tudo mais". Ele não tem falsa modéstia e, fazendo um livro que terá certamente grande validade, pelo menos como informação, coloca-se na posição de quem não está fazendo nada, "só dando um questionário pra uns e outros ir respondendo".

O pessoal de cinema discute multo entre si sobre a "origem da boca". Os distribuidores dizem que foram os pioneiros, pois já estavam ai desde o início do século, despachando filmes estrangeiros pela Estação da Luz, o que explica a sua proximidade geográfica com a rua do Triunfo. Mas os produtores é que começaram a fazer movimento na Boca e, exatamente há dez anos, Candeias realizava o primeiro filme da Boca, filmando na própria Boca: "A Margem", de 1967, é frequentemente citado como o filme que "abriu a Boca".


A "estrela Boca do Lixo" entre os colegas David Cardoso e Antonio Meliande

- "Olha, o problema é o seguinte: este ano, a Boca comemora dez anos de existência, nós juntamos o pessoal todo e a finalidade é comemorar. Eu não falo em organizar. Eu estou contando com a colaboração de todo mundo pra fazer esse levantamento, mas a Boca é muito mais que isso ou muito menos também, depende do que a pessoa espera dela", diz Candeias, tentando explicar a atual efervescência que se vê no quarteirão.

"Nós começamos por fazer uma festa no fim e início deste ano, conseguindo até interditar a rua do Triunfo. Parece que em fins de ano se costurna fazer essas festas do "amigo secreto". Nós fizemos uin négocio diferente, bolamos urna outra jogada, convidando todo pessoal interessado. E fizemos uma distribuição de prêmios entre nós mesmos, mus também convidando criticos (vieram o Jean Claude Bernardet e o Renato Petri) pra participar ou simplesmente assistir, sei lá", completa Candeias.

Os iluminadores e fotógrafos da Boca resolveram atribuir prêmios – em medalhões com inscrições, feitos sob encomenda – ao melhor assistente de câmara (Miro Reis), melhor chefe eletricista (Souza) e melhor maquinista ('Padre). Os diretores de cinema deram os prêmios "Estrela Boca do Lixo" (Claudete Jaubert) e "Astro Boca do Lixo" (Tony Vieira). Houve ainda o prêmio "Vênus Lixete", o mais curioso deles: a atriz premiada (Denise) preencheu o principal requisito, pois foi a que mais desfilou durante o ano em busca de um papel no cinema, "seja com ou sem fala", proeza que finalmente conseguiu (com fala).

As festas de comemoração dos dez anos da Boca do Lixo deverão continuar durante o ano. Há Inclusive um projeto, já encaminhado à EMURB (Empresa Municipal de Urbanização), destinado a transformar o piso da rua do Triunfo, que deverá ter os nomes de atrizes, atores e diretores inscritos em letras brancas, talvez rodeados de estrelas à maneira de Hollywood

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 14 de janeiro de 1977)

2.9.07

Equilíbrio entre o suspense e o erotismo

Um bom exemplo de que cinema não se faz com boas intenções e muitas "idéias" na cabeça, mas sim com talento: "Excitação" (em cartaz nos cines Marrocos, Augustus e Gazetinha/Centro), o melhor filme de Jean Garrett, um cineasta que já estava acima da média (A Ilha do Desejo, Amadas e Violentadas) e que, a partir de agora, pode ser considerado como o Claude Chabrol do cinema brasileiro. Desde que João Silvério Trevisan "fechou" a Boca do Lixo com o antológico "Orgia" (1971) não se via um filme tão talentoso no cinema local.

A trama é relativamente simples: numa mansão do litoral, uma jovem esposa (Kate Hansen) é perseguida por eletrodomésticos que funcionam sozinhos. O detalhe esclarecedor é que um homem se enforcou nessa casa há tempos atrás. O que é isso? "O Inquilino", de Roman Polanski, antes do próprio "O Inquilino"? Não necessariamente, mas os pontes de contato são inegáveis. O nível de problemas paranormais é patente, o mistério atinge alta densidade dramática e o suspense vai num crescendo do inicio ao fim.



"Nem parece filme nacional", comentou um espectador logo na apresentação, onde há um super-detalhe do olho humano, fixando-se na íris. Os letreiros vão surgindo lentamente numa trucagem muito bem feita e com uma música de grande peso dramático. A narrativa começa a se impor a partir das primeiras imagens, onde os movimentos de câmara são perfeitos e a montagem é exata, lembrando os melhores cortes de Eizo Sugawa e Edouard Molinaro. Pode parecer exagero, mas não é: Jean Garrett é a mais grata revelação do cinema nacional nos últimos anos.

Talento deflagrador, o jovem diretor, nascido em Portugal, tem um apurado senso de narrativa, conseguindo envolver tanto o grande público como os espectadores mais exigentes. Ele preferiu uma trama simples, mas que vai se tornando complexa à medida em que a atmosfera dramática ganha consistência. Trata-se de uma concepção formalista, no bom sentido do termo. A idéia inicial é plenamente desenvolvida pela narrativa, abrindo uma ampla área de sugestões para o espectador.

A paranóia da personagem, perseguida pelos eletrodomésticos, vai aumentando gradualmente no decorrer do filme. Ela tem certa lucidez, no início, mas ficará totalmente louca ao final. Há outro ponto de contato com Eizo Sugawa, o terrível cineasta japonês, que Jean Garrett talvez nem conheça: a policia só entra no filme para levar os cadáveres e os crimes podem não compensar, mas ficam impunes, como em "Morte a Fera", de Sugawa.

A fotografia de Carlos Reichenbach, o Jean Rabier brasileiro, é uma das mais criativas do momento, impondo-se funcionalmente pelo tom mórbido que a trama exigia. A montagem de Walter Wani é uma verdadeira jóia, acentuando o clima com ruídos eficientes, cortes secos e precisos. A música funciona do inicio ao fim. E Kate Hansen tem uma de suas melhores interpretações, longe da petrificação khouriana,. E há outro detalhe importante: pela primeira vez. em muitos anos, o erotismo não surge gratuitamente na tela, mas sim dentro do contexto dramático do litoral, fotografado na penumbra. O único "porém" é o titulo, Excitação, ruim de doer, escondendo o ouro criativo.

Em suma: Excitação é uma surpresa total. Um filme que satisfaz plenamente. Não só pela quase perfeição da imagem, mas também do som. A qualidade da projeção, no cine Marrocos, melhorou assustadoramente. E o som é uma revelação: entende-se absolutamente tudo o que os atores falam. O espectador sai do cinema com a impressão de ter assistido a um dos melhores filmes do ano. Não perca.

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 7 de junho de 1977)

23.8.07

Curtas de Invenção no Festival de Curtas de SP

Serviço:

Mostra com os filmes do crítico e cineasta Jairo Ferreira. Nas suas próprias palavras (psicografadas por Paulo Sacramento): "Sou autodidata, não sou acadêmico. Comecei a filmar instintivamente, como se estivesse escrevendo em guardanapo de papel durante uma bebedeira solitária num boteco (...) Em suma: estou para o Vampiro de Dreyer como Ivan Cardoso para o Nosferatu de Murnau. Assumo que sou vampiro e chupo filmes para renovar e limpar meu sangue."


26/08 - 20H00 - Centro Cultural São Paulo
27/08 - 19H00 - Cinusp
28/08 - 18H00 - Cinemateca - Sala Petrobras
29/08 - 19H00 - Espaço Unibanco de Cinema

ANTES QUE EU ME ESQUEÇA
Jairo Ferreira Doc - 14' - Cor - Beta SP - 1977

ECOS CAÓTICOS
Jairo Ferreira Doc - 7' - Cor - Beta SP - 1975

HORROR PALACE HOTEL
Jairo Ferreira Doc - 40' - Cor - Beta SP - 1978

O ATAQUE DAS ARARAS
Jairo Ferreira Doc - 10' - Cor - Beta SP - 1975

O GURU E OS GURIS
Jairo Ferreira Doc - 12' - P&B - Beta SP - 1973



PS: na sessão da Cinemateca, será exibido também
NEM VERDADE NEM MENTIRA
(1979, cor, 10')
Direção e produção: Jairo Ferreira. Com Patricia Scalvi.
Ligéia de Andrade, laboriosa repórter da grande imprensa, escreve um relatório confidencial sobre suas atividades e, ao mesmo tempo, interroga seus colegas de redação (Flávio Rangel, Tavares de Miranda, Helô Machado, Emir Nogueira, Adilson Laranjeira e Dirceu Soares) sobre a verdade e a mentira jornalística. Ela não está preocupada em tirar conclusões, mas em reportar, descobrindo a verdade na mentira e a mentira na verdade.

18.7.07

Porno-aventura com o 007 do Mato Grosso

O press-release com o enredo de 19 Mulheres e 1 Homem (em cartaz nos cines Marabá, Bristol e circuito) já garantia que "a grande e emocionante aventura nunca é previamente planejada; ela acontece no inesperado, por um capricho às vezes irônico e cruel do destino". Dito e feito. Era difícil acreditar que isso aconteceria com David Cardoso, mas aconteceu: o filme desafia os elitistas, violentando a tradicional escala de valores. Para julgá-lo, é preciso recorrer a uma "escala de falta de valores". Sua mensagem persuasiva é tão densa que é preciso buscar explicações, inclusive, num bom livro de Umberto Eco: "A Estrutura Ausente".

Credenciais não faltavam: o roteirista é Ody Fraga, o mesmo do excelente "Excitação", de Jean Garrett e, no elenco, está Ozualdo Candeias, um monumento de criatividade. A trama gira em torno de 19 universitárias que pretendem fazer uma excursão ao Paraguai, mas a equipe preferiu montar o quartel general da produção nos pantanais do Mato Grosso. Foi aí que Ozualdo Candeias realizou uma obra prima da avacalhação, Caçada Sangrenta (1972) e, David Cardoso, por sua vez, sempre teve afinidades com a região, onde praticamente nasceu. Porque não fazer então uma aventura em família, quando todos teriam que passar mais de um mês longe de São Paulo? David não teve dúvidas: para atenuar a malícia das 19 mulheres-título, o bem sucedido empresário coloca seus filhos James e Júnior em cena, dando-lhes uma grande oportunidade cinematográfica. Na posteridade, eles agradecerão ao pai: "Fomos os filhos do James Bond dos pantanais de Mato Grosso". Só não se entende uma coisa: qual a funcionalidade dos gracejos de dois meninos num filme proibido para menores de 18 anos?



A pornochanchada já não é usada em sua fórmula inicial. A fase agora é propícia às derivações: Vítimas do Prazer é porno-terror, Excitação é porno-suspense. E 19 Mulheres é porno-aventura. Universitárias contra fugitivos da casa de detenção. David é o motorista de um ônibus que conduz as jovens, quando o veículo é seqüestrado pelos marginais. O ônibus encalha nos pântanos e todos têm que seguir a pé, mas sem mais nem menos já estão de barco, usando tratores, carros de quatro portas etc. E como há cobras pelo caminho! São tantas que nem Freud explica, mas uma inteligente universitária consegue dar a chave em certa cena: "Nós somos apenas mulheres e, eles, são apenas homens". Diálogos brilhantes, como esse, mantém o público atento. Aliás, as universitárias de David Cardoso são exemplares: não protestam contra nada e adoram cantar a música de Don e Ravel que fala das "praias do Brasil enluaradas". Afinal, elas são "apenas" mulheres.

Eroticamente exuberante, o filme se impõe como peça antológica numa escala de não-valores, justamente por sua "estrutura ausente", o que Umberto Eco explica muito bem: a mensagem está no "happy end". O agente 007 derrotou a gigantesca sucuri, símbolo fálico que opera em proporção ao número de mulheres do filme, e agora só lhe resta levantar vôo com a sua escolhida e os dois meninos num teco-teco providencial. E não há dúvida que David Cardoso assume tudo o que faz, já que seria arriscado tentar um distanciamento crítico.
Isso é ótimo e desnorteia totalmente o público: na Bolsa de Cinema desta Folha, as proporções de ótimo e mau foram iguais (25%), de onde se conclui que o filme exige realmente novos critérios de apreciação ou de depreciação. Como queiram.

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 18 de junho de 1977)

15.7.07

Pornochanchada: A autocrítica de seu profeta

Quando realizou "Adultério a Brasileira", em 1969, acumulando as funções de roteirista, produtor e diretor, Pedro Carlos Rovai não imaginava que esse filme, ao lado de "Os Paqueras", de Reginaldo Farias, iria deflagrar a onda da comédia erótica, que ficou mais conhecida como pornochanchada. Ele dirigiu também "A Viúva Virgem" (1972) e "Ainda Agarro Esta Vizinha", consideradas como ponto alto do movimento pornochanchadeiro. Seu penúltimo filme (o último também é promissor: "Gente Fina é Outra Coisa", comédia de António Calmon a ser lançada brevemente), agora como produtor bem sucedido, é "O Ibrahim do Subúrbio" (em cartaz nos cines Windsor, Del Rey e circuito), uma comédia de costumes, ambientada nos subúrbios do Rio. Rovai fala sobre esse filme:

– O que eu pretendo agora é desenvolver o lado caricato da pornochanchada, porque ela não interessa mais como fórmula. O filme é uma tentativa ao mesmo tempo de espetáculo e dramaturgia, partindo do riso para chegar quase a um cinema de reflexão. Os personagens já não são "figuras" da sociedade, mas outros bem diferentes: a fome é o personagem do episódio "Roy, o Gargalhador", dirigido pelo Astolfo Araújo e, no outro episódio, que dá titulo ao filme, o personagem é a alienação.

Embora não tenha dirigido o filme, Rovai foi argumentista do episódio sobre a alienação e, como produtor, continua fazendo um cinema pessoal, desenvolvendo sua temática preferida: problemas da pequena classe média. Por que ele não dirigiu o filme?

– Eu me tornei produtor para não sair do cinema. Depois dos sucessos que foram "A Viúva Virgem", e "Ainda Agarro Esta Vizinha", fui me tornando cada vez mais inquieto e critico em relação a mim mesmo. Não sou de me embasbacar diante do sucesso e não quis justificar posições. Fiquei em pânico quando percebi que todos esperavam que eu fosse me acomodar na fórmula e continuar na repetição. Esses dois filmes eram lances pessoais, com um lado lúdico, trabalhando em cima do deboche com raiva de não poder fazer melhor. Eu me recusei a trair o popularesco e percebi que poderia usar essa dramaturgia do caricato e do grotesco como uma espécie de carpintaria para lazer um filme de reflexão. E "O Ibrahim do Subúrbio" é um primeiro passo nesse sentido.

Com um agudo senso de observação, Rovai acompanhou todo o desenvolvimento da pornochanchada, que utilizou a mesma fórmula do sucesso fácil e garantido durante cinco anos (entre 1969 e 1974). Ele acha que possui uma espécie de "iluminação" e, em 1975, produziu um filme que praticamente dá por encerrado o ciclo pornô: "Luz, Cama, Ação!", uma comédia que coloca em discussão esse tipo de cinema e denuncia a utilização inescrupulosa da fórmula que se reduzia a muitas mulheres nuas e algumas piadas de mau gosto.

– Fico doente só de imaginar que uma fita minha não tenha público, embora isso nunca tenha acontecido. E não sou de controlar o borderô, ficar em cima da renda. Prefiro ficar acompanhando as reações do público.

O cineasta, atualmente com 38 anos, começou sua carreira como cineclubista em São Paulo, no Centro Dom Vital, na época de Jean Claude Bernardet e Gustavo Dahl. Depois dirigiu dezenas de documentários e foi assistente de direção de Luiz Sérgio Person em "São Paulo S/A" (1965). Quando ele terminou "Adultério a Brasileira", em 1969, passou a acompanhar o comportamento do público em todos os cinemas. Ele recorda:

– Eu ia em vários cinemas por dia onde meu filme estava em cartaz. Ficava na porta do cinema, depois entrava e ia observar o público. Não esqueço a reação de alguns operários, em Santo Amaro, quando eles pararam em frente ao cartaz de "Adultério a Brasileira", um cartaz enganador como qualquer outro, anunciando sexo e vendendo o produto. Eles olharam durante bom tempo as fotos expostas e depois começaram a contar o dinheiro que tinham no bolso. Eu fiquei com terrível sentimento de culpa e subi até a cabine de projeção. Havia uma cena em que a Jaqueline Myrna ficava um tempão em frente ao espelho, expondo uma espécie de "tédio pequeno burguês". Eu não tive dúvida: dei uma gorjeta ao projecionista e comecei a cortar essa cena no próprio projetor, como se fosse uma moviola, porque aqueles operários certamente queriam ver um filme alegre, enquanto não havia nenhuma alegria naquela e em outras cenas. No total, cortei uns 12 minutos do filme. Eu estava tão preocupado com esses espectadores que, de certa forma, era como se eu quisesse fazer na hora o filme que eles queriam ver.

Os filmes de Rovai, incluindo "Os Mansos" (1973) e "Lua de Mel e Amendoim" (1970), bateram alguns recordes de bilheteria, mas ele garante que não está rico:

– Cinema só é bom negócio para os exibidores e importadores de filmes. O exibidor fica com 50% da renda, enquanto o distribuidor leva seus 25%. Calcule-se 30% sobre os 50% do exibidor. E o produtor, que é o ultimo a receber, fica apenas com 30% da renda bruta. Isso é bom negócio?

Jairo Ferreira

(Folha de S. Paulo, 22 de junho de 1977)