A vida de Noel Rosa, na visão de Sganzerla
JAIRO FERREIRA
Rogério Sganzerla, realizador de alguns dos melhores filmes do cinema brasileiro ("O Bandido da Luz Vermelha"/68 e "A Mulher de Todos"/69), pelo que deflagraram no processo cultural do País, ficou muitos anos afastados das câmeras ("para não me confundir com a mediocridade dominante" ) e só voltou à tona em 1977, quando filmou "O Abismu ou Sois Todos de Mu e Não Sabeis", inexplicavelmente ainda não lançado pela Embrafilme. Esse mesmo órgão, de forma curiosa, concedeu-lhe, entretanto, um bom financiamento para a realização de "Papai Noel Rosa", cujas filmagens se iniciaram há 15 dias no Rio de Janeiro. Sganzerla veio a São Paulo rever amigos num fim de semana e se manifestou entusiasticamente sobre seu novo filme:
"Noel, gênio total, mestre inconteste da língua, nos faz vibrar o que de melhor se produziu em termo de texto – com uma única exceção nesse século: Guimarães Rosa. A sua performance lingüística é comparável a de um Euclides da Cunha, por exemplo (e quem mais?). Noel aproxima a noção básica do texto com a mente livre e em seus ideogramas e epigramas lapidares compõe a nova e natural língua milionária de um Brasil menos burro e mais profundo".
"Ao contrário do que se pensa, não há em Noel crítica de costumes, mas apenas o ritmo adequado à construção física do carioca. Basta citar suas opiniões, transcritas por um pesquisador, para perceber que o homem, além de escrever bem demais, pensa diferentemente e propõe algo que os malandros neurastênicos, egocêntricos ou inconseqüentes da imensa e necessária roda de nacional não pensaram fazer: Noel é um pensador e, nesse sentido, só pode ser comparado a Jimi Hendrix.
Essa ligação Noel Rosa/Jimi Hendrix pode parecer pouco ortodoxa aos estudiosos da música popular brasileira, mas não assusta a quem teve a sorte de assistir ao "Abismu" em sessão especial. Nesse filme, Sganzerla utiliza músicas do genial guitarrista do início ao fim. E não faltam pontos de contatos entre ambos, que morreram tragicamente na flor da idade. Mas prossegue Sganzerla:
"Som natural e pré-historicamente milionário: samba/embolada Identificação com o subconsciente coletivo através de uma nova prosa urbana, livre e bem acabada, onde, como em Hendrix, não se perde tempo em odes à namorada ou suspiros pretensamente românticos. Não. Noel como Hendrix propõe mudar a mente contemporânea ("I could change your mind; I don't live today maybe tomorrow"/"Até manhã se Deus quiser: quem gosta de mim sou eu").
Visionário, Hendrix realmente "não viveu em sua época, talvez amanhã". Seu som está muitos anos na frente de tudo que se faz hoje em música Pop. E Noel Rosa é um caso raro de poeta, músico e pensador brasileiro dos anos 30 que continua atual. Tão atual – ou à frente – que só agora começa a ser redescoberto. E, como se vê, através do cinema, arte que às vezes aspira a ser música (velho e sempre novo ideal grego: toda arte aspira a ser música). Sganzerla sabe disso há muito tempo.
"Feitiço sem farofa, sem vela, sem vintém. Noel, o gênio – et pour cause –incompreendido, vitimado por mal-entendido histórico. Noel, o maior criador rimbaudiano, o surrealista mascarado, o provocador de versos, o homem do silêncio e do ruído brutal, mestre alquímico do repouso e do movimento, da presença e da ausência. Basta estar atento às musicas como "Malandro Medroso" e "Maria Fumaça", absolutamente cerebrais e aparentemente "inconseqüentes". Afora a capacidade do improviso e da gesta épica, cartilha do poder que eu me proponho a decifrar para a grande massa ignara de intelectuais medíocres: poucos ou quase ninguém entendeu ao nível da criação da obra e importância interna de Noel ou Hendrix, aliás, criadores comparáveis não somente pela extensão de sua vida curta, gênios ceifados em plena flor da idade, mas pela quantidade e versatilidade de sua obra extensa, da capacidade de tentar e não conseguir repetir-se (ou autoparodiar-se) no verso polido ao máximo abissal e sempre ameaçador à mente convencional".
Para interpretar o papel de Noel Rosa nesse filme, que já consumiu três anos de pesquisas, Rogério Sganzerla escolheu Joel Barcelos, cuja semelhança (Noel/Joel) física com o poeta é flagrante Mas as semelhanças não param aí: Sganzerla também tem alguns traços noelinos. O cineasta, que já foi jornalista não concede "entrevista": ele mesmo senta numa mesa da redação e produz seus textos deflagradores. Termina de datilografar uma parte da "entrevista" (melhor seria falar em "inter-vista"/ e entrega ao "repórter" o manifesto que se segue:
"Chegou, senhoras e senhores, a hora de abrir o jogo e instalar imediatamente os pingos nos "is" do panteão da mente livre, isto é, sem medo do novo homem e da nova humanidade. Chegou a hora de abrir o jogo após um decênio de fidelidade e pesquisa em todo sentido encampando as verdades históricas de obras verticais que se elevam por altíssimos páramos até horizontes insuspeitados ou inalcançados pelos outros contidos viventes. Noel ou Hendrix ou a grande obra de arte – do deslimite da criação total – gênios, sim, propõem tudo o que um imbecil de classe jamais poderá entender. Mas eu, por exemplo, entendo a burrice e até faço questão que continuem assim para mais facilmente caírem do cavalo".
"Noel, o gênio total, morreu a 5 de maio de 1937, isto é, 9 anos antes de eu nascer, pôs em questão toda a necessária jogada da obra de arte barroca e moderna milenar e milionário deslimite da criação... Ponho os pingos nos "is" da historia e, a partir de agora, ninguém poderá ignorar a máxima importância desse soberano do verso e do reverso, artista e homem maior (sim, porque a essa altura não entrarei no equívoco luso-carioca de dividir o universo da criação da personalidade do artista necessariamente contingente e complementador). Chegou a hora de gritar alto e em bom som que o maior, feliz ou infelizmente, nessa terra, se chama Noel Rosa e que ninguém – ele é grande entre os grandes (na década prodigiosa de 30, entre Cartola. Lamartine, Ary e não sei mais quem) – sequer chegou a seus pés...".
"Noel, o gênio. Noel, o pensador. O criador – da condição oriental do artista, mesmo e principalmente se nascido nas condições adversas do capitalismo ocidental – artista maior invejado, explorado, agredido mas exatamente por isso maior ainda".
"Não me desculpem se pareço apologético, mas para falar de Noel é assim mesmo, só como seus companheiros e amigos sinceros intuíram e o povo de Vila Isabel até hoje intui e se refere a ele: um cara muito inteligente, um gênio – ou como se referiu Álvaro Moreyra, é muito grande esse pequeno Noel".
"E é isso que pretendo erigir: uma concepção nada medíocre do artista mais original e profundo de todo século que em sã consciência só pode ser comparado – pasmem – com James Marshall Hendrix em tudo, Orson Welles no cinema ou Shakespeare no texto e na habilidade (isto é montagem, ideografia do relacional do personagens...), os grandes e tradicionais exemplos exemplares provindos da mesma linguagem que produziu os gregos da fase áurea. Homero, Shakespeare, Dante, Cervantes, Camões, Castro Alves, todos eles, indistintamente, gênios totais".
Sganzerla já se desculpou pela apologia, mas nem era preciso: quem o conhece sabe que ele é assim mesmo – quando está filmando mergulha de corpo e alma no assunto, como se tentando reinventar o mundo através de um filme. A pretensão é grande mas o assunto também o é: uma vez terminado o filme, a visão que se tem da música popular brasileira certamente ficará abalada. Isso porque Rogério é um cineasta de terremotos – terremotos culturais que um movimento como a Bossa Nova, por exemplo, não teve sismógrafos para detectar. E, no entanto, tudo isso são coisas nossas, são nossas coisas – já
dizia o gênio.
(Folha de S. Paulo, 6 de setembro de 1979)