31.3.07

Brás Cubas: necrofilme

Jairo Ferreira

Lançado, ou melhor, arremessado com grande estardalhaço no cine Belas Artes/sala Carmen Miranda em plena semana da Mostra Internacional do Leão Cakoff, Brás Cubas arrebatou verdadeira legião de público (mais que três espectadores em filme de Julio Bressane é uma multidão). Trata-se de uma superpriodução, sua Cléopatra, como Gigante da América foi sua Intolerância e Tabu seu Cantando na Chuva. Make em laugh. Ou o que dá chorar dá pra rir. Assim é o Rio do Cão, de Machado de Assis à transleitura bressânica, num filmepoema nada ágrafo nem iléxico ou afásico como é hoje 95% do nosso cinema.

Bressane, o maior cinepensador brasileiro da América do Sul Sol Som, dizia em Gramado 86 que agora não faz mais filmes para dois ou três cães pingados: "Faço filmes pra mim mesmo". Aí um espectador perguntou: "Então como se explica que o filme tenha chegado a Gramado?". A resposta fulminante veionum átimo: "O filme foi transportado pela Embrafilme, remetido pela distribuidora".

Houve tempo em que eu achava que a culpa por lançamentos inadequados como esse era do Marco Aurélio, da Embrafilme; agora não acho mais: sei que Bressane não está impune. Toda energia que ele libera na filmagem, no processo estético, bloqueia em relação ao marketing pós-primeira cópia, deixando tudo por conta do diabo.

Distribuição/exibição: isso interessa pouco numa fase emque nossocinema finalmente substituiu a mercadologia por uma "política nacional do cinema". A Bressane só interessa o projeto estético, a seqüência do cinema de invenção nos (agora) alegres trópicos da Lei Sarney. Então só mesmo num mercado promíscuo como o brasileiro é que se vê de experimental a hard core nas mesmas salas do cinema-padrão.


Ankito e Luis Fernando Guimarães em BRÁS CUBAS

Antiestética, nova ética. Brás Cubas de Bressane é tradução/tradição, transluciferação. TRANSCRIAÇÃO: o que Machado tinha de cinema em suas hilariantes e já modernas Memórias Póstumas (1881) é reinventado audiovisualmente em Brás Cubas o filme. Lance altamente intersemiológico. Releitura, seleção & síntese: daí os fragmentos de quase tudo do bardo de Cosme Velho já filmado, em destaque Viagem ao Fim do Mundo (1968) de Fernando Coni Campos e Capitu (68 também) de Paulo Cesar Saraceni. Reintegração antropoautofágica, transgressão ou como já referia Julio em outro interfilme um ir além cromossômico.

Mas ainda não é um filme-sumúla como é Filme Demência de Carlão Reichenbach (Bressane é sempre fac-simile, semelhante sem semelhança, como queria (M)achado em Crítica, pág. 111) Difícil de assimilar? Parece e no caso é. Como Godard Jaguadarte Julio está cagando & andando para ocinema de fórmulas. Só lhe interessa o cinema de forma, daí a ansiedade de seus cultores em saber o que ele tem agora na fôrma (o revisor que tirar o chapéu de ô ganhará um bom prêmio: assistir ao Brás Cubas de Julio Azevedo sem cochilar!) . Lance cômico & cósmico em tempos de comício. O grande desafio para o qual Julio se prepara há 25 anos é levar ao forno de microondas Os Sermões do Padre Bressane, digo, Azevedo, digo besteira, perdoe Vieira...

Ficaria com a seqüência inicial do filme & estaria bem servido. Só encontraria paralelo nas melhores antologias dos gênios do cinema. Estou errado? Viva a cinerrância. Não raro é vertente da cineverdade da melhor qualidade. (in) Descrição da Ideologia do Fotograma sem Perfuração: câmera-delírio, inversão/reversão do quadro/jaula, isto é, Bazin não teria pensado nisso: microfone anunciado necrofone. Cai o objeto do som fálico (eu disse FÁLICO, thanks doutor!) nas cavidades sensuais do esqueleto & dá uma trepadinha nos olhos do excinema, digo, caveira, interfilme das cavernas. Eis o cinema paleolítico.

Discorrer sobre a necroestrutura do filmóide? A transvisualidade aprova mas não autoriza. Teria que multiver o conjunto da cinepoesia de Julio Bressane, mais de vinte títulos,na cosmogonia do cinema de invenção. Lace hedônico que deixo em parte para um nissei ou sansei (sei lá) que bem falou em cinema-tormenta. Ainda bem que dedico este texto que nãoconsigo terminar a minha grande amiga Olgária.

PS: meu livro Cinema de Invenção esgotou a primeira edição em menos de seis meses.A segunda edição deverá sair antes das eleições de 15 de novembro. Desejando sucesso a este novo jornal-alternativo, no próximo número quero escrever sobre Nem Tudo É Verdade de Rogério Sganzerla, que se anuncia no Belas Artes em bela substituição ao Brás Cubas comentado. Mas já aviso a Sganzerla que assistirei ao filme dele com o meu advogado ao lado... Até lá, cinentusiastas!

(Jornal Imagemovimento, n. 1, novembro de 1986)

30.3.07

SAMUEL FULLER, o gênio do olho

Exibido na semana de inauguração da Sala Cinemateca, Ladrões do Amanhecer, de Samuel Fuller, é puro cinema emoção, sem cair nos estereótipos do thriller ou do gênero melô


Trama por trama, drama por drama, o que importa em Os Ladrões do Amanhecer (Les Voleurs de la Nuit, França/1983), de Samuel Fuller, não é uma coisa nem outra, mas a verve, a ourivesaria plano por plano. O gênio da agilidade do olho está mais jovem do que supõe o gagá Godard, hoje um chato de galochas.

O cinema de invenção que não soa caricato é o de Samuel Fuller. Um Fuller europeu na casca, mas norte-americano no pessimismo, aqui numa autocrítica, quase uma glosa, devolvendo aos cinéfilos da Nouvelle Vague que o valorizou um exemplo de avançar criativamente sem babaquices.

Não há fórmulas, senão pretexto para um reexame da linguagem a 24 quilates por segundo. Ourivesaria do plano no ritmo, do ritmo na seqüência, da seqüência no conjunto de uma partitura musical. Nenhuma grandiloqüência sinfônica, nenhum atonalismo blasé, nenhum pedantismo. Apenas um violoncelo e alguns violinistas. Mais adágio que para concerto. E Jimi Hendrix comparece num pôster na loja de instrumentos musicais. Música da câmera? Música de câmara. O protagonista curte isso, Bonnie sem Clyde. Lágrimas sem mel.

Música do olho. O próprio Fuller, então com 71 anos, assumiu uma aparição especial, como o expert Zoltan. Vive numa mansão, charuto na boca, quando é visitado pela dupla incestuosa central, que o confunde com um receptador e pede para que examine um relógio de ouro maciço. Fuller tem obsessão por relógios raros – vide Agonia e Glória (The Big Red One, 1980), onde um belo cebolão é a metáfora de um soldado que tomba na praia rochosa. Fuller revela agora algumas taras – está assistindo vídeos sobre formas de morrer, no caso, de tuberculose, babando sangue. Ele se irrita quando a dupla passa diante do vídeo – "saiam da frente!". O casal pensa que ele é doido – faz-se um primeiríssimo primeiro plano de seu olho e ele diz: "Esta minha lente de contato é uma verdadeira lupa de ourives!". Só três risos sarcásticos foram ouvidos na sala da cinemateca:o meu, o de Luiz Nazário e de outro que não identifiquei. Vale dizer que os outros 150 espectadores não estavam entendendo nada.

Fernando [?], por exemplo, levou o filme a sério, embora tenha saído achando que "o homem é realmente demais, não adianta a molecada de hoje querer imitá-lo que nunca chegarão aos pés dele". De fato, entra década e sai década, e Fuller é sempre admirado, e nunca igualado.

Não dá pé imitá-lo, seu olho de gênio é inimitável, intransferível, ou seja, é o tal olho-na-cabeça-do-poeta do qual fala Welles, aliás, ao lado de mais, temos uma trindade máxima do olho ágil. É preciso tentar perscrutar esses olhares que nos brindam tão raramente na própria história do cinema.

Godard perde muito nessas comparações do olhar de raios X. Imitou e cansou de tentar ser ou ter um olhar superior e não conseguiu. Vejamos, p. ex., como Fuller ousa fazer 3 ou 4 movimentos de zoom de invenção, quando os puristas pensam que essa lente não dá samba. Exemplo 1º) o violoncelista caminha na avenida, ao lado do Beaubourg, em Paris, e a câmera o enquadra em travelling no meio da multidão. Corta-se para um plano geral em contra-plongê e a zoom faz um movimento out, recuo rápido, enquadrando o personagem já nas escadarias; 2º) quando o personagem interpretado pelo Chabrol, sim, Monsieur Le Tartuffe, Claude Chabrol, cai do prédio, ali pelo 9º andar, a câmara não mostra a queda – faz uma zoom-in em umas nove escalas, "tremedinha", simetricamente, até primeiro plano do corpo; 3º) o efeito ficou tão criativo, original, que é repetido em branco e preto. Aliás, outro dia conversando com Hermano Penna (Fronteiras das Almas) ele me dizia que um dos melhores filmes que já viu na vida todo feito com zoom, me parece que era um filme polonês, "por sinal, muito mais niilista do que Cinzas e Diamantes".

Voltando a Fuller. A trama é irrelevante, embora sem clichês – Fuller é mestre em saber subvertê-los, pois para ele "cinema é emoção"; outra definição (esta é a que está em Pierrot Le Fou:"o cinema é um campo de batalha: a guerra, o amor, a morte") – não é exatamente essa a ordem, mas o sentido vale. O importante, não só neste filme francês, é essa ourivesaria da emoção. Uma emoção desdramatizada, antimelaço, o contrário do gênero melo. Foi nessa desdramatização que a Nouvelle Vague o elegeu mentor, um dos. Consiste no que? Vamos tentar ver: primeiro em antiheróis, embora Fuller tenha sido "herói", sim, Herói da Segunda Guerra Mundial, o que lhe valeu até mesmo "inveja" numa Hollywood convencional em que os diretores se limitaram a fazer documentários sobre. Jornalista, Fuller viveu a trincheira. Bem, é acusado ainda hoje de fascismo – mas trata-se antes de uma lucidez de direita que a esquerda só teve teoricamente. Cinéfilos eventuais de um PT embrionário não podem ver nisso nenhuma provocação , ou Ezra Pound estaria em pior situação. O fato é que a arte não tem ideologia - dá o néctar às ideologias. Estas pintam e bordam em cima, enquanto o talento revolucionário fica sempre acima.

Taí esse divertissement de invenção do Fuller que é tão talentoso que transcende o prazer de ver um filme. Ficamos tão putos que teremos que ter uma cópia em vídeo para rever como exemplo-do-que-é-saber-fazer-cinema. Tanto talento num filme só contra tanta mediocridade assolando. Fuller foi/é paradigma de independência. Mestre do olho, sempre pega um fotógrafo-iluminador que traduza o seu olhar inquieto, explorando genialmente os recursos de cenário na relação com a movimentação de câmera e atores. Poucos atores, sempre. E sempre um excesso de emoções desdramatizadas – seu segredo, ou um dos. Mas como é possível emocionar – sem cair nos estereótipos do thriller, um de seus gêneros-chave – apenas com alguns tostões de produção? A resposta está neste Ladrões da Noite, como em praticamente em todos os filmes que fez desde 1949. Uma excepcional concatenação visual numa mise-em-scène diabólica, intraduzível em palavras, pois essencialmente para acompanhar, no caso, ler o som e ouvir a imagem, mas numa articulação de cortes secos, por analogia ou não.

Botemos alguns defeitos. Os 20minutos iniciais estão algo desengrenados. Fica-se num virtuosismo de seqüência para seqüência , problema de roteiro, dele com um parceiro – não conhecemos o romance que deu origem ao filme, por sinal que nem interessa. Noel Simsolo já escreveu sobre essas deficiências, mas reconhece que é "um filme fulleriano como nunca". Bateu.

É botar no vídeo – aliás, o filme será lançado comercialmente, breve – e babar com um plano atrás de outro. Começa com um coquetel de imagens de ação, dando ênfase à batuta do mestre regente – ao final, o bastãoé novamente enfocado em primeiro plano, fixo. Admirável ou estonteante toda a seqüência final da fuga do casal que acaba encarnando uma versão atípica de Bonnie e Clyde. Fotografia-iluminação maravilhosas. Mas a mise-em-scène de Fuller se estende à montagem ultraconcisa, nos deixando sem fôlego entre um corte magistral e outro ainda mais genial. Vá ser magistral assim em outros [?],Mister Fuller.

Suas cenas & sacações não saem da cabeça dos cinéfilos & provavelmente farão a cabeça dos cinepoetas desdramatizados dos anos 90.Fico pensando naquela seqüência de diálogos mínimos e contundentes em que um personagem leva à delegacia um gravador de música que – não por acaso – tinha registrado a voz da personagem feminina, Bonnie, autoacusando-se pela morte do molieriano, sempre de olhos saltando nas órbitas (Chabrol, com óculos fundo-de-garrafa,lembrando o nosso querido Carlão Reichenbach). Aí o vizinho (por sinal há algo de Janela Indiscreta, de Hitchcock, ironicamente, com verve) diz ao delegado: "Agora o senhor que trate de arrumar uma imagem para esta voz". Seria como se Fuller estivesse parodiando o cinema mudo onde se tratava de achar um grito, por sinal o hitchcockiano para uma imagem, Há muito mais a sacar nesse filme-síntese sobre cinema, mas...

... sempre é bom lembrar – se há niilismo na violência, há também prazer. Nada de Nietszche – fora com os intelectualismos apolíneos ou dionisíacos. Fuller está além: está cinefilosofando uma poética de outra ordem. Cinematograficamente genial & imprevisível , a não ser que você tenha os olhos de...

... Digamos: linceletrônico.

Piorou – a sintaxe visual de Fuller dribla até a semiótica do século 21. Sem ser pós-picas. É o antigão tesudo. Basta. (JF)

Cine Imaginário, nº 41, abril de 1989


28.3.07

Aopção ou nádegas a declarar

Abre aspas para o Jairo:

Fui ator co-adjuvante em AOPÇÃO – AS ROSAS DA ESTRADA (1979) [...] Foi o papel mais difícil de minha vida, na pele de um missionário que vai pregar o evangelho numa zona e acaba nu.Foram 4 ou 5 dias de filmagens. Eu fazia do meu jeito e ele bronqueava:


– Isso aqui não é filme de Samuel Fuller não, nem do ROARD ROQUE nem do caralho de RÓLIUDE, isso aqui é filme de Candeias!

Aí senti a barra & fiquei na minha. Confiei no tipo inesquecível.

Fotos de julho de 1979.






Críticas de Invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun

Segue abaixo o artigo que escrevi para a Paisà (em versão um pouco maior), número 3, sobre o livro do Jairo. Aliás, quem ainda não leu, faz o favor de passar na livraria. (JT)


Autor: Jairo Ferreira e convidados. Organização: Alessandro Gamo. Editora: Imprensa Oficial. 288 páginas

Críticas de Invenção (não confundir com o Cinema de Invenção do mesmo autor) é a esperada compilação de artigos que Jairo Ferreira publicou de 1966 a 1972 no São Paulo Shimbun, jornal da comunidade japonesa. São 91 textos (acrescidos de um belo artigo posterior sobre o papel da crítica) em que Jairo mapeia, classifica, hierarquiza e vislumbra caminhos para certo cinema brasileiro, especialmente o produzido na Boca do Lixo paulistana.

Há, por exemplo, um valioso diário da Boca, cobrindo generosamente os filmes de gente como Sganzerla, Reichenbach, Trevisan e Callegaro (só faltou na seleção um bom texto sobre Ozualdo Candeias). Ao mesmo tempo, vemos um Jairo implacável com os “cineasnos” sem talento, os conteudistas (o realismo crítico), os arrivistas (Khoury, Biáfora) e o cinema novo.

Fosse apenas o inventário crítico deste cinema que vai do udigrudi ao “embrafilmismo” acadêmico, Críticas de Invenção já seria notável e apaixonante – porém bastante datado. Não falamos aqui, no entanto, de “bananeira que já deu cacho”, como diria Jairo. O dado mais importante a se reter talvez seja o processo de criação de um repertório e sintaxe críticos muito próprios. Pois ao longo dos textos, é como se Jairo fizesse sua pedagogia de iniciação: há uma clara passagem do figurativo ao abstrato. É aqui que o livro encontra não apenas seu grande prazer de leitura, mas uma resposta aos dias de hoje.

Da expressão mais ou menos estável e linear, vemos portanto explodir uma verdadeira escritura de invenção: crítica via poesia, colagens, neologismos, pseudônimos e siderações extremas. Em parte, é como se para marcar suas escolhas ele fizesse questão de escrever como não se deve escrever. Em parte, também, era sua maneira de praticar o “mimetismo total entre criação & vivência” – o que justificava um texto empírico, mais assertivo do que argumentativo, sem qualquer distanciamento crítico, como num caderno de notas.

A se lamentar em Críticas de Invenção apenas as contingências editoriais: cerca de um terço dos artigos originais estão aqui reproduzidos (alguns cruciais ficaram de fora), e o desejo é que houvesse um livro mais completo.

pequeno inventário da invenção

Enquanto o blogue não volta aos eixos, deixo os leitores com os links da Contracampo para alguns textos da coluna do Jairo no São Paulo Shimbun.

Em
http://www.contracampo.com.br/57/jairoferreira.htm há um Homenagem a Jairo Ferreira com (cortesia do Alessandro Gamo) os textos:

O Corpo Ardente (16/12/66)

Dragão e Brasil Ano 2000 (19/6/69)

Fuller e Gil (25/12/69)

Ex(im)plosões desvairadas (16/12/71)

Condensadores e diluidores (6/1/72)

E no número 25, mais três textos:

Omeleto, arroz e feijão

No écran, O Pornógrafo


Rogério Sganzerla, Vampiro

18.3.07

Audácia! – Um Filme Másculo

Os textos abaixo foram escritos para o folheto promocional do filme Audácia! Não são do Jairo (que foi co-roteirista do episódio do Carlão), mas relendo-os hoje, não vi um bom motivo para não publicá-los no blogue. Ao contrário. (JT)


Nosso cinema na boca de quem faz

Avenida Ipiranga, São Paulo, um dia qualquer. Três cineastas passam em frente ao cine Marco Pólo. Diante do cartaz de As Libertinas, ouço Carlos Reichenbach dizer para Roberto Santos:

– Veja, essa porcaria de filme nunca sai de cartaz. Já deu uma nota!

– É... As Libertinas e Macunaíma me perseguem. Sempre que passo em frente a um cinema, um dos dois está em cartaz.

Uma rua de Paris, exterior, dia. Jean-Luc Godard e Glauber Rocha conversam. Diz o francês:

– É preciso acabar com o cinema!

– Acabe você. No Brasil, agora é que estamos começando – o brasileiro responde.

O PASQUIM – Tem visto os últimos filmes brasileiros?

Oscarito – Tenho visto todos. E tenho gostado de todos.

De uma entrevista de Maurice Capovilla.

– É impressionante como esta gente (técnicos, atores) trabalhando assim (sem condições, ganhando pouco), tem garra. Toda a equipe se une, o filme passa a ser de todos. O maquinista faz com prazer uma instalação elétrica, sem dizer “esta não é minha função”. Todos fazem de tudo. Atores ajudam a carregar o material. Não havendo acomodações, como em O Profeta da Fome, todos dormimos no chão. É aí que nasce o estímulo, o filme se desprende, começamos a criar.

Frase de Roberto Santos, lema e símbolo da equipe de Audácia!

– O cineasta brasileiro é obrigado a transformar essa falta de condições em elemento de criação.

Rogério Sganzerla:

– Nosso cinema continua sendo uma das maiores barreiras contra o obscurantismo.

João Callegaro:

– Cinema cafajeste é o cinema que aproveita a tradição de 50 anos de “mau” cinema americano, devidamente absorvido pelo espectador e não se perde em pesquisas estetizantes, elocubrações intelectualizantes, típicas de uma analfabeta classe média.

Nas palavras desses sete, uma síntese da importância do filme brasileiro, para quem o faz, para quem o vê. Audácia! – um filme sobre cinema – teria que ser assim: irreverente, descontraído, mostrando o que se passa na frente e atrás das câmeras. Os nomes de alguns personagens (Paula Nelson, Ava Ava, Maria Vargas, Madame X) vieram de filmes muito amados. G. G. Dreher ganhou esse nome, por causa da bebida que quebrava o gelo das noites frias em que eu e Reichenbach armávamos a produção de Audácia!
Em Amor-69, minha história para Audácia!, muitas coisas que os personagens dizem não me pertencem. Acho normal um espectador pichar certos filmes brasileiros, por isso não hesitei: em alguns diálogos os atores elogiam filmes de Grande Otelo e até chanchadas da Atlântida. Continuo como autor da minha história, mas considero-a apenas uma reflexão sobre o cinema nacional.
Reichenbach procurou dizer certas coisas que pensa sobre o cinema brasileiro em geral:

– A badalação, o deslumbramento, o despojamento, a alta pichação, a coerência e o mau caráter, todos os adjetivos possíveis no cinema-novismo fazem de Audácia! um filme-verdade. Usei e abusei do que acontece num local de filmagem. Fiz um filme autobiográfico, enquanto o Lima deu mais atenção à mise-en-scène.

Agora, com vocês, Audácia!

Veja o que acontece quando alguém se dispõe a fazer um filme no Brasil. Veja o que acontece com a mocinha que quer um papel melhor no próximo filme de G. G. Dreher. Fique por dentro dessa e de outras situações que acontecem em certas áreas do cinema nacional.

Mas, por favor, quando recomendar Audácia!, engrosse a voz e tire as mãos da cintura. Não fica bem fazer certos gestos, quando se fala de um filme másculo!

PS-1 – Atenção, senhores projecionistas. Não cortem fotogramas das cenas mais eróticas. O filme vai correr o Brasil nos próximos cinco anos, precisa estar intacto até lá.

PS-2 – Senhores críticos: alguns defeitos de enquadramento, iluminação, dublagem, são intencionais. Fiquem certos de que não pretendemos fazer um filme perfeito. Isso é problema de cineastas estrangeiros, que têm gruas, trilhos, carrinhos e outros macetes que a indústria inventou, para encarecer a produção.

Antônio Lima

* *

Reichenbach fala sobre Paula Nelson

O Lima situou certa vez, que o que eu tentei fazer em meu episódio, foi realizar um filme confessional, mal-criado, mas contundente, onde eu falo através da boca dos meus personagens. O depoimento do que pretendi com A Badaladíssima & Os Picaretas, vai então, através de uma carta que eu poderia ter recebido, quando me encontrava na Guanabara, assinada pela minha personagem maior, porta-voz dos meus anseios.

Carlos, amigo:

Sei o que é a aflição com que vocês aguardam o certificado de boa qualidade, do filme com que você e o Lima, pretendem romper os laços paternalistas do vovô Cinema Novo. Não sei se o pessoal aí do Rio vai entender a importância de Audácia!, pois a chancela desgastada que o movimento deve ter criado na “inteligência” carioca, pode ter cegado os mais chegados a nós.

São Paulo continua dando um berro de independência. Aqui, cada vez mais aparecem filmes realmente únicos. Cada um está na sua, embora qualquer coisa, ainda inexplicável, ainda nos una pelas imagens. Dois filmes que já tive a oportunidade de ver, me estarreceram pela sua pujança revolucionária: Betty Bomba do Rogério, a subversão da imagem, e Gamal, o Delírio do Sexo, do Batista, a subversão do espetáculo. Estes caras, como diria você, foram os primeiros a decepar o fotograma de encomenda. O último Mojica, e o filme de Cappovilla, fizeram eclodir no cinema paulista, aquele cinema que preconizávamos; o verdadeiro descomplexamento. É o Brasil entrando no caminho do cinema de direção, através de Callegaro (O Pornógrafo), e Egbert (República da Traição). Nossos filmes estão sendo feitos na raça., assim como eu tento terminar meu Landru 70, cujo nome, pouco comercial, decidi mudar para Picaretas do Sexo, atendendo às exigências do meu produtor. Se resolvi ceder quanto a isso, foi unicamente para evitar que tivesse que incluir em minha obra cenas de sexanagem pura. Mudando o nome, não precisarei deturpar meu primeiro filme. Sei que você deve estar sorrindo, me chamando de purista fajuta, mas, você sabe muito bem que o negócio só irá pra frente, se nós diretores fizermos valer nossas exigências. Você, eu sei, não tem problema. Você e o Lima, se matam para produzir seus próprios filmes. Aí, eu concordo. Façam concessões até o (§£&) fazer bico. Sabe de uma coisa? Estou (§£&) montes. Cada vez mais, me contradigo. Este filme me deixa louca. Filmar é fazer sexo.

Ontem discuti com a Helena. Lembra-se dela? Lá da Última Hora. Aquela cineasta m potencial, que só sabe falar em Samuel Fuller. Quebramos um quilo de garrafas. O Banana-Macaco se machucou, o (§£&) à quatro. Hoje emergi na maior fossa do hemisfério, e não sei se filmo mais. Talvez gaste as três latas restantes, em panorâmicas circulares sobre a cidade. Ela me sufoca, mas não me vence. O pessoal me abandonou. Vou terminar meu filme sozinha. O meu assistente, muito badalador, qualquer dia me violenta em filmagem. Sabe de uma coisa? Estou com vontade. Minha família se nega a reconhecer minha independência. Esse negocio de família interferindo na vida da gente, não pega mais. Eu estou na minha. Eles não. Depois que larguei o Bill, aquele fazendeiro que andou me chifrando com uma atrizinha de (§£&), andei namorando com o Joseph, o ator que você lançou. Aprendi que este negocio de namorar com ator é o fim da picada. O cara é um chato que se pretende inserido. Que bolha! A única coisa que aprendi com ele, foi evitar aquelas picaretagens de botequim e festinhas badalativas.

Chega de falar de mim, poxa! Escreva-me sobre vocês. Como é, continua confiando no publico? Tenho certeza que ninguém vai negar a importância daquilo que vocês em ficção documentaram. A loucura de fazer filmes cada vez mais corajosos para o publico equatoriano. E os projetos futuros? Como é que vai o seu roteiro sobre as eminências pardas, o “Canastra Real”, não é assim que chama? E “A Grande Cachorrada”? Quando é que sai o musical do Lima? Pelo amor que você tem à sua madre, escreva-me logo. Estou desesperada. Traga a luz!

Paula Nelson, virgem mas progressista.
São Paulo, 3 de setembro de 1969.

Uma semana depois, Paula sofria um sério acidente, não podendo concluir sua obra. Por ela e por tantos outros, prometo continuar a fazer filmes doentios, até que um assistente se decida a me empurrar do 13o andar de um edifício.

Carlos Oscar Reichenbach Filho

17.3.07

As salas de horror da doutora Suspiria

Alida Valli e Jessica Harper em "Suspiria"

JAIRO FERREIRA

Tentei duas vezes, na semana passada, assistir ao filme "Suspiria", de Dario Argento, e tive que sair bufando das salas. Vejam em que cinemas tive coragem de ir: Marrocos e Central 1.

Ao entrar no Cine Marrocos, vi um borrão vermelho na tela. Não me assustei porque sei que o diretor Dario Argento é dado aos efeitos especiais mais extravagantes. Fui me esgueirando pela lateral, procurando uma poltrona vazia, sem a ajuda de qualquer lanterninha. Sentei numa que estava quebrada, ou melhor, não cheguei a sentar, porque naquela escuridão não há quem não apalpe antes para ver se há poltrona. Naquela fileira, encontrei duas ou três quebradas, mas sentei numa que ao menos tinha assento. Apoiei bem as mão e fui soltando o corpo devagar. O assento caiu no chão e resolvi assistir ao filme em pé. A imagem era um borrão só, o som estava cheio de interferências. Desisti de vez quando percebi que uma pulga estava me atacando.

Teimoso, desconfiando que o filme valia a pena, corri ao Central 1, na av. Ipiranga. Entrei e achei que estava tudo muito estranho: os borrões vermelhos continuavam na tela, como no Marrocos, mas a diferença é que dessa vez tudo era silêncio. Dei um tempo, achando que se tratava de uma seqüência sem som, mas aí surgiram muitas legendas na tela e descobri o óbvio: o som da projeção estava desligado. O mais estranho é que ninguém assobiava, ninguém gritava "olha o som". Nada disso. Tomei a iniciativa de reclamar ao gerente, que logo tocou uma campainha, alertando o projecionista. O som foi ligado, mas aí pensei comigo: o som daqui é tão deficiente que o melhor mesmo é assistir mesmo sem som. Mas me irritei com uma cortina que joga luz na tela a cada vez que entra um espectador, além de um vozerio vindo da sala de espera. Dei tudo por perdido e jurei nunca mais voltar a essas duas salas.

Mas vejam bem: desisti das salas, não desisti de assistir ao filme. "Suspiria" estava em cartaz também no Ibirapuera 2, lá na zona sul, perto do aeroporto. Cada avião que pousa causa um estrondo que deixa qualquer outro ruído fora do ar por alguns minutos. Isso, porém, não seria o mais grave, desde que a projeção estivesse boa. E não é que estava! Entrei na sala e não vi nenhum borrão vermelho, embora a cópia seja puxada ao rubro. O som também estava perfeitamente audível, tanto que passou o "trailler" de um filme nacional e consegui entender tudo o que diziam. O ar condicionado não estava ligado, mas também não se pode exigir tudo; meu único azar é que o ar só foi ligado na sessão seguinte, quando a sala ficou mais cheia.

No Ibirapuera 2, deixei de bufar, embora não desse para suspirar a contento. Mas o filme suspirou por mim. Trata-se de um filme de horror, suspense e pavor do início ao fim. Logo nos 15 minutos iniciais percebi outra evidência: o horror é a projeção do Marrocos e Central 1; o horror é só o filme na projeção do Ibirapuera 2.

"Suspiria", de resto, me gratificou. Dario Argento, ex-crítico, bateu todos os recordes de citação. De cara, numa tempestade no aeroporto de Roma, cita o Hitchcock de "O Homem que Sabia Demais". A personagem chega a uma mansão e já começam homenagens a "O Solar Maldito", de Roger Corman, "Os Inocentes" (através de um garoto loirinho), ao "Dentes de Aço" dos últimos 007 (através de um criado que usa uma brutal dentadura).

A linha condutora de Dario Argento é mínima, mas desenvolvida ao máximo de substância narrativa. Numa frase, é a trajetória de uma jovem que vai estudar balé em Roma e descobre um reduto de bruxaria. Mas o diretor recheia esse clichê com alusões a dezenas de filmes. Passa pelo "Exorcista", "Carrie, a Estranha", "O Gabinete do dr. Caligari", "A Profecia", "Os Pássaros", "Psicose", "A Câmara de Horrores do dr. Phibes", "O Ano Passado em Marienbad", "O Bebê de Rosemary", "O Inquilino" e até mesmo seu próprio filme "O Gato de Nove Caudas".

Em matéria de reciclagem de clichês, há muito não via algo parecido. Dario Argento é fulminante: não há sequer uma seqüência que possa ser atribuída a "ele". Todos os "seus" personagens lembram personagens de "outros" filmes. Quando uma bruxa secular é desintegrada até virar pó, a referência é o final de "O Vampiro da Noite", de Terence Fisher; quando uma personagem leva uma navalhada, há um detalhe do corte e homenagem direta ao Buñuel de "A idade do Ouro". Só quem assistiu a muitos filmes de horror e, de resto, muitos clássicos de todo cinema, é que poderá verificar e se deliciar com essa brincadeira. O esquema deve ter sido este: Dario Argento montou um cenário fantástico, dentro de uma enorme mansão, cheia de labirintos e alçapões, e resolveu colocar dentro dela todos os filmes de que gosta. Para quem gosta dos filmes de que ele gosta, "Suspiria" é certamente um filme a ser lembrado na relação dos melhores de 80.

(Folha de S. Paulo, 5 de fevereiro de 1980)

13.3.07

CRITICANARQUICA ANOZERO DE CONDUTA

A Cinegrafia foi uma revista editada pelo Carlão Reichenbach, Inácio Araujo e Éder Mazini. Entre os colaboradores, estavam o Jairo e Ozualdo Candeias. As ilustrações eram assinadas por um tal de Khoury. Embora a contracapa prometesse para a segunda edição uma matéria especial sobre "Reed, Máxico Insurgente", do Paul Léduc, a revista ficou neste número único (julho de 1974).

Foi na Cinegrafia, por exemplo, que saiu a famosa entrevista (15 páginas!) com o Paulo Emílio feita pelo Carlão e o Inácio.

Os dois próximos textos foram tirados da revista.


PS: o crédito a quem de direito: o artigo foi republicado na Contracampo (http://www.contracampo.com.br/25/zerodeconduta.htm), quando eu e o Ruy Gardnier pesquisamos material do Jairo na Cinemateca do MAM/RJ. (JT)

* * *

Meus cadernos de cinema/cahiers du cinema escritos com uma Parker 51 que acabei perdendo numa poeira, em 63, registraram & comentaram 1.200 filmes, com o que comecei a pagar imposto de renda crítica ao único crítico que respeitei (Jean-Claude Bernardet, na fase anárquica de UH 62/63). Biáfora era o mestre de berço e os cahiers roubados sempre na cabeceira ao lado do Spica.

A admiração física pelo cinema estava nascendo. Comprei e bifei então todos os livros de cinema. Uns quinze, entre nacionais e coleção espanhola Rialp. Li todos de cabo a rabo, andando pelas ruas da vila Carrão, Tatuapé, ônibus onde passageiros davam tiros & intervalos das sessões de cinema na área: cines Universo, Bras Politeama, Piratininga, Gloria, São Luiz, Aladin, São Jorge, Penha Palace e Príncipe, Jupiter & demais poeiras adjacentes. Solitário ou acompanhado de um colega de infância imbecil, o Cálgaro (até hoje meu amigo: só tenho amigos sinceros que aceitam as minhas agressões frontais), eu era, o anti-intelectual por excelência. Não é como no Day for Night ou nos filmes do Godard, a mania & tradição francesa do intelectualismo, onde os personagens acabam de ver um filme e já agarram uma revista. Eu buscava informação para entrar no cinema bem calçado. Pois nessa época não havia escola de cinema. Tive que ser autodidata. O cinema profissional que me esperava, entretanto, era uma selva, na Boca do Lixo a cultura era a vivência profissional. Fiquei meio sacaneado com isso e apelei para o ambiente dito cultural, profissionalmente empírico, o cineclubismo, felizmente, terminou me devolvendo à Boca do Lixo. Exorcizei-me da formação autodidata e fiz as primeiras amizades no Costa do Sol, Honório (da 8ento Freitas). Isso em 65/66. Eu já escrevia no São Paulo Shimbun (jornal da colônia japonesa) & as "brainstorms" que originavam as críticas nasciam com técnicos & diretores de cinema da Boca. Principalmente o Candeias, que se recusava a ir em cinema (antes da "Margem").

Meu diploma tinha sido uma curta mas fulminante liderança cineclubística no Dom Vital, onde o Zé Júlio Spiewak me apresentou o Sganzerla. O Trevisan acompanhou comigo toda essa época, pois trabalhava no Cinemateca. Era um encucado & julgava-me "sem-fundamentação", dizendo que eu era inconseqüente. O cara demorou mas se retratou e ficamos unha e carne até ele dar o grito libertário com Orgia. As Críticas do "Shimbun" continuavam. Eu ganhava uma ninharia, mas recusei sistematicamente passar para outros jornais. Só a marginalidade do "Shimbun", que eu distribuía de mão em mão, garantia a liberdade crítica. Não era critica de jornal: era crítica de cinema, crítica brasileira legítima, pois abalizada junto ao ambiente cinematográfico brasileiro, paulista em particular. Estava nascendo o JT, com página inteira de crítica, eu (§) montes ao Sganzerla crítico, ou Capovilla, conteúdista. Lima, um mineiro cinemaníaco, foi expulso do Dom Vítal, num de- bate sobre "Menino de Engenho". Os demais críticos de SP eram fantasmas. Apelidamos o Alfredo Sternheim, que se assinava "S" de "O Sombra". O Fassoni era neutrol puro, portanto saudável. O Ignácio Loyola me deu toda a promoção. O Orlando Parolini, primeiro crítico do "Shimbun", ficou de eminência parda até que assimilasse o anarquismo dele para ser eu mesmo e inclusive contestá-lo radicalmente (os anárquicos são pólvora crítica versus nitroglicerina cultural), mas até hoje o Parolini é um poeta melhor que Piva e Willer, justamente por isso perdido no anonimato.

"Pierrot le Fou", do Godard, tinha chegado com um atraso de pelo menos 7 anos no Brasil, como criação, pois eu & Parolini já tínhamos adaptado vivencialmente não só o Rimbaud, mas Lautréamont também. Deglutimos tudo antropofagicamente, antes da diluição tropicalista. A tragédia: Parolini, muito doido, destruiu em 68 o média-metragem "Via Sacra", fotografado pelo Reichenbach, então aluno da ESC. Assim, o testemunho só sobreviveu mesmo guttemberguiamente. Era a minha primeira direção. Brigas Rimbaud/ Verlaine.

O cinema nacional prosseguia de mao a piao. Godard era deus. Glauber ("Terra em Transe") era pederastia & lirismo caótico. Sganzerla, com "Luz Vermelha", não me impressionara no lançamento, mas depois passei dois anos dissecando o filme e considerei o bicho como a revolução fílmica a que eu inclusive me propusera. Tinha eclodido a Boca do Lixo como movimento. Voltei a ela, disposto a me afundar nos pântanos da rua do Triunfo. Alidado com Callegaro ("Pornógrafo"), consegui me libertar novamente: até hoje acho o filme tão bom quanto "0 Bandido". Como crítico ainda e sempre no "Shimbun" a idéia de ser um baluarte da crítica me deu grandes prazeres. Em 69/70 eu resolvi assumir Rimbaud "in totum": autoflagelação numa quitinete do Glicério para fazer a melhor crítica de cinema do Brasil. O estômago contra as costelas, anotações críticas do silêncio do cinema nacional. O Jean-Claude não escrevia mais. Pelo Trevisan, conheci-o pessoalmente. Confirmou-se o respeito. Mas a minha luta (mein kampf) era também contra ele, Realismo Crítico. Contra essa limitação, embora salvaguardando-a e aliando-se a ela dentro de um processo. Aliás é a batalha que continua com meu amigo Petri: um continuador de Jean-Claude? Claro que não, mas incorporando-o dogmaticamente. Quando, da minha parte, os dardos críticos continuam rasgando as limitações do realismo crítico. Prosseguirei a guerra até a exorcização de Oswald de Andrade, Brasileiro & antropófago, o revolucionário total. Por isso ninguém se retrata: eles ainda acham que o MacLuhan é um reacionário, coisa que não importa nele, & de lingüística sabem tanto quando a vovó cibernética de tricô. Escrevem sobre filmes sem saber que a moviola é uma teia de aranha elétrica & magnética. O Inácio Araújo é o único montador que conheço a ser ao mesmo tempo um sintetizador lingüístico & editor crítico, talento que segundo Biáfora o cinema nacional "não merece".

Como se nota, só há meia dúzia de críticos de cinema consideráveis em SP: eu, discípulo libertário e autônomo do Biáfora, e o Paulo Emílio Salles Gomes, que na década de 40 foi mestre do Biáfora e, nos anos loucos de 60, mestre do admirável Jean-Claude Bernardet, que agora tem por diluidor o caríssimo Renato Petri. Em síntese: Paulo Emílio foi o grande precursor, escreveu um livro sobre Jean Vigo para libertar-se ("exorcismo"), e sabemos muito bem quem foi o avô Vigo novecentista, tanto quanto ignoramos o Zelão, pai do Hélio Oiticica. A crítica de cinema, nesta paulicéia nada desvairada, nasceu com Paulo Emílio e poderá morrer comigo, gerações extremas de uma anarquia crítica. Os demais críticos trabalhadores & bem intencionados inclusive são sucata jornalística, portanto não consideráveis cinematograficamente.

(Cinegrafia, número 1, julho de 1974)

noite americana

Operação pente fino na frescura truffautiana. Filme para novas platéias, para despertar cinéfilos embrionários. Meta-cinema em si, anti-crítico, a degeneração da criatividade.

Petri falou bem: "um filme comercial dentro de outro, mais comercial ainda".

Truffaut precisava disso. Deixa ele emocionar platéias virgens. O romantismo novecentista, afinal, não é tão nocivo, é apenas inútil. Godard, Chabrol e Truffaur, só restou mesmo o primeiro. Luc Moleque algum dia ainda vai acionar os seus contrabandistas contra essa novela lírica & requintada.

E pensar que Truffaut foi o "enfant terrible" da crítica francesa. Não se pode negar-lhe o talento, apenas é lamentável a sua mediocridade & frescura. Besteira, paixão adolescente pelo "Cidadão Kane", um sonho que há muito acabou. Autêntica molecagem, isto sim.

O cinema não é um território neutro, mas só Godard para saber disso.

Também não gosto de fellini, mas "Oito e Meio" ou "Roma" são bem melhores que "Day for Night". Têm, ao menos, uma ironia, uma carga de ruptura potencial.


Truffaut não: agora vai descansar dois anos, relendo sua biblioteca. Descanse em paz! (JF)

(Cinegrafia, número 1, julho de 1974)

Aos premiados de ontem

O parágrafo é dedicado aos premiados de ontem: Tonacci, Garrel, Glauber e Varda. O Jairo aprovaria. (JT)

O lance de dados cinematográficos nunca é saída pela tangente, mas saída abrangente, entrada no que interessa. A poesia é radical por natureza porque toma tudo pela raiz, não pelo tronco, galhos e folhas, frutos e sementes. Um filme que não seja poético não está com nada. Poesia é o supra-sumo da arte, quinta-essência do cinema, a maior de todas as artes. Só os filme poéticos é que interessam, libertam, revolucionam. (FSP, 13/2/80)

Prêmio Jairo Ferreira - Favoritos do Júri

Melhor Longa Brasileiro
Serras da Desordem, de Andrea Tonacci

Melhor Lançamento em Cinema
Amantes Constantes, de Philippe Garrel (Imovision)

Melhor Lançamento em DVD
Terra em Transe (Edição Restaurada), de Glauber Rocha (Versátil)

Melhor Mostra de Audiovisual
Agnès Varda: O Movimento Perpétuo do Olhar (CCBB-SP, Odeon BR-RJ, CCBB-DF - curadoria e produção: Cristian Borges, Gabriela Campos, Ines Aisengart)

12.3.07

O Guru e os Guris: é hoje!

Algumas fotos que o Jairo deixou comigo. Devo ter mais algum material sobre o filme, mas andei sem tempo de procurar.

Jairo durante as filmagens
Maurice Legeard


10.3.07

Prêmio Jairo Ferreira

Será realizado na próxima segunda-feira, 12 de março de 2007, às 20h30, o I PRÊMIO JAIRO FERREIRA, no CineSesc (SP). Na ocasião, serão exibidos, em sessão especial para convidados, o curta O Guru e os Guris, de Jairo Ferreira, e o longa inédito Cão sem Dono, de Beto Brant.

O PRÊMIO JAIRO FERREIRA é uma iniciativa conjunta dos editores e redatores de cinco revistas de cinema brasileiras: as eletrônicas Cinequanon, Cinética e Contracampo; e as impressas Paisà e Teorema. São revistas que possuem laços fortes de amizade e trabalho, empenhadas em fazer da crítica de cinema antes de tudo um exercício de paixão. Os críticos que trabalham nelas são em sua maior parte de uma geração surgida em textos nos anos 1990, entre pesquisadores acadêmicos e de fora da universidade, jornalistas, professores e por profissionais de outras áreas. Elas se unem agora nessa primeira iniciativa comum, que será complementada depois com uma série de debates durante o Festival Melhores do Ano do Cinesesc - e que se propõem como as primeiras de outras intervenções em conjunto.

A iniciativa presta homenagem ao crítico Jairo Ferreira – autor, entre outros, do livro Cinema de Invenção e do filme O Vampiro da Cinemateca. Jairo primou pela paixão de e em seus textos, sempre a valorizar o estilo e a inventividade dos diretores, com um tipo de linguagem livre que deixou de ser aceita na imprensa. Ele e seu espírito crítico vêm servindo de inspiração direta e constante para o trabalho dessas revistas, que se caracterizam pela não remuneração e a desvinculação de empresas. Jairo foi coordenador de cineclube (Dom Vital) nos anos 1960 e escreveu nos jornais São Paulo Shinbum (1966-1972) e Folha de S. Paulo (1976-1980). Foi colaborador das revistas Cisco e Filme Cultura, e dos jornais Cine Imaginário, Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo.

O júri do Prêmio é composto por 35 críticos dos 5 veículos (a maioria fixada em Rio de Janeiro e São Paulo, mas com representantes de Porto Alegre e Belo Horizonte), sendo, assim, o mais abrangente prêmio anual de crítica de cinema do país em termos de número de votantes e o único que quebra fronteiras regionais.

O Prêmio elegerá os melhores a partir de uma lista de indicados previamente apurada, nas seguintes categorias:

Melhor Longa Brasileiro
Concorriam às indicações todos os filmes com primeira exibição em SP ou RJ ao longo de 2006.

Os indicados:
O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger
O Céu de Suely, de Karim Aïnouz
A Concepção, de José Eduardo Belmonte
Eu Me Lembro, de Edgard Navarro
Serras da Desordem, de Andrea Tonacci

Melhor Lançamento em Cinema
Concorriam às indicações todos os filmes realizados após 2004, que tenham 2006 como ano de seu primeiro lançamento comercial em cinema no Brasil.

Os indicados:
2046, de Wong Kar-wai (Pandora)
Amantes Constantes, de Philippe Garrel (Imovision)
A Dama na Água, de M. Night Shyamalan (Warner)
Miami Vice, de Michael Mann (UIP-Paramount)
O Novo Mundo, de Terence Malick (Playarte)
O Plano Perfeito, de Spike Lee (UIP-Paramount)

Melhor Lançamento em DVD
Concorriam às indicações todos os lançamentos em DVD de 2006 – levando-se em conta a qualidade das edições e complementos, e a originalidade e/ou relevância do lançamento.

Os indicados:
Eu, um Negro, de Jean Rouch (Videofilmes)
Mestres do Horror, de vários diretores (Paris)
Rastros do Odio (Edição Especial), de John Ford (Warner)
Sarabanda, de Ingmar Bergman (Columbia)
Terra em Transe (Edição Restaurada), de Glauber Rocha (Versátil)

Melhor Mostra de Audiovisual
Concorriam às indicações mostras realizadas no Rio de Janeiro e/ou São Paulo em 2006, valendo apenas menções a eventos de freqüência não-regular e/ou única.

As indicadas:
Agnès Varda: O Movimento Perpétuo do Olhar (CCBB-SP, Odeon BR-RJ)
O Cinema Que Reinventa a Política (Reserva Cultural-SP, Maison de France-RJ)
Faces de John Cassavetes (CCBB-RJ)
As Muitas Faces de Jece Valadão (CCBB-RJ)
Nam June Paik (Oi Futuro – RJ)

1.3.07

O terror invade o pornô

Há um ano atrás, os jornais norte-americanos deram grande destaque a um filme que estava em exibição especial nas salas de Nova York, com ingressos que chegavam a custar até 500 dólares. Esse filme, chamado simplesmente "Snuff", estava lançando uma nova moda, destinada a incrementar a violência no cinema, como se isso ainda fosse possível depois dos famosos "banhos de sangue" de Sam Peckinpah, cujos orçamentos são calculados por litros de sangue (400 em média por cada filme).

Tudo podia ser mera publicidade, mas pouco ficou decidido até o momento. Os distribuidores alegam que não sabem nada sobre a produção de "Snuff", pois limitam-se a distribuir o produto. O filme não é assinado por ninguém e não há nome de atores ou técnicos. A única palavra que aparece na tela – em letras vermelhas, é claro – é Snuff, que vem da gíria norte-americana e, traduzida em gíria carioca, deve significar "apagar", ou seja, matar realmente as vítimas.

Enquanto o filme continua faturando, surgem diversas versões sobre sua procedência. Há muita especulação em torno do caso, mas já é certo que foi filmado num país da América Latina, a Argentina. Os produtores, entretanto, são norte-americanos e, segundo os jornais de lá, vieram filmar na Argentina devido às facilidades para escapar a um possível cerco policial e só estão exibindo o filme nos EUA porque aí é mais fácil se defender das acusações. Enfim, uma transação perfeita.

Com base nessas informações, surge o primeiro filme nesse estilo no Brasil: "Snuff – Vítimas do Prazer", de Cláudio Cunha, cujo stand já está exposto em frente ao Cine Marabá, que está exibindo "A Profecia". Nas telas, o público pode ver o "avant-trailler" do filme, composto de entrevistas com espectadores à porta do próprio cinema. O entrevistador pergunta: "O que você faria se assistisse um filme onde as pessoas morrem de verdade?". As respostas são as mais variadas e, entre a mais tipicamente brasileira, destaca-se um espectador que responde: "Eu acho sensacional, desde que tenha mulher pelada".


Cláudio Cunha, diretor de "Snuff – Vítimas do Prazer", explica seu filme: "É a história de dois produtores de filmes clandestinos que pretendem realizar um filme no gênero snuff no Brasil. Eles chegam aqui e contratam a equipe técnica, visitam as bocas do lixo e do luxo, procurando as atrizes e vão envolvendo elementos de uma pequena produtora local. E, no filme que eles começam a fazer, as mortes acontecem realmente. Quer dizer, não matamos ninguém, embora nossas cenas tenham sido filmadas com um realismo impressionante".
Cláudio Cunha começou no cinema como diretor de pornochanchada ("O Clube das Infiéis", 1973), passando logo a um filme de melhor nível: "O Dia em que o Santo Pecou" (1976). Ao mesmo tempo em que cuida de um posto de gasolina, "de onde tiro o dinheiro para fazer cinema, quer confessa também que "Snuff – Vítimas do Prazer", é seu filme mais importante até o momento. E ele explica o que lhe atraiu nesse projeto:

- Ao longo de sua história, o cinema sempre namorou a morte, quero dizer a morte verdadeira, sem truques, sem cortes. Quem não se emocionou com o documentário "Corações e Mentes", que atinge seu ápice dramático na cena de execução do prisioneiro vietcong? Quem não teria ficado constrangido ao ver as chacinas filmadas pelo segregacionista Jacopetti em "África, Adeus"? Quem não se estarreceu com as imagens do cinegrafista que, documentando batidas de tropas militares no Chile, acabou filmando sua própria morte? Entretanto, o fato mais abominável, registrado propositadamente por uma câmera, ocorreu recentemente. Basta lembrar que, há uns dois meses atrás, durante uma exibição de "Snuff", em Nova York, os estudantes sul-americanso resolveram fazer uma passeata em frente ao cinema, com cartazes e faixas em que se liam frases no estilo "Na América Latina a vida não vale nada".


Para fazer o roteiro de "Snuff – Vítimas do Prazer", Cláudio Cunha convidou Carlos Reichenbach, também diretor de cinema, responsável por "Lilian M – Confissões Amorosas" (1975), um dos melhores filmes brasileiros sobre a prostituição e suas transfigurações sociais, na linha crítica de "A Mulher de Todos" (1969), de Rogério Sganzerla, e "As Escandalosas" (1971), de Miguel Borges. E Carlos Reichenbach se entusiasmou com o roteiro de "Snuff – Vítimas do Prazer":


- O que me atraiu no roteiro foi a possibilidade de exercitar o chamado metacinema, ou seja, o cinema que fala do cinema, desnudando-se a si mesmo e se desmascarando na frente do público. Por isso discutimos muito, eu e o Cláudio, sobre o cinema norte-americano, sobre as produções classe B, Samuel Fuller, Norma Foster, Robert Gordon, Don Siegel, Budd Boetticher e outros diretores que sempre estiveram mais ou menos marginalizados. E discutimos principalmente sobre as multinacionais do cinema e seu relacionamento com os países da América Latina. Fizemos um levantamento de dados, onde vimos que eles são sempre paternalistas e, quando filmam por aqui, estão interessados em usar o baixo preço da mão de obra e o material humano. Em "Snuff", quero dizer, o tal filme americano, a utilização do material humano chegou ao ponto extremo: a morte verídica. Resolvemos então fazer um filme inspirado nisso, mas basicamente um filme denúncia.


"Snuff – Vítimas do Prazer", que entrará em cartaz no Cine Marabá depois de "A Profecia", acompanha a trajetória inescrupulosa de dois produtores, Michael Tracy (Hugo Bidet) e Bob Channing (Fernando Reski), que estão dispostos a realizar um snuff no Brasil, mas alegam que se trata simplesmente de um filme pornográfico para o mercado europeu. Eles contratam técnicos na Boca do Lixo e, entre as noitada nas boites, falam desbragadamente em inglês, deixando os técnicos e atrizes sem entender nada. Carlos Reichenbach comenta:


- Cláudio Cunha aproveitou integralmente as idéias do roteiro e foi muito feliz utilizando legendas nas seqüências em que os dois impostores falam em inglês. É um excelente forma de denunciar a malandragem que está por baixo das multinacionais do cinema, além de dar um aspecto altamente crítico a um filme nacional, pois já fizemos até um teste e, nas seqüências faladas em inglês com legendas, o público pensa realmente que está assistindo a um filme norte-americano. No entanto, trata-se de um filme brasileiro.


Utilizando ainda o esquema da pornochanchada, já que não faltam mulheres nuas no filme (Rossana Ghessa, Nadyr Fernandes, Lúcia Alvin, Patrícia Celere, Fátima de Jesus), "Snuff – Vítimas do Prazer" termina realizando o que se pode chamar de casamento de pornochanchada com o cinema de terror. Cláudio Cunha não gosta de falar em pornochanchada:


- Meu filme não tem nada a ver com pornochanchada. Fiz um filme sério, tratando de fatos que estão acontecendo. Não quis fazer um filme para divertir, mas principalmente para mexer com as emoções do espectador. Eu acho que o cinema vive basicamente de emoções e, se há mulheres nuas aqui ou ali é porque elas de fato estão em toda parte. Mas o desenvolvimento do filme vai indo em ritmo de suspense cada vez maior. Por isso não vamos permitir a entrada de espectadores nos últimos 15 minutos de projeção, pois essa é a única forma de deixar o espectador sentir maiores emoções sem interferências de pessoas que entram e saem. E lógico que, quem quiser poderá sair antes. Mas duvidamos que isso aconteça.


Carlos Reichenbach, que deverá iniciar brevemente seu novo longa-metragem, "Bandidas e Safados", afirma que seu trabalho como co-roteirista é o primeiro que o satisfez por completo, ao contrário de outro trabalho no gênero, feito pra Roberto Mauro, que "pegou um argumento meu e modificou completamente, eliminando tudo que havia de bom". E acrescenta: "Com Cláudio Cunha fizemos realmente roteiro de cinema. Passamos dias discutindo filmes como "Trama Diabólica", de William Castle, ou "O Sol por Testemunha" de René Clair. O resultado foi um trabalho de deglutição, isto é, criação em cima de filmes de cinema. Por isso não vou adiantar mais nada. Espero o momento em que o filme irá entrar em cartaz para ver a platéia se assustar".


Jairo Ferreira
(Folha de S. Paulo, 2 de março de 1977)