25.4.07

Anarquia poética contra o cinemão


JAIRO FERREIRA

A partir da próxima segunda-feira, num circuito encabeçado pelos cines Marabá e Olido, estará em cartaz um novo filme paulista, que muitos não hesitarão em classificar como "mais uma pornochanchada da Boca do Lixo". O título nem sequer disfarça essa impressão: "A Ilha dos Prazeres Proibidos". O produtor é Antônio Polo Galante, capaz de fazer ao mesmo tempo os piores e os melhores filmes. O diretor, porém, é Carlos Reichenbach, hoje um dos cineastas mais polêmicos do cinema brasileiro: "Sob o rótulo de pornochanchada, bilheteria certa, ocultam-se hoje os biscoitos finos da produção independente. Se tivesse que classificar, diria que meu filme é uma aventura deflagradora, feita em ritmo dos seriados que passavam nos cinemas nos anos 40 e 50". Aqui, uma entrevista com Carlos Reichenbach:

Folha: Como surgiu a oportunidade de realizar esse filme?

Reichenbach:
Há algum tempo, o Galante me propôs fazer um filme de reformatório de mulheres. Eu não dirigia desde 75, e a idéia me instigava. Escrevi um argumento usando o repertório dos filmes do gênero, dandoum cunho anárquico muito pessoal, inspirado em um dos filmes que mais gosto: "Zero de Conduta", de Jean Vigo. Denominei o projeto "As Rebeldes" e ficamos esperando o momento certo de realizá-lo. Nosso contato diminui quando fui filmar "Capuzes Negros", e a onda do gênero acabou passando. Posteriormente, fiz alguns trabalhos para ele, e durante um papo levantei uma questão que achava interessante. O Galante sempre produziu em quantidade, e de uma forma ou de outra, no meio da volumosa safra, apareciam títulos de importantes realizações do cinema paulista. De cabeça, me lembro de "O Pornógrafo", de João Callegaro, "A Mulher de Todos", de Rogério Sganzerla, "Em Cada Coração um Punhal", com episódios de João Batista de Andrade, Sebastião de Souza e José Rubens Siqueira, "As Deusas", de Walter Hugo Khouri, "A Guerra dos Pelados", de Sílvio Back. Contei a ele que, certa época, me interessei em filmar uma espécie de continuação do originalíssimo filme de Sganzerla, retomando a idéia de uma ilha onde personagens libertários co-existissem pacificamente com renegados de toda a espécie. Na essência, um filme de humor. O titulo, retomando "A Mulher de Todos", que era ambientado na chamada Ilha dos Prazeres, deveria ser este, mas o produtor acrescentou "Proibidos", exultando.

Folha: a aproximação com o filme de Sganzerla fica só no titulo ou tem algo mais a ver?

Reíchenbach:
No filme de Sganzerla, o fênix orgástico foi batizado de "A Ilha dos Prazeres Extremos" e aí cessam as identificações com "A Mulher de Todos". Afora o título e o espírito anárquico, meu filme é mais um dos meus exercícios de metacinema. Sempre Imaginei fazer alguma coisa que tivesse o ritmo dos antigos seriados da RKO. Um filme para o público do cine Arizona, que desse a impressão de que a cada dez minutos entraria um letreiro: "Continua na próxima semana, não perca...", mas misturado ostensivamente com vários gêneros. Fiz o filme sob essa inspiração, acrescentando novas idéias e principalmente o humor à poesia. Meus roteiros e o cinema que eu gosto de fazer tomam corpo na medida em que tentam se aproximar dos filmes que eu gosto de rever ("A Marca da Maldade", "O Desprezo", "Crepúsculo dos Deuses", "A Lei dos Marginais", "Intriga Internacional", "O Tigre da Índia").

Folha: O que você acha que o cinema deve ser hoje?

Reíchenbach:
Basicamente, um filme pra mim deve sugerir. Em todos os sentidos. Detesto o filme de tese, o cinema-denúncia, o filme que se auto-promove, o cine-verdade. E acho que essa tendência do cinema atual é a que mais contribui para a miséria criativa do momento cinematográfico mundial. Nada mais sintomático do que Cannes premiar "Pai Patrão", um filme maravilhoso que faço força para ignorar. Nada mais sintomático que a vanguarda estar sendo chamada hoje de reacionária. Jean Marie Straub filmando Schoenberg é muito mais sugestivo e revolucionário do que o 200° filme cubano dirigido telepaticamente por Fidel Castro. Isso sem falar do chatérrimo cinema polonês/tcheco/russo, revisitanto os terrores da Segunda Guerra Mundial. Mil vezes mais prefiro o sugestivo ping-pong documentado pelos técnicos chineses.

Folha: O que você entende por "sugestivo"?

Reichenbach:
Sugestivo é Makavejev em "Mistérios do Organismo" (1971), Brian de Palma ("Trágica Obsessão", "Carrie, a Estranha"), "Agonia", de Júlio Bressane, e o genial "As Filhas do Fogo", um filme aterrador de Walter Hugo Khouri como nunca se imaginava. Sugestivo é Nagisa Oshima com "O Império dos Sentidos" e "O Império da Paixão", descobrir Sam Wanamaker ("Simbad contra o Olho do Tigre"), um novo Samuel Fuller. Sugestivo é fazer um filme de cinema (entendido como política) sem falar em política (entendida como cinema) ou vice-versa. Sugestivo é reler Edgar Allan Poe, Rimbaud, Blake, Sá Carneiro, Jorge de Lima, Oswald e Sousândrade, ouvindo ao mesmo tempo as trilhas cinematográficas de Bernard Herman ou as sonatas de César Franck, ou ainda o último disco de Walter Franco.

Folha: Você tinha todas essas preocupações culturais quando realizou "A Ilha dos Prazeres Proibidos"?

Reichenbach:
Quando realizei esse filme, me preocupei em não complicar nada. Ê o que chamo de sugestão na empatia. Por isso a estória é linear, simples. Trata-se de um filme de aventura, como eu gostaria de assistir. Uma trama simples que prende a atenção e o espetáculo mostrando coisas que eu gostaria de sugerir. Tentei usar todos os chavões do gênero, exacerbando quando julgava necessário. Acho que o excesso distancia e permite ver o que interessa. Se o gênero exige melodrama, criei diálogos melados e procurei dublar o mais dramaticamente possível. Se exigia sexo, besuntei o corpo dos atores com óleo, fiz a atriz gemer. Se exigia violência, explodi um personagem. Há de tudo em "A Ilha dos Prazeres Proibidos". Do faroeste ao dramalhão, do policiai à chanchada, da pornô à poesia. É um filme sobre a solidão, o exílio, a rebeldia, o inconformismo, o amor e a morte. Um filme que se auto-define na boca dos personagens. Sem modéstia, um filme sugestivo sobre muitas coisas.

Folha: Atualmente, as discussões sobre o cinema brasileiro se limitam a um único tema: o mercado de exibição e sua conquista. De um lado, há o chamado Cinemão da Embrafllme, de outro, o Cineminha, isto é, o cinema experimental. Qual é a sua posição diante disso?

Reichenbach:
O delírio mercadológico está acabando com o cinema do Brasil. O Cineminha quer ser Cinemão, o Cinemão tem vergonha de não ser Cineminha. O novo está ficando velho, o novíssimo implodiu e morreu nas estradas de "Orgia" (1971), de João Silvério Trevisan, ainda interditado pela Censura. O cinema novérrimo nem sequer surgiu. Quem sobrou anda trocando as idéias pelo "bordereaux", o relatório das rendas. A câmara na mão foi trocada pela grua feita em fundo de quintal por José Manir. Não acredito em primeira, segunda ou terceira posição. Cinemão e Cineminha são coisas da Embrafilme, ou melhor, de quem transa com ela. Nunca me interessei em fazer meus filmes com verbas oficiais. Ajudei na luta da conquista do pólo cinematográfico de São Paulo, mas ainda não me interessei em apresentar projetos. Continuo achando que financiamentos oficiais só devem ser dados para filmes anticomerciais, para filmes prontos e que estão nas prateleiras. Se dependesse da Embrafilme, juro que estaria fazendo Cineminha.




Folha: A produção Independente ainda representa uma saída para o cinema brasileiro ou está sendo asfixiada pelos filmes do Cinemão da Embrafilme?

Reichenbach:
O asfixiamento é um fato, mas a produção classe "B" da rua do Triunfo, por exemplo, resiste e fatura alto. Consigo fazer meus filmes sem verbas oficiais, não tenho nenhum mecenas entre a família, torrei meu único dinheiro em "Liliam M" e não me arrependo. Resolvi ser técnico para não abandonar a profissão. Sou agora registrado como diretor de fotografia, gosto de mexer com refletores.

Folha: Você aceitou as imposições do produtor quando foi realizar "A Ilha dos Prazeres Proibidos"?

Reichenbach:
Eu fiz o filme que quis. O Galante me deu toda a liberdade de filmar à minha moda. A única imposição era o tempo de filmagem, que tinha que durar 20 dias. Achei até bom, porque sei que depois de 20 dias, a equipe começa a apresentar sinais de desgaste, perde o pique inicial e isso se reflete no resultado final. Por isso procurei me cercar de bons assistentes, de técnicos criativos, como Hideo Nakayama, Isabel do Amaral, Marino Henrique, Luis Souza, Amaral, Edson, gente que se desdobrava nas funções para atingir um resultado que considero excepcional, dado o prazo, claro. Se evitamos o uso de "travellings", gruas e "dollys", foi para ganhar tempo.

Folha: Além da boa bilheteria que "A Ilha dos Prazeres Proibidos" deverá render, já que foi co-produzido pela companhia exibidora Sula, que outro tipo de repercussão você espera do público?

Reichenbach:
Gostaria que as pessoas que gostam de cinema e que acreditam que o cinema deva ser político sem falar de política assistissem ao filme. Creio que elas acharão que o filme é, no mínimo; engraçado. Gosto muito dos atores: Roberto Miranda (em perfeita sintonia com a criação), Fernando Benini (repensando sua participação no cinema experimental), Neide Ribeiro (a força do olhar acima da plástica perfeita), Meyre Vieira (uma revelação trágica por trás do talento cômico) e Carlos Casan (a elegância e o profissionalismo extraordinários) que já filmou com Leopoldo Torre-Nilsson, Fernando Ayala e Jacques Deray.

Folha: Por que seu filme anterior, "Sede de Amar", com a Sandra Bréa, ainda não foi exibido?

Reichenbach:
Essa foi uma realização bastante difícil, tem roteiro de Mauro Chaves, demorou 60 dias para ser concluído. Era um filme projetado para 35
dias, no máximo, Trata-se de algo que, sob a ótica da Embrafilme, seria Cinemão. Um filme comercial, elegante, caro, mas de lucro certo. Um desafio que aceitei como exercício de "mise em scéne". Ele será lançado neste mês de Janeiro no Rio.

(Folha de S. Paulo, 12 de janeiro de 1979)

21.4.07

O filme mais ambicioso de Zé do Caixão

... ou de como o cinema no Brasil, como diz o Sganzerla, não anda, mas carangueja.

Vinte e sete anos depois, eis que o filme está sendo realizado. (JT)

O produtor Augusto Cervantes e Mojica Marins: "Encarnação do Demônio"

Entre 1963 e 1967, José Mojica Marins rodou em São Paulo seus dois únicos filmes dignos das antologias do cinema brasileiro, respectivamente "À Meia Noite Levarei Sua Alma" e "À Meia Noite Encarnarei no Teu Cadáver". Desde então já tinha pronto um outro roteiro, "Encarnação do Demônio", cuja produção tentou levantar mas nunca conseguiu, dado seu alto custo e risco de ser cortada ou mesmo apreendida pela Censura (o precedente foi aberto por "Ritual dos Sádicos", filmado em 1968 e até hoje interditado em Brasília).

Os anos passaram, os tempos mudaram. Mojica Marins realizou dezenas de filmes menores entre 1967 e 1979, foi pichado pela crítica e cansou de repetir chavões ("A Censura me persegue, os distribuidores me roubam" etc). Agora ele quer sair definitivamente dessa situação, pois entrou em acordo com o produtor Augusto Cervantes, que faturou horrores com "Mulher, Mulher" (recordista de bilheteria do ano passado, conseguindo bater até mesmo "007 Contra o Foguete da Morte"). E é Cervantes que lhe impôs as condições para produzir "Encarnação do Demônio":

"Exigi que Mojica não use mais o material antigo que tem em estoque, tais como cortes da Censura e coisas que guardou nos últimos 13 anos. Vou investir 20 milhões de cruzeiros nesse filme, uma das maiores somas já aplicadas numa produção independente no Brasil. Estou exigindo, inclusive, que Mojica faça um regime para perder a barriga, pois quero que ele esteja em boa forma física, como há tantos anos atrás, para voltar a interpretar o personagem Zé do Caixão, que sempre achei o mais original do cinema brasileiro, embora não goste de muita coisa que ele foi obrigado a fazer para manter a sobrevivência. Isso sempre acontece no cinema independente e eu mesmo produzi muitas pornochanchadas, esperando ganhar o suficiente para arriscar em produções mais ambiciosas. Acho que chegou esse momento tão esperado".

"Para os brasileiros – prossegue Cervantes – filmes como "Guerra nas Estrelas" e "2001: Uma odisséia no Espaço" parecem realizações acima da compreensão Humana e que não têm condições de serem feitas no Brasil. Mas em "Encarnação do Demônio" o próprio roteiro exige algo de novo em nosso cinema e pretendo buscar isso. Contamos com um excelente roteiro, inclusive muito cobiçado por outros grupos produtores. Agora vamos deixar a modéstia de lado e partir para o mundo, utilizando nossos recursos."

Também conhecido como "Cervantes da Boca do Lixo", Augusto é espanhol, radicado no Brasil desde criança, e só agora fez uma viagem de volta à Europa, de onde espera trazer, além de contatos e inscrições em festivais, novos métodos de filmagem, especiais para os efeitos mirabolantes a serem alcançados pelo que mostra o roteiro. Em São Paulo, Mojica já conta com uma grande equipe, encarregada de fazer o levantamento prévio da produção. A ação do filme é ambientada no inconsciente humano e estão previstas reconstituições em tamanho gigante do interior dos órgãos sexuais, pois Mojica acha que "o horror não é só o que esta nas aparências, mas principalmente dentro do corpo humano".

"Os cenários do filme – comenta Mojica – não são normais. Eu, por exemplo, nunca vi nada parecido. Teremos de nos valer dos melhores profissionais do Brasil e mesmo alguns do exterior, mais acostumados com esse tipo de trabalho. Já estamos em contato com muitos especialistas como, por exemplo, Jaime Cortez, que na minha opinião é um dos maiores desenhistas do Brasil, ainda por cima especializado em horror e ficção, com quem já realizei alguns trabalhos de grande valia."

As filmagens de "Encarnação do Demônio" deverão ser Iniciadas em abril próximo. Fotografia e iluminação estão a cargo de Carlos Oscar Reichenbach Filho, atualmente considerado o melhor de São Paulo e um dos mais criativos do Brasil. J.F.

(Folha de S. Paulo, 23 de janeiro de 1980)

20.4.07

Homenagem a Billy Wilder em comédia de Reichenbach

JAIRO FERREIRA

A crítica, com raras e confusas exceções, malhou "A Ilha dos Prazeres Proibidos", de Carlos Reichenbach, lançado no início do ano, mas isso não influiu absolutamente nada na carreira comercial do filme, que já rendeu quase seis milhões de cruzeiros em menos de dois meses de exibição, isto é, já pagou quase cinco vezes o que custou. Ficará circulando pelo Brasil mais 4 e oito meses, tempo que dura o certificado de Censura, enriquecendo o produtor Antonio Polo Galante que, agora, quer contratar o ex-cineasta "maldito" de "Lilian M - Confissões Amorosas" (1974) para novas investidas no gênero. Como se explica o fenômeno?

O público consumidor está condicionado a um determinado repertório em circulação, que inclui mil variações em tomo de violência e mulheres de pouca roupa. Reichenbach introduziu, sutilmente, dados poéticos, políticos e policiais nesse repertório e o resultado poucos entenderam (o bode expiatório é o mau som das salas de cinema) e muitos consumiram (também sem entender?). Cinema de sugestão e digestão. "A Ilha dos Prazeres" (agora em cartaz nos bairros e no interior) é ao mesmo tempo um manifesto libertário e uma crônica do exílio, voluntário ou não, ambientado nas fronteiras brasileiras (incluindo a invenção de uma geografia inquietante) do cinema comercial e pessoal.

Carlos Reichenbach vinha tentando, há muito tempo, derrubar o preconceito de que filme comercial não pode ser pessoal e vice-versa. Conseguiu isso com "A Ilha", lançado por enquanto em São Paulo e ao mesmo tempo com o anterior, "Sede de Amar" ("Capuzes Negros"), já exibido no Rio, onde também semeou confusão entre os críticos, enquanto o grande público consumia Sandra Brea em filas quilométricas.



O cineasta afirma que "Sede de Amar" (a partir de segunda-feira num circuito encabeçado pelo cine Metro) não tem nada a ver com "A Ilha", mas os espectadores interessados em descobrir o que está por trás das aparências logo perceberão que um é o duplo do outro, o reverso da medalha. 0 ponto comum entre ambos é o estilo direcional, o talento, a forma, a narrativa. Esses elementos definem e decidem se o filme é pessoal ou não. O depoimento do cineasta sobre "Sede de Amar", por sua vez é uma continuação ou um prolongamento de seu manifesto "Anarquia Poética contra o Cinemão" ("Folha", 12.1.79).

– Topei fazer "Sede de Amar ("Capuzes Negros") porque gostei da narrativa do roteiro de Mauro Chaves. Me propiciava usar da linearidade pretendida pelo autor a dar vazão aos meus anseios meta cinematográficos. Como nos meus filmes anteriores, gosto de burilar o repertório do cinema digestivo para tentar o espetáculo que se aulo-analisa. Sempre fiz filmes sobre cinema (com exceção de "Audácia") sem falar de cinema. Por isso os gêneros são diversos e até opostos: "Alice" (episódio de "As Libertinas"/1968), o obsceno revisitado com os excessos de Mojica Marins, as panorâmicas de Primo Carbonari e o "voyerismo" de um Max Pecas; "Corrida em Busca do Amor" (1971), a ótica de Bakunin e Netchaiev revisitando Sandra Dee, Bobby Darin, Frankie Avalon e Annette Funicello, a Turma da Praia, da American International; "Lilian M", a subversão do espetáculo, o meta-cinema dentro do meta-filme.

– "A Ilha dos Prazeres Proibidos" foi realizado posteriormente a "Sede de Amar" e é a retomada dos meta-filmes. Clichês filmados à luz da ironia. Biscoitos finos para serem degustados após a projeção. Parti do péssimo para chegar ao ótimo. Um filme com muitas sugestões, muito humor, ironia e sensibilidade. Inteligente sem ser incômodo. Político sem ser didático. O poeta e montador Inácio Araújo disse bem: "Ser radical hoje é ser pejorativo".

– Em "Capuzes Negros" revi o Billy Wilder de "Se Meu Apartamento Falasse" e, pela primeira vez, fiz um filme sem escrever uma só linha. Mesmo as idéias com que procurei enriquecer o filme, fui solicitar ao autor da história original (os comerciais picaretas da construtora, algumas "gags" da festa). Apesar de não ter havido interferência no meu trabalho de realizador, o filme é muito mais Mauro Chaves do que eu. Contudo, tem a leveza cínica que pretendi, quando aceitei a incumbência de filmá-lo. Fui procurar a comicidade sóbria no humor sisudo do paulista classe-média. E a graça maior fica por conta do paletó e gravata, dos sonhos de ascensão social, das fantasias eróticas de um subalterno.

– A cidade de São Paulo é vista só no fim do filme. E foi aí que fiz questão de incluir um caminhão de bóias-frias atravessando o enquadramento. Um colírio de realidade num show de personagens "elegantes" e de sutilezas variadas.

– Fiz questão de não fazer concessões nas cenas de amor, mesmo não tendo condições materiais de filmá-las como queria. Detesto os lençóis repressores, os enquadramentos digestivos e o recato moralista que ataca a maior parte de nossos melhores cineastas nativos. Se o roteiro pedia para mostrar os seios da atriz, exacerbei filmando a um palmo de distância com a macro objetiva. O curioso é que o resultado ficou a um quilômetro da pornografia ou do erotismo. A nudez estava de tal forma incorporada na trama que não havia motivos nenhum para mascará-la. Ao contrário, me senti estimulado a filmá-la da maneira mais íntima.



– Creio ter conseguido quase 80% do que Mauro Chaves esperava de seu roteiro. Isso porque não foi fácil fugir às tentações do cinema de autor. E mesmo a pequena parcela de subsídios que forneci ao filme está de acordo com o que há de melhor na obra do premiado teatrólogo: a utilização da ironia na reflexão sobre os anseios da burguesia paulista, o cinismo como veículo para satirizar o provincianismo de nossos industriais da miséria. Em suma: Oswald de Andrade revisitado por Abílio Pereira de Almeida.

Carlos Reichenbach é um cineasta que se preocupa mais com a criatividade do que com o mercado e, em termos do momento, mais com a questão da sucessão presidencial na Embrafilme do que com o sucesso propriamente dito:

– Assinei o manifesto da APACl (Associação Paulista de Cineastas) porque não entendo como a secção de São Paulo da Embrafilme não possa ter autonomia de decisões.

No entanto, gostaria de ver Gustavo Dahl à testa do órgão, porque além de inteligente e atualizado demonstrou, na sua experiência em distribuição, ser um administrador dinâmico e imparcial. Gustavo é antes de mais nada um homem de cinema independente, capaz de criar uma nova dinâmica, um novo clima ao nível da criatividade, o que vem fazendo falta há muito tempo no cinema brasileiro. Por isso reafirmo: o único óbice ao manifesto da APACl é não querer indicar nomes, limitando-se em propor um programa óbvio e que já deveria estar em prática desde a própria criação da Embrafilme.

(Folha de S. Paulo, 3 de março de 1979)

17.4.07

O cinema delirante de Walter Lima


Cineasta de poucos e bons filmes ("Menino de Engenho", "Brasil Ano 2000"), integrante do Cinema Novo em sua melhor fase (1965 a 1968, não por coincidência as datas em que realizou esses dois filmes), Walter Lima Jr. lança hoje seu último e decisivo filme, "A Lira do Delírio" (cines Ipiranga 2, Metrópole,Center, Belas Artes/ Sala Vila Lobos. Metro 1, Gemini 2, Festival, Piratininga). derradeira aparição de Anecy Rocha nas telas. O cineasta apresenta seu filme:

– A idéia era fazer um filme musical a partir de canções de carnaval, acho que era assim, uma idéia litero-musical. E teria sido desta forma se o carnaval daquele ano não nos envolvesse tanto. E assim nos perdemos na festa e quando a gente se perde no carnaval vale dizer que o descobrimos. As máscaras caem, as fantasias se rasgam, a realidade e o sonho se misturam. A liberdade se inaugura. No carnaval, o consciente é inconsciente. É a subversão psíquica onde a catarse vence. Mas havia o projeto do filme – o sonho dentro do sonho real – e era preciso levar avante. Poucos dias depois das filmagens em Niterói a idéia já era bem outra: o carnaval me surpreendera de tal forma que o que consegui filmar em cinco horas de copião tinha 60% de cenas de violência e isto não era o que eu acreditava como base para um musical. Mas afinal eu conseguira registrar a minha visão do carnaval e era duro reconhecer isso. Por isso gastei muito tempo para aceitar a idéia de um outro filme. Mas que filme?


– Há uma frase de Jean Cocteau que diz: "O cinema é a única arte que capta a morte (e a vida) em seu trabalho diário" e esta frase me criava a idéia de fazer um filme que levasse anos para ser feito, acompanhando aquelas pessoas e deixando que o tempo corresse sobre elas. Eu fora a Niterói com a ideologia de um Meliés, ou seja, querendo forçar a minha posição de câmera, o meu ponto de vista e o resultado se aproximava da posição de um Lumière, onde o registro documental prevalece sobre o onírico: houve uma greve na saída da fábrica e surgiu o herói. Deu-se o imprevisto e graças a ele o filme começou a viver. Um filme, como qualquer obra de arte, exige o risco absoluto. É preciso navegar para conhecer. De resto foi o que fiz nos anos que se seguiram. Enquanto navegava, aprendia a comandar o barco e a determinar o rumo. Os bons e os maus ventos me trouxeram ao porto do delírio, onde bebi o fel e o mel alternados ou misturados e senti o travo da ressaca.

– Creio que cada filme tem a sua forma correta de realização. Nem mais, nem menos. Isto cria uma enorme responsabilidade e, até que pudesse ter certeza do resultado final, resolvi aprender a fazer o meu filme. Comecei a tarefa fazendo documentários para o cinema, depois para a televisão e até chegar ao primeiro plano da fase final da "Lira" havia rodado 50 documentários e três anos e meio haviam decorrido. Afinal: Lumière e Meliés se combinariam. Lumière era o som direto, arma poderosa do meu aprendizado, e Meliés, o cinema de invenção, poético e criativo. E assim foi. Os atores que haviam participado dessa longa procura se arriscavam com suas vidas e sentimentos. A equipe era uma afinadíssima orquestra onde o mestre Dib Luft era novamente um iniciante entusiasmado, Carlos Del Pino um assistente como nunca tive, Rui Medeiros, um chefe-eletricista para o qual não existiam problemas e Paquetá, um chefe-maquinista como deve ser. As filmagens da "Lira" nunca viram outro clima que não o de intenso entusiasmo. Fazíamos um filme, inventávamos o cinema. O resultado de tudo isso é que, apesar de trabalhar apenas sobre uma rígida estrutura de módulos, sem roteiro definitivo, pude optar na moviola por cinco versões diferentes do mesmo filme. Ele abriga o espaço poético atingido pelas cordas da lira. O cinema reale o cinema aparente, a encruzilhada do cinema de autor: e agora a vida!


– Viva a vida que nos permite ver e fazer cinema. Na "Lira", os gestos são acaso e necessidade. Não representam a compreensão literária do filme. Eles são o gesto simplesmente,uma outra linguagem.um outro código, nunca uma intenção premeditada. O duque de Guise há muito está morto, abaixo portanto a literatice que sufoca o cinema, justifica o autor e robotiza o ator. Good-bye famous artists in famous plays, a Paramount já é uma companhia de petróleo.

A crise do cinema de autor é o confronto com a vida. E a vida compreendeu nessa vontade e nossa esperança e se deixou filmar. A verdade apareceu, então, ao lado da mentira, como devia. O real e o aparente mirando-se no espelho. "A Lira do Delírio" busca a aventura da reinvenção do cinema conscientemente. Junto com o público, módulo fundamental de seu bordado. Não é o fim de uma procura, também nisto ele é eloqüente e imodesto.



Essas palavras, como se nota, não fariam parte do repertório do Cinema Novo mais dogmático, conservador e reacionário que insistiu em continuar existindo até 1976, ano que Glauber Rocha, seu profeta, retornou ao Brasil e reconheceu: "Durante anos, diziam que o Cinema Novo tinha morrido, agora eu é que digo: o Cinema Novo morreu". Isso causou espécie entre os integrantes do movimento, Walter Lima Jr. entre eles. Hoje, Lima Jr. Afirma: "Glauber está glauberiano, mas Godard não esta godardiano". Realmente. O papa está papal. Não quis reconhecer a experiência de seus colegas que ficaram no Brasil, como Paulo César Saraceni, que rodou em 1973 o alucinado "Carnaval, Amor e Sonhos", depoimento pessoal dos mais válidos, exorcização diretamente ligada a este "A Lira do Delírio".

Em sua modéstia e sinceridade, Walter Lima Jr. não poupa ninguém: "Acho doloroso ter que cutucar essas pessoas que eu adoro, mas um filme como "Tudo Bem", do Jabor, por exemplo, me parece profundamente velho e velho fora de hora, porque tem uma postura cepecista. Achei também um desastre o "Anchieta" do Saraceni. São pessoas que ficaram encasteladas, falando consigo mesmas, quando o importante nesta fase de abertura é que exista uma abertura das pessoas, uma abertura nossa e não essa que nos é imposta".

Em consonância com isso está Rogério Sganzerla quando afirma que "tudo é uma coisa só e isso é tudo''. Ou seja, não há diferença entre o Cinema Novo que revolucionou o cinema brasileiro de 1962 a 1967 e o experimental que radicalizou essa experiência entre 1967 e 1971. As broncas pessoais emperraram o processo, mas agora ai está um Walter Lima Jr. assumindo que o experimental sempre existiu: "A fase mais rica do cinema brasileiro não é a do Cinema Novo, mas justamente essa que veio em seguida e perdura até hoje. Essa é a fase mais interessante porque está baseada na invenção, na poesia, na metáfora, no trabalho de criação avançada, peculiaridade do cinema nacional que, justamente por não ter uma infra-estrutura, possibilita esse descompromisso com e em relação à indústria. Em lugar de falar em experimental eu prefiro falar em invenção e em aventura. São poucos os cineastas que assumem o risco, aventura e é isso o que me interessa: ousei uma nova forma, uma concepção nova para abranger essa complexidade que é o Brasil dos últimos anos; E, assim, "A Lira do Delírio" se coloca como um filme em aberto".

Procurando escapar aos rótulos, Lima Jr. não gosta de falar em Cinema Novo e também não faz nenhum elogio da loucura que é o cinema brasileiro dos últimos 12 anos. "Acho um verdadeiro suicídio fazer um filme que não chegue ao público. Já fui crítico de cinema e conheço bem os movimentos fundamentais do cinema, a "Avant-Garde", o expressionismo, o cinema russo, o neo-realismo, a "Nouvelle Vague", o "Underground americano". O que eu faço em "A Lira do Delírio" é uma reciclagem de tudo isso e por isso gosto de falar em Meliès e Lumière, como Júlio Bressane fala em Griffith e Rogério Sganzerla fala em Orson Welles. Assimilei isso tudo no meu filme, transformando esses signos de tal forma que o grande público possa entender, porque o momento não é propicio a radicalizações. O momento está exigindo uma abertura que venha das pessoas. Por isso eu estou me abrindo, única forma de recuperar o que perdemos, a liberdade e a capacidade de diálogo".

Mentalidade ventilada, Lima Jr. pode ter feito um filme que dá alegria ao espectador, mas os bastidores do cinema brasileiro ainda vivem um processo doloroso. Basta lembrar que Anecy Rocha, atriz principal de "A Lira do Delírio", já não existe. Essa irmã de Glauber Rocha, no momento em que se afirmava como uma das melhores atrizes do cinema brasileiro ("Tenda dos Milagres", "A Guerra Conjugal", "Os Vampiros" e este "A Lira do Delírio") morreu tragicamente em 1977, caindo no poço do elevador do prédio em que residia. Ela era casada justamente com Walter Lima Jr., esse cineasta talentoso e sofrido, que inclusive prefere nem comentar o episódio.

(Folha de S. Paulo, 18 de junho de 1979)

14.4.07

Entrevista com Jairo Ferreira

A entrevista abaixo foi realizada por Paulo Sacramento e Arthur Autran, no tempo em que os dois estudavam cinema na ECA-USP. Foi publicada no número 1 (setembro de 1991; houve outros?) da revista Paupéria, editada pelos dois acima e por Vitor Ângelo. (JT)


Jairo Ferreira é cineasta e crítico, escreveu o livro Cinema de Invenção, fez crítica nos jornais São Paulo Shimbun e Folha de São Paulo e dirigiu os longas O Vampiro da Cinemateca e O Insigne Ficante, além de vários curtas.

P: Você está relançando o seu livro cinema de Invenção. Quais as alterações da nova edição?

JF: A nova edição será revista e ampliada. Vai ter 5 novos capítulos, uns 3 ou 4 de complementação teórica, mas isto não chega ainda ao que era o projeto original. Este era um livro de 400 ou 500 páginas, é por isso que eu demorei tanto para preparar o livro. Comecei em 77 e ele só foi publicado em 86. Como eu não encontrava editora para publicar um livro tão volumoso eu tive que fazer uma versão de 300 páginas.

O livro pretendia acompanhar cronologicamente a evolução do experimental no cinema brasileiro. Alguns cineastas continuam até hoje fazendo filmes, mas isso não faz parte do cinema experimental como movimento. Não tem nenhum cineasta que fez parte do cinema marginal que está fazendo cinemão atualmente. Aliás, tem, viu. Eu estou pensando no Neville d'Almeida. Ele começou fazendo cinema experimental e a partir do A Dama do Lotação aderiu ao cinemão. Ele não fez parte da primeira versão do livro porque eu achei que ele não tinha importância para entrar como um capítulo. Ele ficou furioso, na época eu estava na Embrafilme e ele me telefonou dando um esporro, dizendo não admitir um livro falando de cinema de invenção e não citando os seus filmes.

Além do Neville ficaram de fora outros cineastas como Geraldo Veloso, Elyseu Visconti e o Caetano Veloso. Pois Cinema Falado é um filme isolado, não faz parte do marginal como movimento. Ao mesmo tempo, ao fazer um levantamento do cinema marginal eu acabei fazendo um levantamento do cinema brasileiro. Marginal é o nome dado pelo pessoal da Boca do Lixo, mas experimental é um nome que resiste mais ao tempo. Limite é um filme experimental, no entanto não é da Boca do Lixo. O cinema experimental começou antes com Tesouro Perdido do Humberto Mauro, se é que não começou antes com os filmes do início do século que já se perderam. Aí eu fui fazendo um levantamento de todos os ciclos do cinema brasileiro até chegar ao ciclo experimental que é a síntese. Para entender bem isso há uma colocação minha: o cinema novo no começo dos anos 60 surgiu como o primeiro movimento que deu respeitabilidade ao cinema brasileiro. Nosso cinema não era respeitado nem aqui nem lá fora, era um folclore dizer que tinha um filme chamado O Cangaceiro que passou no mundo todo. Com o cinema novo o cinema brasileiro começou a tomar consciência da sua própria evolução. O cinema marginal é filho do cinema novo, ou melhor, irmão. Só que houve uma briga, uma ruptura, porque o cinema novo estacionou numa coisa política enquanto o cinema marginal continuou revolucionando não só na forma como nas idéias. O cinema novo tinha deixado de ser revolucionário para ser reacionário. Tem várias distinções a fazer entre o cinema novo e o cinema marginal. Eu estava pensando agora numa coisa nova,nunca dita por mim de forma explícita como eu vou dizer agora: o cinema novo era um negócio político, sociológico, de uma ideologia marxista, enquanto o cinema experimental não tem uma ideologia definida, não é marxista, pelo contrário, se liga em coisas de exoterismo, ocultismo e tal. Pode pegar um por um, a começar pelo Mojica, um dos grandes inspiradores, são todos místicos. O Elyseu Visconti é pai-de-santo. Já no cinema novo não tem nenhum místico.

P:Como foi a repercussão do seu livro?

JF: Foi a melhor que um livro sobre cinema brasileiro já teve no Brasil. Foi elogiado em todos os estados, eu tenho um book desta altura só de elogios, só houve uma resenha contra, do Fernão Ramos. Muitos acharam que foi o livro mais importante do cinema brasileiro. Eu não posso dizer se é ou não, ainda não consegui fazer uma auto-crítica a esse nível. A repercussão foi imensa. O editor calculou mal, fez só dois mil exemplares e o livro esgotou em três meses. O editor faliu e eu estou tentando relançar o livro por outra editora.

P: Os textos inéditos são da época ou foram escritos especialmente para a nova edição?

JF: Na versão original de 500 páginas tinha capítulos com Gustavo Dahl e Paulo César Sarraceni. Sarraceni é cinema novo, mas ele entrou por causa de um filme chamado Amor, Carnaval e Sonhos. Este aí não tem nada de cinema novo. O Gustavo entrou porque O Bravo Guerreiro é tanto cinema novo quanto experimental, tem uma coisa de curtir o desespero que não é bem cinema novo. Agora eu reescrevi e publiquei no Cine-Imaginário todos os capítulos que vão entrar na segunda versão. Os capítulos que vão entrar são Neville, Geraldo Veloso, Caetano Veloso, Arthur Omar e Martico, que fez Adiós General com roteiro do Rosemberg, e o Sílvio Lana que fez o Sagrada Família.

P: Além da sua atividade crítica você realizou alguns filmes em super-8. Você conseguiu distribuir estes filmes?

JF: Em matéria de acumular funções acho que bati o recorde, porque eu comprei a máquina, o projetor, montei, fui ator, sonorizei, produzi, roteirizei, mixei, fiz a música no violão.Eu exibi e projetava na casa de amigos, já que era para brincar de cinema experimental quis mostrar ser possível exagerar nas funções.

Comercialmente não teve exibições, apenas caseiras e em cine-clubes, por exemplo em 77 eu inaugurei o cine-clube Riviera no restaurante Riviera. Passou o filme Hoje é dia de futebol do Zé Antônio Garcia que era o primeiro super-8 dele e era complemento do meu filme O Vampiro da Cinemateca.Só que inaugurou e fechou logo em seguida porque correu um boato de que tinha uma cena de pornografia no filme, de fato tinha uma cena rapidinha, mas era pornográfica mesmo. Aí o cine-clube inaugurou e fechou no mesmo dia.

P: E como você vê o fim do super-8?

JF: Eu acho que o super8 pode ser ressuscitado a qualquer instante, assim que tiver laboratório para revelar aqui. Ele comporta a utilização profissional.A película suporta até 100 anos, o vídeo por mais que se conserve, a imagem vai caindo.

P: Em um artigo seu na revista Artes você chama atenção para o fato deste cinema ter sido pouco visto.Existe a demonstração de um limite na proposta marginal?

JF: A coisa de ser pouco visto eu explico pelo lado do ocultismo: a coisa de iniciados é para iniciados, não adiante fazer a nível de consumo de massa. O tarô e o zen-budismo, por exemplo, viraram moda. O zen-budismo a nível de consumo de massa é absurdo, perde totalmente o sentido. Se colocar um filme marginal para ser exibido junto ao grande público este não vai aceitar, pois não é o público alvo. Este filme não foi feito para um público de maioria, foi feito para uma minoria que sempre vai ser minoria. Sempre não,com o tempo esta minoria vai aumentando, mas é coisa de séculos.




P: Mas filmes como O Bandido da Luz Vermelha foram sucesso de público. Como pode?

JF: Foi exceção. Isto é coisa que só acontece no Brasil, um país subdesenvolvido. Nos EUA o underground é exibido em escolas e coisa e tal, nunca chega a um cinema normal. Aqui no Brasil A Margem foi exibido no cine Paissandu como se fosse um filme normal. O Bandido deu certo, ficou duas semanas no Marabá e no Olido. Como é que um filme experimental como o Bandido deu certo numa sala comercial? O Bandido estava 50 anos à frente de sua época. De hoje então deve estar uns 80, pois o cinema brasileiro regrediu de lá para cá.

P: O Marabá já era na época o cinema de maior média de público?

JF: Já, sempre foi. Mas outros filmes experimentais foram exibidos em salas comerciais e ficaram apenas 2 ou 3 dias. Eu comecei no Shimbum em 65 e deixei em 72, então eu acompanhei o movimento todinho lá, você pode ver que várias vezes quando eu comento um lançamento do chamado cinema marginal na platéia só estavam eu, o Carlão e dois espectadores. O Longo Caminho da Morte, do Calasso, no cine Marachá, só teve 3 ou 4 espectadores na sessão das oito quando eu fui. O Gamal, do João Batista de Andrade, se bem que seja um equívoco, a proposta é marginal mas beirou a ideologia fascista, ficou 4 dias quando lançado no cine Paulistano. Até chegar uma hora na qual os exibidores se mancaram: "esses filmes marginais, da Boca do Lixo, não vamos lançar mais, pois afinal todos afundaram". Não lançaram e nem podiam lançar, pois estavam todos presos na censura. Entre 70 e 71 a censura proibiu um lote de 50 filmes.

P: E estes filmes faziam carreira no interior do país também?

JF: Foram lançados nas capitais, interior do país raramente, assim como no exterior raramente por iniciativa própria dos diretores. O Rogério levou para a Europa O Bandido da Luz Vermelha, exibiu na França para cineastas franceses, mas não aconteceu nada. O Bressane exibiu todos os filmes dele em Londres e dizem que escola onde foram exibidos fizeram sucesso, o que ele não prova porque nunca mostrou documentos disso, e fica difícil acreditar num cara que de dez coisas que ele fala nove são mentiras totais.

P: E indo por este lado da exibição comercial quando se deu o rompimento do cinema marginal com esta? Pois houve uma época em que estes filmes fizeram sucesso, é o caso de As Libertinas e O Pornógrafo. E como se deu este aborto do cinema cafajeste? Pois pelo que me consta os filmes do Callegaro foram sucesso de público e mesmo assim ele abandonou o cinema.

JF: Você quer que eu fale do Callegaro? Porque assim como ele, aliás é uma característica deste movimento, há muitos cineastas de um filme só. Visconti, Calasso, Trevisan e dezenas de outros...

P: Mas foram fracassos ao passo que o Callegaro não...

JF: É, ele não, seus filmes se pagaram rapidamente e foram muito bem de bilheteria. Mas acontece que o Callegaro estava em outra jogada, era o esquema de fazer jingles para filmes comerciais, ele se deu muito bem, ficou milionário. Então para ele não houve interesse em voltar a fazer aquele tipo de cinema que ele soube fazer tão bem. É uma desistência. E cada vez que ele fala em voltar a fazer um filme de longa-metragem tem que ser no esquema cinemão.

É o caso que houve com o Neville d'Almeida, que resolveu mudar a linha. Não dá para dizer que este Matou a Família e Foi ao Cinema, esta versão, tenha alguma coisa de experimental. Há uma diluição muito remota de experimental. Quando a mulher morre a câmera fica rodando, vai dizer ser isto experimental? Ele está usando um recurso do cinema experimental dentro do cinema comercial, o filme perde a função de experimental e passa a ser diluição que o povão pode entender facilmente. O fato da Maria Gladys interpretar 3 ou 4 papéis poderia ser experimental, mas no Neville vira cinemão. Globo Repórter, um filme sensacionalista a nível de Gil Gomes. Um caso de cineasta experimental abrir mão da proposta.

A grande maioria deles se parou de fazer foi por falta de condições, mas se fizerem continuarão sendo experimentais. O Carlão Reichenbach concilia o comercial com o experimental. Mas se você pegar Filme Demência, prevalece o experimental. Já no Anjos do Arrabalde prevalece a linguagem comercial, mas tem uma abordagem algo experimental, que não é descaradamente uma entrega, uma concessão ao público. É difícil conciliar coisas de agradar uma minoria que podem agradar uma maioria. O Carlão é o mestre neste lance. Teve o Ivan Cardoso, que conseguiu isto muito bem em O Segredo da Múmia. Não foi um sucesso retumbante, mas foi bem. A chanchada fazia isto também, o Carlos Manga. Nem Sansão nem Dalila é hoje considerado um clássico da chanchada e no entanto é um filme altamente experimental. Experimental fora do cinema marginal, que tem isso, você acha experimental na chanchada, no ciclo de Recife, no ciclo de Campinas, sempre houve, desde o começo do século, desde que se faz cinema no Brasil sempre existiu o experimental isoladamente. Como movimento foi neste período, 67-71. Depois voltou a aparecer de maneira isolada aqui e ali, mas não é mais um movimento. Talvez pudesse ser movimento através do curta metragem. Mas os cineastas de curta não estão preocupados em ter o que eu chamo de sintonia experimental no curta metragem. O curta está indo para o caminho do cinemão, filmes de ficção com atores, uma puta produção. No final aparece um crédito de três minutos, toca uma música inteirinha como se fosse um longa metragem. É um curta, tem dez minutos e aparecem 500 nomes na tela. Então não é curta, é imitação de longa, cinemão. Mas há curtas que isoladamente são a continuação do cinema experimental.

P: Você poderia especificar hoje em dia estes filmes?

JF: O Francisco César Filho, por exemplo, o primeiro filme dele com a Tata Amaral. Poema, Cidade. Aquele negócio de filmar painéis de letras. No Bandido o Rogério filma no Estadão, que hoje é Diário Popular. Quer dizer, quem começou com esta brincadeira toda foi o Orson Welles no Cidadão Kane. O Rogério apenas reciclou, chupou e reciclou. Porque não adianta chupar por chupar, tem gente que chupa e fica uma imitação sem qualquer originalidade. O Rogério pôs o carimbo, a impressão digital dele. O Chico César Filho faz isso no Poema, Cidade, diferente pois ele está falando do Augusto de Campos. Tem um cineasta nissei, Joel Yamagi, que fez um documentário altamente experimental sobre uma comunidade de negros chamado Cafundó. É um documentário mas não parece que é documentário porque ele encenou, ele conviveu com a comunidade transformando os caras que não eram atores em atores. Foi a técnica usada pelo Flaherty em Nanook, o Esquimó, que é um dos maiores documentários que já foi feito. Isso é altamente experimental, é o que eu chamo de cinema de invenção. O Joel foi o primeiro a fazer isso no Brasil. Aliás o Joel é um talento de quem ninguém fala. Ele fez um longa em nove planos-seqüência, Roma, Amor. O Rogério já tinha feito isso em Sem essa Aranha e o Glauber em Câncer. Se bem que o Glauber não fez planos de dez minutos, fez de cinco, seis minutos. De dez minutos total mesmo foi o Rogério e o Joel. No curta eu tinha feito o plano mais longo, que era de quatro minutos em O Guru e os Guris. Agora fiquei sabendo que a Flávia Moraes fez um curta com um plano de sete minutos. Quer dizer, isto eu acho que é o resgate do experimental no curta. Mas eu ainda não vi o filme, estou louco para ver.

O experimental parece que parou mas não para nunca. Quanto a esta palavra, experimental, não ia ser utilizada por mim nunca, teve uma época que eu abominava esta palavra. Experimental era sinônimo de amador, diletante, eram aqueles caras que não tinham talento nenhum. Geralmente tinham um bom emprego e falavam "Ah, vou comprar uma câmera para brincar" e aí botavam nos festivais e não se salvava quase nada, era um horror. Eu saía correndo, não queria nem passar perto. Aí o Rogério Sganzerla me chamou a atenção para que o Orson Welles usava o termo experimental, e usava numa boa. É que o termo foi sendo rebaixado, sabe quando um termo perde a força? Eu decidi não usar mais este termo. Tanto é que o título do meu livro era O Experimental no Cinema Brasileiro. Eu acabei abolindo este título porque por mais que o Orson Welles goste, o Sganzerla use, pra mim não tinha força. Aí eu botei o termo invenção. As novas gerações, o pessoal que está fazendo curta, tem uma certa prevenção com o termo experimental. Alguns fazem cinema experimental e não assumem.

P: E como você vê a produção atual de cineastas daquela época que continuam na ativa fazendo filmes, e a renovação de suas propostas?

JF: Olha, aí tem que pegar caso a caso. O Bressane continua fazendo cinema experimental. Agora o Ivan Cardoso, se você falar pra ele de cinema experimental ele já nem quer mais saber. Com este Escorpião Escarlate que ele acabou de lazer ele quer mais é atingir o grande público, usar atrizes que são chamariz de bilheteria, enfim, passou para o cinemão. Eu não vi ainda este filme, mas As Sete Vampiras é um filme que não tem nada de experimental. O Carlão continua sendo experimental, sempre vai ser, ele é um experimentador, um inventor mesmo. Quando ele está fazendo música ele está fazendo música de invenção, ele sempre curtiu a vanguarda. Então continua fiel à proposta, mas sabe que não pode mais fazer um filme como Audácia!, que por sinal é um filme que ele quase renega. Na hora que ele renegar eu vou assinar no filme Jairo Ferreira. Eu fui co-argumentista, co-dialoguista, assistente de direção, continuísta, fotógrafo de cena e ator. Um cara que faz seis funções num filme desse é co-autor. Por quê é que não assinou lá um filme de Carlos Reichembach e Jairo Ferreira? Com o tempo ele passou a não gostar do filme e eu cada vez que vejo acho que é muito bom. Porque é uma porralouquice, tenta ser uma paródia do Bandido da Luz Vermelha, evidentemente sem aquela consistência, mas é uma tentativa de paródia da paródia, porque o bandido já era uma paródia.

P: O que houve na época foi uma auto-exclusão dos marginais ou se impôs esta exclusão a eles? Hoje esta exclusão está superada?

JF: A tendência naquela época era muito política. Era a ditadura do cinema novo. A ditadura ideológica do cinema novo é uma coisa muito séria. Foi por isso que o Rogério Sganzerla quando fez A Mulher de Todos decidiu romper definitivamente com o cinema novo. Quando ele fez o Bandido ele queria fazer parte do cinema novo, mas o cinema novo não aceitou. Na sessão do Bandido no laboratório Líder, quem conta muito bem esta história e o Fernão Ramos no livro dele, o Rogério convidou todos os cineastas do cinema novo que ele pode. O Glauber saiu sem falar uma palavra e as outros silenciaram também por se sentiram ameaçados: "Pô, esse Rogério parece que é mais talentoso do que todos nós aqui juntos". Então se criou uma briga, uma coisa idiota pra burro, coisa de ciúmes. Isso também pelo fato de que o Rogério era muito pretensioso, já queria logo de cara achar que era melhor que o Glauber.

Quem tinha rompido antes só que não falou isso publicamente foi o Candeias. Ele fez A Margem para contrariar o cinema novo, que ele detestava. Ele diz que o cinema novo é hollywoodiano, por que é todo feito em cima de roteiro. Os filmes do Glauber tem três, quatro roteiros até chegar à versão definitiva. O cinema marginal nunca fez roteiro. Roteiro só para pegar financiamento, depois não usa. Sai filmando conforme dá na telha, tem o filme na cabeça.

P: Mas a questão é se esse cinema foi marginalizado ou se marginalizou.

JF: As duas coisas. Ele foi marginalizado pelos distribuidores em função da pressão dos exibidores, que recusavam o cinema marginal. Alguns cineastas também falavam: "Eu não vou nem tentar mandar pra censura, eles vão prender mesmo. Vou perder a cópia que me custou tanto." Então tem vários filmes que nem constavam do Guia de Filmes. O Guia de Filmes foi aquela publicação da Embrafilmes que dava a listagem total da produção. Nesses anos de 67 a 71 tem 50 filmes que não constam do Guia de Filmes, que os diretores não mandaram para o Concine. Eles ficaram de fora da história, da história oficial. Mas aí essas cópias também não podiam ser exibidas, a não ser em sessões de cinemateca, c perderam totalmente o interesse comercial depois de alguns anos. Em 86 a censura liberou geral, aí está anistiado tudo. Mas como é que vai exibir um filme de 1970 em preto e branco, chamado Orgia, ou o Homem que deu Cria Não tem cinema que se interesse por um filme desse. Na época já era arriscado tentar lançar no cinema, depois tem um valor meramente arqueológico.
Houve um resgate primeiro pelo meu livro, que foi a síntese completa, e logo depois pelo livro do Fernão Ramos, e tem outros livros também. Tem um livro que não foi publicado de um pesquisador da Bahia. Ele fez entrevistas com dez cineastas do cinema experimental. Tentou editor e o editor achou difícil. É o mesmo editor do meu livro, ele falou "eu acho bom mas não dá para publicar porque não tá com condições". Eu abri o caminho, mas fechou no ato. O livro do Fernão Ramos está nas livraria até hoje, não esgotou a primeira edição. Quer dizer que não teve muita aceitação. O meu esgotou em três meses, está claro que houve uma aceitação total. Tem vários livros que são importantes e nuca foram reeditados, inclusive o Revisão Crítica do Cinema Brasileiro do Glauber.

P: Você colocou como uma das características do cinema marginal a figura do cineasta de um só filme. Qual a trajetória dos cineastas que se enquadram nesta definição?

JF: Por exemplo o Ebert tem feito recentemente filmes para a TV. Ele tem uma produtora de vídeo, nunca saiu da área, continua fazendo fotografia. O filme dele é o caso de filme preso por mais tempo na censura. 17 anos, de 69 a 86. A cópia desse filme sumiu na censura. A cópia que foi exibida na Mostra Cinema de Invenção foi feita recentemente, se pretendia lançar nos cinemas. Aliás o Candeias também trabalhou na TV Cultura, durante uns três ou quatro anos. Ele tem uma produção em vídeo que nunca foi pro ar por ser muito radical. Eu nem sei como ele ficou por lá tanto tempo se nenhum filme ia pro ar. Esses vídeos estão no acervo da TV Cultura. Eu não conheço nenhum, e tem dezenas. E ninguém viu. É trabalho de arqueologia mesmo. E é cineasta que está aí, está vivo, sabe onde deixou as cópias, pra quem quiser pesquisar. Imagine então se a pessoa morre. Tem um cineasta que está ameaçando toda hora que vai jogar os negativos de seus filmes no fundo de um rio, é o Luiz Rosemberg Filho. Tem filmes que ele fez que não tem mais cópia, e de um outro o negativo se perdeu. Quer dizer, eu não sei também se perdeu porque ele deixou que se perdesse porque era ruim mesmo. Também não vamos querer criar mito em cima de um negócio que era tão ruim que o próprio diretor destruiu. Não se sabe, nem vai se saber.

P: Os vídeos que o Rosemberg chegou a fazer ele ainda tem cópias?

JF: Deve ter. São altamente experimentais. O mais legítimo cinema experimental feito em vídeo.

P: O Antônio Lima, o que está fazendo?

JF: O António Lima voltou para Belo Horizonte. Tem a família lá e voltou a ser jornalista. Não quer mais saber de cinema, nem de ir ao cinema. Bom, ele nunca foi experimental, só fez o episódio de As Libertinas e do Audácia!, mas teria feito cinema comercial.

P: E o Otoniel Santos Pereira?

JF: Recentemente o Carlão me deu notícias dele, está no ramo de publicidade. Esse aí ganhava todos os prêmios de super-8, além de ter feito o curta O Pedestre, em 66. É interessante notar que o cinema experimental antes de acontecer como movimento aconteceu através de curtas. Por isso é que eu digo que esta movimentação atual de curtas pode dar daqui cinco, dez anos (se tanto) numa nova fase do cinema experimental.

P: E como você vê o núcleo de cinema do Sul?

JF: O Ilha das Flores é surpreendente. Eu acho cinema experimental de primeiríssimo time. É um fenômeno. Prova que do curta metragem é que estão saindo as revelações. No Sul tem gente muito talentosa. Meia dúzia pelo menos de primeiro time. Alguns deles já passaram inclusive pelo longa, e fizeram bons filmes.

P: Como você vê o boom do curta?

JF: Esse boom foi de tendência nitidamente cine-mão. Dos quatro premiados de Gramado 86, tem o Ma che, Bambina! que é o mais experimental. O resto é bem cinemão. Então se fala o boom do curta. Tem o boom do curta de tendência cinemão e o boom do curta de tendência experimental. No experimental a tendência é muito menor. O formato curta é o mais propício para experimentação, mas a maioria que começa quer fazer cinemão. É a tendência errada, é um equívoco. Porque a lei do curta não tem mais, não tem lei de nada. Então vai exibir um filme de curta metragem pra que público? Se fosse experimental ele teria um valor histórico. Sendo de cinemão vai ter valor histórico pra pesquisadores futuros, pra ver pra que fizeram tantos filmes cinemão se não iam exibir mesmo. Pra frente algum pesquisador vai abordar a questão e ver qual foi a utilidade desses filmes, que eram centenas ao ano. Agora caiu à metade. Mas mesmo assim foram cerca de quarenta curtas no ano passado. Sem contar a produção em vídeo, aí vai mais 3(M) cineastas. De tanta quantidade, pelo menos cinco por cento de qualidade, de qualidade eu quero dizer experimental.

P: Na década de 70 havia exibição de curtas além de cine-jornais?

JF: Nos anos 70 as curtas que eram exibidos era através do prêmio de qualidade. Teve uma época que era uma massa imensa de curtas. O primeiro boom do curta foi no INCE. O INCE foi fundado depois do Estado Novo, parece que em 37. Instituto Nacional do Cinema Educativo. Se fazia tantos curtas nessa época que o Humberto Mauro foi contratado como funcionário curtametrageiro oficial. Era empregado e fez curtas durante 30 anos. Era mais ou menos como o National Film Board of Canada. O INCE durou até o comecinho da década de 60. Aí começou o INC, que inicialmente deu importância só aos longas. Começou a pintar um ou outro curta, foi crescendo o volume e o instituto resolveu dar um prêmio de qualidade para esses curtas. Ma quem ganhava era só a panelinha de cineastas do cinema novo. Por exemplo o David Neves tava sempre ganhando prêmio de qualidade. Era uma jogada política dos diretores do INC. O INC acabou em 69 e começou a Embrafílme. Aí a lei do curta você já sabe a história.

P: Além do prêmio de qualidade qual a importância do adicional de bilheteria?

JF: O adicional de bilheteria da prefeitura era excelente e existia desde o fim dos anos 50. Foi abolido entre 70, 71, por aí. A desvantagem é que o prêmio era proporcional à renda do filme, então Mazzaropi, que era a maior renda da época ganhava o maior adicional de todos. Querem que isso volte, o Carlão Reichenbach por exemplo. Mas aí tem que ser um adicional reformulado, tem que ser um adicional maior para um filme de menos sucesso e um menor para um filme de mais sucesso. Tem que haver um equilíbrio nessa história para evitar que quem não precisa do adicional leve a maior parte da bolada.

Entrevista feita por Paulo Sacramento e Arthur Autran

7.4.07

Eles estão à solta


Houve um tempo em que eu detestava o termo "udigrudi", lançado por Glauber Rocha para definir o que seria uma sintonia pós-Cinema Novo. Hoje eu adoro ser chamado de "udigrudi", mas me chamam de Mister Cinema de Invenção! Ironia da sintonia? Sejamos claros: cinema no Brasil só existe graças ao Cinema Novo. Acaba de ser lançado um verdadeiro tratado postal do Glauber – Cartas ao Mundo - (Companhia das Letras). Folheei e não achei lá a única carta do Glauber que esclarece a transição entre Cinema Novo e Udigrudi. Eu já até fui megalômano como Glauber, mas aprendi a ser egoísta com Raul Seixas e por isso sou obrigado a citar trechos para as novas gerações:

"Prezado Jairo Ferreira: você pode ter uma fórmula para definir Cinema Novo ou Udigrudi, estas cinefilias não me preocupam (...) Você que é ótimo deveria escrever sobre isto, uma análise dialética da matéria cinematográfica cinemanovista e udigrudista ... De qualquer forma todos os dois nos nascem de Glauber Rocha, antes ou depois do Kãncer. Entre Cinema Novo e Udigrudi, entre eu. Rogério e Julinho ainda existe Helena Ignez." Rogério é Rogério Sganzerla, Julinho é Júlio Bressane.

Rogério Sganzerla é paleolítico & atonal. Perpetrou um dos três melhores filmes brasileiros de sempre: O Bandido da Luz Vermelha; Júlio Bressane é ágrafo, iléxico & afásico: Matou a Família e Foi ao Cinema é talvez seu filme mais emblemático. Três décadas após as primeiras experimentações, a dupla da Belair [produtora fundada por Sganzerla e Bressane em 1970, voltada para a produção de filmes de baixo custo] ainda gera expectativas. Equivale à dupla Candeias/Zé do Caixão, mas não vou delirar aqui. Por que eles são importantes?

Há duas décadas eu tinha uma leitura da obra de ambos; hoje tenho outra. Cheguei à conclusão que ambos são místicos. São transcendentais, metafísicos. Querem uma prova concreta do lance holístico? Helena Ignez virou Hare Krishna, ela que foi a mulher de todos... Era a baiana loira mais sensual do mundo e não existe nenhum filme que supere A Mulher de Todos (1969), para alguns o filme é ainda melhor do que Luz Vermelha.

Sou muito suspeito para escrever sobre a obra da dupla do sublime vôo dos anjos, como acertou Jean-Claude Bernardet. Convivi principalmente com Sganzerla desde 1964. Como então ter um distanciamento crítico?

É simples: há tempos não nos vemos. Pound já dizia que o mau crítico se identifica facilmente quando desanda a falar mais do autor que da obra. Aprendi via Irmãos Campos, mas o que interessa aqui é constatar que gradativamente vou esquecendo a pessoa física e lembrando mais da figura astral da dupla do barulho. Dá pra esquecer as imagens de filmes como Sem Essa, Aranha (1970), de Sganzerla, todo em plano-seqüência?! Dá pra esquecer Memórias de Um Estrangulador de Loiras (1971), do Bressane? Os homens passam, a obra fica.

O espaço intergaláctico é pequeno pra ir fundo, mas é bom lembrar que alguns filmes da dobradinha ainda estavam inéditos até pouco tempo atrás. Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970) estreou na TV Cultura há pouco mais de um ano, mas foi visto como "reprise": de qualquer forma me pareceu uma "bad trip" – João Silvéno Trevisan disse que não agüentou o Gilberto Gil homenageando Sganzerla... Mas deixa pra lá: Barão Olavo, o Horrível (Julio Bressane, 1970), eu ainda não vi, é um cinemascope também.

Saiamos já do baixo para o alto na tradição do hermetismo e confessemos que é grande a curiosidade em torno de Tudo é Brasil, de Sganzerla, e Miramar, de Bressane. Sganzerla certa vez parodiou o próprio Hermes Trismegisto: "O lance é levantar o baixo e baixar o alto". Gênio total! Já as frases lapidares de Bressane são tantas que não consigo destacar as melhores. Imagine um cara que escreveu sobre mim: "Eu para falar do cinema do Jairo quero um ano e meio de prazo"... Brincadeira"! É por isso que eu disse ao Adhemar de Oliveira que talvez eu nem fizesse esta matéria, pois sou muito suspeito...

... Eu tenho uma semana de prazo pra entregar essa matéria e vou cometer algumas elipses. Vou naquela que sempre fui: um vampiro de cinematecas. E então esse vampiro de 600 anos vai lembrando que tudo começou na década de 60, quando Carlão Reichenbach conheceu Andréa Tonacci.

Tonacci e Sganzerla revolucionaram, respectivamente, com curtas experimentalíssimos – Olho por Olho e Documentário. Essa crônica eu já escrevi, mas vou escrever e novo, pois se todos querem posso contar de forma diferente...

Haja elipse, pois já estou no novo filme de Andrea Tonacci, a maravilha sem título sobre a Biblioteca Nacional. Ele me dizia que eu ia ver um "institucionalzão". Chego lá e vejo uma poética melhor do que Toda a Memória do Mundo (1956), de Alain Resnais. É Tonacci em plena forma em 1997, com fotografia de Mário Carneiro.

Meu irmão Juka assistindo a Bang Bang em vídeo ao som de Emerson Lake & Palmer sacou: "Mas essa cena da bailarina espanhola eu já vi no filme do Carlão, Alma Corsária"... Correto: é uma homenagem do Carlão ao Tonacci que me emprestou uma cópia do média Blá Blá Blá (1968) e aí saquei como ele fulmina todos os discursos, ditatoriais ou não. O talento visual é tanto que chega a irritar... Nunca ninguém filmou carros tão bem quanto Andrea Tonacci, já dizia Paulo Emílio Salles Gomes. E eu acrescentaria: nem mesmo Monte Hellman em Two-Lane Blacktop (Corrida Sem Fim), remoto precursor do já cult de David Lynch, que posso chamar de um "on the road" metafísico com o slogan "Com o pé na estrada e a cabeça nas estrelas"...

É todo um lance de cinefilia que o Glauber não curtia. Eu conversava há pouco com o Tonacci sobre Allen Ginsberg, William Blake e aquele do Tarzan - não confundir os dois Burroughs: Edgar Rice Burroughs é autor do Tarzan, William S. Burroughs é o papa da Beat Generation. E quando acabar o maluco sou eu. Também pudera: o maluco beleza Glauber pediu que eu deveria escrever sobre isso... Tá vendo, dona Lúcia? Ta vendo, dona Eugênia? Tá lendo, dona Alzira? Pira piramidal da ioga fundamental!

No meu livro Cinema de Invenção exagerei no capítulo Bressane, situando-o nos cornos da lua. Na reedição (1998) quero extrapolar no capítulo Sganzerla, o homem dos olhos de raios laser. Até o pior filme dele (O Abismo) tem lances geniais. "A linguagem é o logos do pensamento" (Blavatsky o Plínio Marcos também curte: & o Plínio é hoje talvez o único gênio vivo de nosso teatro) . No Abismo há o lance do OM, que Zé Ramalho (outro gênio!) homenageia numa canção dedicada a Carl Sagan.

Júlio Bressane é o homem da transcriação, mas é católico como Hitchcock. O admirável poeta Pedro de Souza Moraes (um beijo, Leda!) sempre me dizia que "o Bressane se limita ao expressar-se apenas por provérbios". Procede: Julinho está mais para Padre Vieira, enquanto Sganzerla e "reencarnação" de Oswald de Andrade.

Já Carlos Reichenbach é o cinepoeta do tetragrama visionário. Extrai profecia de pornochanchada da Boca do Lixo (O Império do Desejo, 1980). Mas não vou falar muito do Carlão, pois me falta distanciamento critico. Ainda há poucos fizemos Murilendo, um video "de encomenda" para a TV Cultura e que Luiz Rosemberg Filho amou, assim como Drago.

Tonacci é outro papo. É alquimista a quilates por segundo. Gosta de física quântica, nasceu em Roma, mas prefere viver no Xingu! Também gosta de Raul Seixas, que aliás está para mim como Noel Rosa pra Sganzerla. Tonacci por vezes se perde em projeto inexeqüíveis & vem adiando sua volta ao longa de ficção (ecológica e científica) desde a velha Casa de Imagens que deu com os burros n'água inclusive... Deixa pra lá: vamos falar do que interessa ao progresso: Agora Nunca Mais. Seria o It's Now ou Never na voz de Elvis ao som do ritual indígena! E você pensou que fosse alienígena? Tonacci é nonsense, é transchanchada: vide a cena do táxi em Bang Bang: essa eu parodiei no meu filmico O lnsigne Ficante, que também "influenciou" um filme do Bressane, Cinema Inocente (1980, está sendo telecinado em homenagem a Torquato Neto). Tonacci é gênio, mas vamos mudar a retranca: o lance agora é curta. Curta circuito.

Almeida Saltes, o eterno presidente, dizia em 1966 que "o curta é uma espécie de certificado militar do cineasta". Sem ócio não há sacerdócio. O negócio é a negação do ócio. Metafísica de bar.

E por falar em bar: Matrix, Brancaleone. O lance é Vila Madalena. Paolo Gregori é o maior animador cultural do planeta, além de cinepoeta de total sintonia eremita, telemita! Que Fim Levou a Mocinha da Sauna Mista? Sobre o guerrilheiro Marighela ele fez Mariga, um banho de sangue no fusquinha metralhado. Ah, em matéria de curta não se pode esquecer Ma che Bambina (1986) do grande A.S. Cecílio Neto, que tá de longa prontíssimo, A Reunião dos Demônios.

Outra revelação da experimentália curta-metragística: Noite Final Menos Cinco Minutos (1993), de Débora Waldman, a princesa de Babylon. Não dá pra falar de todos, mas é preciso não esquecer do califa de Bagdá, Arthur Omar: O Som. OM ou AUM, a mais sagrada de todas as palavras da índia...

Meressias, Sinhá Demência! É ou não, Christian? E viva Toninho Buda: E viva Renata Druck e seu Espírito Desencarnado!

Evoé Baco!

JAIRO FERREIRA

(Cinema, número 9, nov-dez 1997)

4.4.07

Nem tudo é paródia


Jairo Ferreira

Cinema de invenção é também cinema de memória. Belo Horizonte, 1980: I Encontro Nacional do Cinema Independente (Marcos Demôro do jornal CINEIMAGINÁRIO me diz que "o II não escapa de 87"): filmo "O Experimental de Souza", bloco do longa "O Insigne Ficante", Zé Sette instigando Elyseu Visconti Caval-leiro sobre "It's All True": "Meu amigo, fizeram uma mandinga para expulsar Orson Welles do Brasil, agora é preciso fazer outra mandinga pra trazer ele de volta, o Getúlio (Vargas é também Mike, Charlton Heston em "A Marca da Maldade"/1957, já um exorcismo de Welles e excelente associação crítica no filme-documento de Rogério Sganzerla) expulsou ele daqui, eis a verdade".

Nem verdade nem mentira: se houve mandinga é questão de muita pinga. Welles nunca teria se interessado em retornar, não se retorna a uma bad trip. O gênio sabia onde estavam os negativod, isso consta da cartela final de "Nem Tudo é Verdade" que, entre outros méritos, teria rompido a mandinga de que fala Elyseu. Sganzerla teria procedido a uma genial desvuduzação, reabrindo os campos da invenção de estirpe wellesiana entre nós pioneiramente na corrida mundial a esse mistério do 3º Mundo ao qual a diplomacia brasileira não deu força por ser fraca. "Mais l'experimentation n'a pas de vertu mystique en elle-même. Les expériences des savants ne sont pas des excursions au hasard dans l'inconnu" (dans The American Magazine, nov/1938, Cahiers Du Cinéma, Welles/1982). §

Entre nós alguns sganzerlinos se assustaram com a freqüência do filme "Nem Tudo é Paródia" (Autor: Richard Wilson, grande amigo de Welles): 795 espectadores renitentes na sala Carmemiranda do Belas Artes, "mas gostaríamos que o filme estivesse em cartaz na Rondônia também", disse Rogério no programa de TV da Marília Gabriela, que não ficou nada puta quando Sganzerla a chamou de "Mariana"... Não iremos nessa, mas é sempre salutar colocar os pingos nos is após a nomeação dos bois...

Freqüência de qualidade significa para o experimental em processo muito mais que freqüência de quantidade: "Brás Cubas" de Julinho Bressane esteve no outdoor do Belas Artes no mesmo período (outubro) e a Embrafilme registrou 1.463 espectadores na sala Carmiranda (Paulo Emílio assim grafou, uma boa, pois poucos manjam de assonâncias e assim vamos fazendo a língua brasílica que o Aurelião terá que assumir) e outros 2.684 na sala Mário de Andrade. Total interbressânico: 4.148 espectadores. Saldo animador no momento em que meu livro "Cinema de Invenção", onde Sganzerla & Bressane estão par-a-par com a invenção, esgotou os 2.000 exemplares da primeira edição. A segunda edição vem aí.

Assisti a "Nem Tudo e Verdade" (paródia é errância) na sessão das 6 no dia da estréia. Por acaso Carlão Reichenbach saía. Todo acaso é objetivo? Nem todo. Aí valeu a sintonia. Gostei no mesmo tom em que Carlão gostou, mas a sina de cronista é ir além. Vou.

Não encontrei obra-prima: achei "Nem Tudo é Verdade" primo-irmão do "Bandido da Luz Vermelha". Aliás "chef-d'ouvre" não se concebe, torna-se no tempo da tradição: clássico e o que se mantém novo. Uma primeira visão não basta na avaliação de a quantos quilates por segundo anda o maior gênio de nosso cinema (ex-tricontlnental), a sumidade RS.

Reencontro fantástico. Saio da Dinafllme e dou de cara com Sganzerla, ao lado Ninho de Moraes ("Ondas"/86, belo curta de invenção). Clima de constrangimento quebrado por um Rogério simpático e afetuoso que me indaga: "E seu livro, Jairo, está indo muito bem, eu soube". Gentilezas na descida do elevador em que resumi um sonho meu: "Sonhei que estava em conflito com você, que você queria me processar por não ter gostado de seus curtas-metragens "Noel por Noel" e "Brasil", mas acontece que adorei "Nem Tudo é Verdade". Rogério ficou pasmo.

Pound nos ensinou, entre muitas outras coisas, a separarmos o autor da obra. Tudo bem. Mas hoje o lance é a continuidade da amizade: relação transdialética da crítica dentro da produção em processo. "Nem Tudo é Verdade" nos mostra Rogério Sganzerla como ele é, polêmico, visionário, debochado e reflexivo sobre o que lhe interessa na antiestética da ética de outra ordem, outra didática sempre (ou não?) eclética...

O filme é de invenção ou experimentação que, no caso, reabre os horizontes wellesianos a nivel intergalático. Reaproveitamento delirante de uma documentação por si só explosiva, "Nem Tudo é Verdade" reatesta seu talento de outra estética do futuro audiovisual. No Brasil ou não. Montagem desatomizante, como queremos. Mixagem da banda sonora no melhor nível de prazer. Reciclagem do escracho. Belíssima fotografia de muitos rumos à invenção coletiva do cinemanônimo. Cinemanômade.

§ A experimentação não tem a virtude mistica em si mesma. As experiências dos sábios não passam de incursões no acaso em torno do desconhecido. Tradução JF

(Jornal Imagemovimento, número 2, dezembro de 1986)

1.4.07

OZUALDO CANDEIAS

As coisas por aqui andam de vento em popa. Nova fase graças a um novo - e excelente - programa de reconhecimento de caracteres. (JT)

Entrevista: Jairo Ferreira

O cinepoeta nascido em Cajubi, interior de São Paulo, concluiu as filmagens de um novo filme – Senhor Pauer, curta-metragem – no exato momento em que inaugurou a mostra/exposição intitulada Uma Rua Chamada Triunfo, 20 anos de registro do chamado Cinema Boca do Lixo. São duas décadas de memória do cinema – 17 painéis de mais de dois metros de altura, com cerca de duzentas fotos. A mostra faz parte do projeto Museu de Rua (as fotos estão impermeabilizadas: no MIS, de São Paulo, vão desde o ponto de ônibus à entrada...) da Secretaria de Estado da Cultura e deverá ser itinerante, percorrendo vários estados do País. Nesta entrevista, especial para o Cine Imaginário, o realizador – mais lúcido que nunca aos 66 anos de idade — dá uma geral no cinema brasileiro a partir de seu olhar original.

ODY FRAGA (diretor: "Macho e Fêmea", 1973) e figurante no curta-metragem "Boca Aberta" 1985 de Binho Xavier.

CI – Você está lançando a exposição Uma Rua Chamada Triumpho, onde se vê o que foram os últimos 20 anos do cinema paulista. Não seria mais importante fazer um filme de longa-metragem?
Candeias – Olha, eu tenho a impressão que as duas coisas são importantes Agora, se eu estivesse fazendo um longa seria difícil preparar a exposição. Essas fotos são resultado de quase 20 anos de Boca do Lixo, onde eu fiz oito filmes de longa-metragem. Fotografei até 76. Depois a rua começou a morrer, o cinema dela estaca morrendo... Mas, quando surgia alguma coisa, eu fotografava. É tão importante fazer um registro social, político e cultural quanto fazer um longa.

CI – Essa exposição de fotos sobre a Boca é mais completa do que as anteriores?
Candeias – A primeira foi feita quando o José Maria do Prado, que é um pesquisador de cinema independente, estava trabalhando na Secretaria de Governo, na Imprensa Oficial, e me propôs desenvolver este tipo de trabalho. Foi uma coisa menor. Essa agora é mais completa e é apresentada de uma forma mais atraente. São painéis grandes que podem ficar expostos debaixo de sol e chuva. Além do mais, tem uma quantidade maior de fotos e, se alguém tiver o trabalho de ler as legendas, vai verificar que são bastante informativas e que refletem o que foi a Boca.
Tem uma mostra de filmes que acompanha a exposição. Eles também mostram o que foi o fenômeno da Boca. São filmes marginais, pornochanchadas e pornôs. É muito oportuno essa mostra acompanhar a exposição.
A Boca do Lixo foi uma coisa única no Brasil. Aqui o capital privado investido no cinema, claro que no cinema comercial, no cinema para o público, foi e voltou, e o que é importante é que ao longo do tempo, com todas produções, criou-se um bocado de mão-de-obra... Eu acho que foi a primeira vez que isto aconteceu no País.


LUIS CASTELLINI (diretor e roteirista); JEAN GARRET(diretor: "A Ilha do Desejo", "A Força dos Sentidos"); OZUALDO CANDEIAS ("A Margem" 1967; "Aopção" 1981); e CARLOS REICHENBACH (diretor: "Lílian M" 1975, "Anjos do Arrabalde" 1986).

CI – Em sua exposição você fez uma referência à história do cinema paulista...
Candeias — Eu faço uma homenagem aos pioneiros do cinema de São Paulo, mas não falo quase nada deles. Faço uma referência para lembrar aquele negócio de que o hoje é estruturado em cima do ontem, e o amanhã pode ser estruturado em cima do hoje. É assim que funciona a memória.

CI – Você tem projeto de juntar toda esta documentação e fazer um livro?
Candeias – Eu acho que isso deve ser feito. SÓ que será um projeto bem mais amplo. Devemos juntar informação visual e não-visual. Aparentemente parece que a Boca foi uma coisa somente folclórica mas, na verdade, ela foi um fenômeno social e cultural. A maio ria das pessoas não percebiam e não percebem isso. Eu estava ali, envolvido com aquela raça toda durante 20 anos. Fiz oito filmes e trabalhei em muitos outros como iluminador, ator, produtor executivo, fotógrafo... Assim deu pra falar com todas as pessoas e ver o que elas queriam, o que elas sonhavam. Essas pessoas, na maioria pessoas desconhecidas, anônimas, que fizeram possível o fenômeno da Boca do 10 Lixo.
Essa minha exposição reúne um total de 200 fotos, e todo mundo que andava na Boca está aí. Falta gente, mas falta pouco. Apesar e quê, o processo de renovação era permanente. A maioria das pessoas ficavam poucos anos e desistiam, porque viam que pessoalmente não teriam futuro. Mas, é impressionante como todas se pareciam fisicamente, se pareciam na maneira de vestir, de pensar, de atuar. É que esse pessoal tinha uma mesma origem, vinha do mesmo segmento social.

CI – Você já fez um filme sobre a Boca...
Candeias — É, tem um filme sobre a Festa da Boca, em 76. É que eu achava que era o último momento. O ano "canto do cisne" da Boca do Lixo. A partir daí, não ia dar mesmo. Ali, ela ia adernar de vez. E foi o que aconteceu. Para as filmagens da Festa, apareceu um pessoal bom de cinema... Filmei ludo ao vivo. Não produzi este filme sozinho, fiz uma espécie de co-produção. Usei fotos antigas, filmando-as na base do "paredetop", já que não tinha o tabletop. Ficou um negócio meio doméstico.

JAIRO FERREIRA (crítico do "Cinema Marginal" e documentarista); CARLOS COIMBRA (diretor: "Armas da Vingança" 1955, "Iracema" 1979); JULIO CALASSO (diretor: "O Longo Caminho da Morte" 1972 e ator).

CI – O ultimo filme que você terminou tem a ver com essa exposição, com esse projeto de livro?
Candeias – Não. O nome do filme é Sr. Pauer. Ele tem uns 17 minutos, e é baseado num roteiro do Valêncio Xavier. A história acontece em Curitiba, durante uma greve nos transportes. Um cidadão que está à pé acha que um catador de papel tem que acolhê-lo em sua carrocinha. Ele obriga o catador a levá-lo, come a comida do pobre-coitado, mama a mamadeira do filho do cara. Quando o catador vende mercadorias, o cidadão tira quase todo dinheiro dele, e no final ainda leva a mulher... Isso acontece quando o catador de papel num certo momento tenta consertar a roda que quebrou da carrocinha e, de repente ele vê que não tem mais mulher. Ao passar numa favela, aparece um sujeito que chama ele de doido e dá um 65. Mas o catador não sabe o que fazer, fica assustado.
Esse filme foi feito num curso de cinema. Tinha mais de 40 caras juntos, e todos eles tinham que participar de alguma maneira por isso não é totalmente fiel ao conto de Valêncio. Fiz uma adaptação.

CI – O seu último longa é As Belas da Billings, está pronto há vários anos e não foi exibido. O que houve?
Candeias – Tem uma porção de maneiras para explicar. A fita, naturalmente, não agradou a Embra, nem aos exibidores, creio eu. Depois, já estava na fase em que a Embra não tinha dinheiro para investir na promoção... Eu também não tenho. Ficou por isso mesmo. Teve um momento em que a Alvorada queria lançar, mas aquele Marco Aurélio Marcondes disse que a Embrafilme tinha suas prioridades e não podia investir no lançamento do filme.

CI – Nessa situação ficou também A Opção?
Candeias – A Opção ganhou em Locarno o grande prêmio do júri. Agradou a crítica de lá. Uma grande revista como a Variety deu espaço para a fita. Deu tanto espaço para a fita que até o Calil ficou assustado. Lá havia negócios que eram fechados pelo Movimento Cineclubista internacional. Houve proposta de compra, mas tudo morreu por aí mesmo.

CI – Mas o Manelão o Caçador de Orelhas chegou a ser exibido.
Candeias – Não. Esse filme teve só uma cópia e foi lançado não sei onde. Quando aconteceu o Primeiro Festival Internacional de Cine-clubes numa cidadezinha perto de Paris, na França, por alguma razão o filme foi escolhido para representar o Brasil. Só mais tarde que eu descobri que foi porque um dos organizadores do Festival de Locarno, o Brossard, quando esteve no Brasil, foi até o Cine-clube, em Prudente, e achou que este era o filme que poderia representar o Brasil no Festival de Cine-Clubes francês. Fui saber disso quando faltavam duas semanas para acontecer o Festival, porque a Embra não tinha mandado o filme. Ela disse que a cópia estava muito ruim, e não tinha dinheiro para fazer outra. "Então se a porra da cópia está ruim, por que vocês não me devolvem ela?", disse eu. Aí, fui saber no Departamento que a cópia estava boa mas o negócio é que tinham uma só, e não queriam ficar sem nenhuma. E, lá na França estava tudo pago pra mim...
Tinham impresso tudo sobre o filme. Mas o convite oficial e toda a documentação estava na mão de um cara que segurou. É aquele negócio de puxar o tapete... Mas isso é até bom... pior se eu tivesse que andar puxando o tapete dos outros. Mas, é isso, a fita não foi e eu me fodi.
Era uma fita que todo mundo pichava... e não deram nem a vez de resposta.


RACHEL ORTEGA (Carmen Ortega – atriz: "Caçada Sangrenta" 1974, "As Rosas da estrada" 1981).

CI – Seus filmes são de autor, mas na produção você não é totalmente independente...
Candeias – O Manelão e As Bellas da Billings são produções da Embra. A Opção tem participação de 20% da Embra, mas tem também o apoio da Secretaria de Cultura do Estado de S. Paulo. Fiz o Meu Nome É... Tonho com o Manuel Augusto Pereira Sobrado, pelo MASP. O Tonho foi a primeira fita que o Augusto fez, depois de ele se desquitar do Mojica. Foi com essa fita que ele ganhou a condição de produtor. O David Cardoso como produtor atuou pela primeira vez no filme que eu fiz também, Caçada Sangrenta. Fiz com ele, em 83, A Freira e a Tortura.

CI – Você é um cineasta experiente. Atravessou épocas difíceis e taí hoje seguindo a sua linha. Como você vê o cinema brasileiro hoje?
Candeias – A gente está numa encruzilhada, aparentemente sem expectativas. Eu acho que o cara do cinema brasileiro errou de sempre se achar o bom. Ele nunca se espantou com o rádio, com o vídeo, com nada... Agora, a TV e o vídeo se preocuparam em avançar no espaço. Não sei qual é o caminho. Existe a produção estatal. Ela pode continuar servindo. Tem as co-produções estrangeiras, mas eu acho que a gente não tem condições de desenvolver este esquema, porque não temos grandes tradições nem credibilidade. E isso nem dentro nem fora do país; não adianta querer enganar. Na Europa, os países estão fazendo co-produções e disputando o mercado internacional. Essa moda é uma necessidade. Mas pra gente aqui é difícil. Nosso público não paga nem o laboratório. Botando um milhão de dólares num filme, como vamos pagar, se a gente não tem 30% do mercado interno e o mercado não absorve a nossa pequena produção? Ta todo mundo querendo lançar seus filmes; eu tenho dois filmes, a Embrafilme tem um monte de filmes mal lançados... Os exibidores dizem que "não passo" e o Concine concorda.
Veja aquela estatística falando dos cinemas que estão devendo 300 dias ao cinema brasileiro. Só uma ou duas salas estão em dia.Se o exibidor justifica que perde com o nosso cinema, é possível que ele tenha parte da razão. Mas, se eu tivesse espaço para exibir meus filmes num cinema popular, eu tenho para mim que eu poderia pelo menos pagar os insumos. Mas o exibidor não tem compromissos com o cinema brasileiro, por isso quem sempre perde é o produtor. O exibidor não arrisca nada. Somente diretores de cinema que têm espaço na imprensa conseguem alguma coisa. Mas há uma enorme cumplicidade nisto tudo; o Concine não chia, a Embrafilme, que tem 100 fitas para lançar, fica quieta, não fala nada...


CLAUDETE JOUBERT (atriz: "Sinal Verde" 1973, "A Filha do Padre", "O Cangaceiro do Diabo", "Rei da Boca" 1984).

CI – E os filmes que não são lançados não ficam velhos?
Candeias – Eu não creio que fita fique velha hoje. Isso acontecia antes do vídeo, ou mesmo da TV. Você tinha que ver filme no lançamento, depois não ia ver mais. E tinha que ver no centro da cidade. Hoje, aos 90 anos do cinema brasileiro, e aos quase 100 do cinema mundial, ao cara não importa se o filme é novo ou velho, ele quer é conhecer a história do cinema. Essa coisa do filme noir, por exemplo, o Casa Blanca todo mundo correu pra ver o que era. Então, o que tem a minha fita e as outras que estão nas prateleiras de velhas?... São novas, ninguém viu.

CI – Mas seja filme seu, do Cacá, do Jabor, do Carlão, do Mojica, qualquer filme brasileiro, quando lançado, não está se pagando. A coisa ficou igual pra lodo mundo. O cinemão e o cineminha não se pagam.
Candeias – Mas é melhor você lançar e tirar a metade ou um terço do que perder tudo, porque se você perder a metade de um filme, o exibidor só vai deixar de ganhar o dobro, ele não vai perder nada.
Eu acho que em relação ao cumprimento das leis, quem tem que dar satisfação é o Concine. O exibidor, o distribuidor têm que prestar contas, caso você bote o filme na mão dele. O Concine de repente podia dizer pelo menos porque a fita brasileira não presta. Devia orientar a nós diretores a fazer filmes como A Hora do Susto, A Hora da Corrupção, A Hora da Morte, ou como é no nosso caso, A Hora do Desespero. É a voz do Concine pra organizar nosso cinema. Chegue e diga isso, pelo menos. Mas, nada passa. Eu tenho dois filmes pra lançar, mas tem outros caras que têm três. Principalmente esses daqui de São Paulo, da Vila Madalena. A Boca não está fazendo mais nada, a não ser esses pornozinhos. Antes era pornozão. Agora são pornozinhos, ninguém procura caminhos.

CI – Mas o cinema brasileiro está fazendo bons filmes...
Candeias – O cinema brasileiro ultimamente não esta fazendo filme nenhum. A gente não pode dizer que faz cinema. Nossos diretores fazem coisas técnicas bem feitas, mas fogem dos seus temas, pessoalmente abrem mão do que gostariam de fazer. Abandonaram seus ideais.

CI – É, a criatividade está em crise...
Candeias – Eu tô achando que a criatividade do cinema de lá de fora foi voltada para toda uma pirotécnica e para toda uma tecnologia de horrores, de metafísica e de coisas cósmicas... Num certo tempo ela foi voltada para uma coisa política, cultural, para metáforas, e buscavam-se meios mais econômicos pra você tirar partido de uma estética, mas agora tudo mudou.

CI – O cinema brasileiro não tem condições de concorrer?
Candeias – Você precisa de mercado, porque tudo é muito caro. Antigamente, a criatividade era em torno de coisas que não custavam muito e eram simples. Hoje a criatividade tem que ter respaldo tecnológico e a gente não tem dinheiro. Aqui a criatividade da gente era inventar a Trilogia do Terror ou Meia Noite.

CI – A Boca do Lixo foi criativa sem ter dinheiro e agora não consegue fazer o mesmo...
Candeias – Eu tenho a impressão que se fizer não vai adiantar nada. A televisão é uma máquina de descobrir coisas. Pra cada filme tem 100 reportagens de neguinho que lá vasculhando esse mundo de todo jeito. O nosso cinema nunca chegou a mostrar a Amazônia num filme. O que fez foi no Bye Bye Brasil, onde a Amazônia está de uma maneira abstrata. Você nunca viu a cidade petrificada do Rio Grande do Sul, você nunca viu direito o que é a Chapada de Diamantina. Ela só aparece naquele filme do Orlando Senna... Então, o cinema não fez o que deveria ter feito. Hoje a televisão já arrasou com tudo isso através de novelas, minisséries e notícias. O cara que não compreender isso não pode ficar a choramingar. A TV procurou o seu caminho, descobriu e se consolidou, e você tem que respeitar esse poderio filho da puta. Você vê o Brasil inteirinho através da TV. Quando é que você ouviu falar da Chapada dos Guimarães, daquele negócio que tem lá há 400 anos em Cuiabá...?
De repente, no cinema, temos que nos voltar para o abstrato, para o essencialmente humano. Esse foi o caminho do teatro depois do surgimento do cinema. O cinema não tinha problemas com o tempo, com o espaço e o cacete. Hoje a televisão tem muito menos preocupação com isso. O teatro tem estas limitações, por isso buscou seu desenvolvimento dentro de suas limitações para chegar ao seu público, buscou harmonizar sua criatividade com os seus custos.

CI – Essa supremacia da televisão sobre o cinema qui no Brasil é demais...
Candeias – Outra vez é um problema de governo. É o governo que permite as emissoras serem produtoras também. A produção poderia ter ficado fora, assim surgiria uma estrutura muito mais sólida para o cinema. Mas nosso cinema foi sempre tão desmoralizado que nunca pensou nisto. Quando começou a TV Tupi, riram dela, nao participaram de sua história. Então ela sozinha criou seu elenco de atores e o seu corpo técnico. E a televisão hoje é que está rindo do cinema. Éramos um cinema desestruturado... E como eu disse anteriormente, o único fenômeno de cinema no Brasil onde houve investimento privado e que deu certo foi o da Boca do Lixo. A televisão teve e tem retorno. O Cinema Novo não deu retorno. A Vera Cruz não deu em nada. A Maristela enterrou quase todo o dinheiro. Se a chanchada tivesse dado certo, o Severiano Ribeiro daria continuidade.
Mas, apesar de tudo, acredito que surjam alternativas como as que existem em outros países, onde as TVs só podem produzir até 30% de sua programação. Se as nossas TVs fizessem, digamos, 40% ou 50% e deixassem o resto pra ser feito por produtores independentes, surgiria um processo de produção mais democrático. Mas não estou falando da Globotec, Manchetotec ou Bandeirantotec. As TVs não podem ser as donas da ideologia da imagem, não podem ter a hegemonia que têm.

(Cine Imaginário, número 43, junho de 1989)