31.5.07

Almeida Salles, presidente da amizade

JAIRO FERREIRA

O que ele já escreveu, desde os anos 20, nunca esteve em livros, embora seja primoroso, lapidar. Sua obra, em matéria de criticas e ensaios cinematográficos, daria pelo menos 4 substanciosos volumes. E mais dois de ensaios sobre literatura e poesia. Mas só hoje, às 17 horas, no Bar do Museu (av. Ipiranga. 324), ele lança seu primeiro livro. "Espelho da Sedução".

O homem é grande e se impõe pela presença de idéias, voz grave, firme, da melhor eloqüência, culta, ao mesmo tempo efetiva e afetiva. Costumam dizer que ele é o "papa da crítica de cinema", "um monumento vivo", "o amigo da amizade", mas é uma de suas máximas que dá a sua dimensão vivencial, antes de cultural: "Cultura não é o que se lê, mas o que fica, através de sua vivência".


Quem é ele? Quem é a grande eminência parda da cultura paulista e brasileira? É o "presidente", como o chamam carinhosamente: Francisco Luis de Almeida Salles. Presidente porque, desde os anos 40. sempre preside algum importante órgão de cultura (Clube de Cinema de São Paulo, Filmoteca do Museu de Arte Moderna, Fundação Cinemateca Brasileira, Comissão Estadual de Cinema da Secretaria Municipal de Educação e Cultura).

Almeida Salles é também presidente do bar mais cultural de São Paulo e talvez do Brasil: o Bar do Museu. Não é exagero dizer que a vida cultural da cidade deve muito a esse bar, que funcionava no prédio antigo do Museu de Arte de São Paulo, na rua 7 de Abril, e agora na av. Ipiranga. Aí se reúne diariamente, no fim da tarde, a fina flor da intelectualidade. Aí se discute tudo: tudo o que seja arte. Só poderia ser nesse bar o lançamento do livro do presidente. E o mais curioso é que se trata de um livro de poesias.

"Um caso raro em que o autor publica um livro sem ter os originais. São poesias dedicadas aos amigos, de 1935 até hoje. Poesia feita em guardanapo, em bares e restaurantes. Um livro de louvação: só louvação. Meu editor, Marcos Antônio Marcondes, teve o trabalho de arrecadar os poemas, que estavam com as pessoas a quem foram dedicados. Chamo isso de exercício da amizade. Como diz Ortega e Gasset, eu sou eu mais a minha circunstância. Por isso, entre as epígrafes. lembro Platão de "Lysias ou Da Amizade": Então eu disse: Não quero ouvir teus cânticos nem teus versos, ó Hippothales, se é que os fizeste para algum jovem amigo teu."

A titulo de explicação, Almeida Salles abre o livro: "Os textos aqui reunidos nunca foram destinados à publicação." O título, "Espelho da Sedução", foi recolhido de um samba-enredo de Silas de Oliveira e J. Harindo, "Meu Drama". Eis um poema dedicado ao ator José Lewgoy/1974: "Há alguém que viaja/na letra, na pauta, no círculo,/há alguém que cruza espaços/foge nos trens, respira os ventos/do acalento/há alguém que encarna/e desencarna, no tempo artístico/e fala e ouve/reconhecendo a letra do poema/e banhando-se na tinta/da pintura."

Homem de muitas atividades, não só na área das artes, Almeida é também assessor do governo do Estado e procurador (aposentado) do Estado, conselheiro da Fundação e conselheiro do Museu da Imagem e do Som. Ontem mesmo, antes de sua rápida entrevista à imprensa no Bar do Museu, acabava de chegar de uma histórica reunião no MIS, cm que a presidência da Fundação Cinemateca, então a cargo do escritor Antônio Cândido, passou para as mãos da escritora Lígia Fagundes Telles, viúva de Paulo Emílio Salles Gomes, notório titular da entidade e grande perda da década.

Numa rápida síntese de sua vida, preparada por seu editor Marcos Marcondes, consta que, em 1932, com 20 anos, Almeida fugiu de casa para se inscrever num batalhão da revolução paulista, contra Getúlio Vargas. Os pais tentaram tirá-lo de uma escola da Lapa, transformada em quartel. Ele chorou e ficou. Em Eleutério, fronteira de Minas Gerais, quase morreu numa patrulha. Salvou-o o cabo Mauro Pereira de Almeida, hoje o seu mais antigo amigo, inclusive porque a maioria dos louvados no livro já morreram. Na retirada, em Itapira, recebeu um tiro na perna, amenizado porque atravessou, primeiro, o seu cantil.

Cultivador da amizade, como se fosse uma vocação, Almeida conta que quem primeiro lhe revelou os tomistas foi Roland Corbisier, que depois lhe falou em Bergson. E segue-se uma espécie de manifesto da amizade e da cultura, onde Almeida fala de quem lhe apresentou quem: "Lauro Escorel, Maquiavel; Paulo Edmundo de Souza Queiroz, César, Nietzsche e Stendhal; Vicente Ferreira da Silva, Kierkegaard, Hegel e Heidegger; Mário Vieira de Melo, Dostoiewsky; Octávio de Faria, César e Maquiavel; Geraldo Melo Mourão, a grande meditação clássica e a captação da América; Efraim Tomas Bó, a ética da cultura transformada em ação no tempo; Delmiro Gonçalves, a recusa à concessão e a exigência na participação; Luiz Lopes Coelho, a alegria criadora da vida; Vinícius de Moraes, o entendimento com a circunstância e a sabedoria na fruição do mundo; Paulo Emílio Salles Gomes, a fidelidade fervorosa e o repúdio à mistificação (...)".

(Folha de S. Paulo, 20 de dezembro de 1979)

30.5.07

A autocrítica de um charlatão


JAIRO FERREIRA

Já está fazendo oito anos que Orson Welles começou a filmar "O Outro lado do Vento" e o filme até agora ainda não está pronto. Durante uma filmagem, nos desertos do Arizona, o câmera ligou subitamente os refletores e perguntou-lhe o que ele queria, ao que Welles gritou: "Seu idiota! Não está vendo que eu não tenho a menor idéia do que quero?"

O fato de Welles não ter concluído muitos de seus filmes tem sido objeto de especulações as mais extravagantes por parte da crítica mundial. O cineasta, um tremendo gozador, deve morrer de rir lendo tais matérias. Um dos alvos prediletos de seu humor é a critica norte-americana Pauline Kael. Susan Strasberg, que trabalhou com Welles em "O Outro Lado do Vento", lembra a esse propósito um outro episódio memorável:

"Fazíamos uma cena com um ônibus. A certa altura, o câmera não conseguia retirar do quadro um sinal vermelho com uma cruz. Alguém disse: "Vamos tirar aquele sinal, não se encaixa na história". Mas Orson respondeu: "Não, deixem-no aí. Pauline Kael escreverá parágrafos inteiros sobre o simbolismo dessa cruz vermelha".

"O Outro Lado do Vento" é pura metacinema. Financiado com dinheiro iraniano, francês e alemão, gira em torno de um diretor de cinema chamado Jake Hannaford, um macho feroz, misto de Ernest Hemingway e John Ford. Hannaford, interpretado por John Huston, retorna de um exílio europeu para fazer um filme em Hollywood, que mostrará que ele pode ser tão avançado como qualquer diretor de lá. Mas aos poucos é denunciado como um homossexual reprimido, cuja incapacidade de se manifestar sexualmente o leva a um suicídio retumbante. "John Huston – diz Welles – faz uma das grandes interpretações que já vi na tela. Quando eu for para o céu, se me deixarem entrar, será porque dei a John Huston o melhor papel que eu mesmo podia ter interpretado. Ele é melhor do que eu teria sido – e eu teria sido sensacional!".

Estou citando alguns episódios a propósito deste último inacabado filme de Welles porque ele se liga muito ao anterior, "Verdades e Mentiras" ("F for Fake", 1973/75), que está em cartaz no Liberty e que nenhum espectador que goste de cinema deve deixar de ver uma, duas, várias vezes. Em "O Outro Lado do Vento", Welles dá autênticas bofetadas em muitas pessoas com as quais ele entrou em conflito nos últimos anos. Uma dessas pessoas é Robert Evans, ex-chefe da Paramount que se recusou a distribuir "F For Fake".

Não se pode, porém, passar o carro na frente dos bois. "Verdades e Mentiras" é essencialmente um filme autocrítico, mas anterior ao "Outro lado do Vento". Daí ser evidente que ele poderá ser ainda melhor do que "F For Fake", pois este faz uma autocrítica claramente parcial, que não atinge os filmes inacabados ("It's All True"/1942, "Don Quixote" 1959/71, '"Dead Reckoming" 67/70). "It's All True", como se sabe, teve seqüências rodadas no Brasil, e já demonstrava as preocupações do cineasta com a verdade, como se "Cidadão Kane" (1941) já não tivesse levado isso às últimas conseqüências. A melhor tradução para "It's All True" não seria ''Toda a Verdade", mas "Isto é Tudo Mentira". Seria mentira, inclusive, que Welles tenha sido culpado da morte de um dos elementos da equipe numa cena de barco no Rio de Janeiro.

O grande charlatão do cinema mundial deve ser deglutido tropicalmente. Para isso nada melhor do que uma frase de Rogério Sganzerla, publicada há 11 anos, sobre José Mojica Marins, o popular Zé do Caixão, mas que se aplica perfeitamente ao Welles de "F For Fake", talvez devido a identificação entre gênios: "O natural é tão falso como o falso. Só o arquifalso é realmente real". Substitua-se o "real" por "verdadeiro" e já se verá que não é outra a problemática do filme de Welles: as relações entre a verdade e a mentira, o legítimo e o falso, a vida e a morte.

Como diz o poeta Cláudio Willer, "Não há nada mais criativo do que o acaso objetivo". Ora, foi por um mero "acaso objetivo" que Welles realizou "F For Fake". O diretor francês François Reichenbach, que é parente cinematográfico do brasileiro Carlos Reichenbach, já tinha milhares de metros de filme rodado sobre o falsário húngaro Elmyr de Hory quando Welles surgiu na parada. Está claro que ele não só aceitou a proposta do francês, como também o engambelou de vez, ofuscando-o e reduzindo-o de diretor a entrevistador/ator. Welles começou por fazer tão grande anarquia com o material na sala de montagem que, de cara, resolveu narrar o filme a partir da própria moviola ("É mais cômodo", teria afirmado). Assim, desse ponto fixo, uma referência metacinematográfica, nasce um turbilhão de movimentos, o documentário mais agitado sobre o objeto mais fixo (pinturas), uma atualização da máxima mallarmaica ( "Da forma nasce a ideia"). Trata-se, sem dúvida, do documentário menos chato já feito em qualquer época, se movimentação for tomada como oposto de ''fixação em torno da idéia da verdade", o que colocaria a nocaute a ingenuidade do mentiroso "Cinema Verdade". Um fenômeno que, por sinal, escandalizava o falecido Roberto Rossellini, que dizia: "Muitos filmes ditos de autor são, agora, puros exercícios formais, esquizofrenicamente pessoais".

Esquizofrênicos e também megalômanos são os artistas que entram como "conteúdo" do filme: Sicasso, Matisse, Clifford Irving, Howard Hughes, Oja Kodar, o grande falsário Elmyr de Hory e, principalmente Orson Welles. Um esquizofrênico, quando fala de outro, usa isso como mero pretexto para falar de si mesmo. No Brasil, Glauber Rocha fez isso através de Di Cavalcanti, no documentário "Ninguém Assistiu ao Formidável Enterro de sua Última Quimera, Somente a Ingratidão, Essa Pantera, Foi sua Companheira Inseparável" e Rogério Sganzerla através de José Mojica Marins em "O Abismo ou Sois Todos de Mu".

O genial Elmyr de Hory, que teve uma vida marginal e inclusive terminou se suicidando em 1976, falsificava à perfeição quadros de Modligliani, Marquet, Derain, etc; Clifford Irvimg falsificou a biografia do milionário Howard Hughes; a bela Oja Kodar, "modelo" de Picasso, tem uma boa frase sobre a crítica que Welles deve endossar: "A critica é uma... (impublicável)"; e o próprio Welles falsifica o que? A melhor seqüência do filme é certamente a que ele dedica a si mesmo, relembrando que, aos 16 anos, apresentou-se em Dublin, como famoso ator da Broadway, embora nunca tivesse pisado num palco; e, 1938, causou pânico com sua transmissão radiofônica da "Guerra dos Mundos", de H. G. Wells, fazendo crer que os marcianos tinham invadido Nova York: vai por aí afora. "Cidadão Kane" (1941) é uma belíssima mistificação. Uma trajetória perfeita, de 1941 a 1958 ("A Marca da Maldade"), período inicial em que Welles ficou conhecido como gênio, mas também narcisista, mau caráter, individualista, arrogante, megalômano. Agora com "F For Fake", Welles assume, de certa forma, tudo isso. "Sou um falsário", confessa.

"A arte é uma mentira", dizia Picasso. "Uma mentira que nos faz compreender a verdade", acrescenta Welles. ''Todo mágico é um ator", dizia o mágico Houdini, com quem o cineasta diz ter tomado aulas de magia branca aos 11 anos (acredite quem quiser, é claro). Welles faz algumas mágicas com moedas e chaves no filme, mas isso não convence. A verdadeira mágica do filme é sua montagem esquizofrênica (no bom sentido), fragmentando e explodindo a narrativa.

Nesta sua autocrítica, Welles torna-se inclusive "humilde", o que pode parecer absurdo num cabotino como ele. Isso pode ser atestado na seqüência em que o cineasta faz reflexões diante da catedral de Chartres, obra prima de autor desconhecido: "Talvez a assinatura de um homem não tenha tanta importância". A sua assinatura, porém, é o que dá importância a este filme instigante, belo como a morte: "A única verdade é a morte", acrescenta Welles. Mas ninguém deve levar nada disso muito a sério, pois no início do filme, Welles promete que vai dizer toda a verdade sobre falsificações, mas ao final interrompe para dar um recado perturbador: "Há 17 minutos que só estou falando mentiras".

Em suma: o cinema mundial estava em crise de criatividade desde que Orson Welles e Jean Luc Godard deixaram de apresentar seus filmes com a freqüência que se fazia necessária. Welles retorna com a forca de um furacão neste "Verdades e mentiras", um filme dificilmente superável neste ano de vacas magras. Resta esperar agora o ressurgimento de Godard.

(Folha de S. Paulo, 26 de abril de 1978)

25.5.07

Um sanguinário depoimento filmado


"Caminhos Perigosos" (em cartaz nos cines Belas Artes, Centro e Top Cine) é certamente o filme mais pessoal de Martin Scorcese, que passou boa parte de sua vida na chamada "Pequena Itália", em Nova York, perambulando inclusive por sua ala mais sórdida. Este é também seu filme mais rebarbativo, um anti-espetáculo que agride frontalmente a "boa fórmula estética" de "O Poderoso Chefão". Uma espécie de reverso da medalha, onde o chefão é substituído pelo chefinho, rodeado de figuras menores envolvidas no misterioso processo mafioso.

O fio condutor é propositalmente difuso, mal delineado. O núcleo central é um grupo de jovens entre 20 e 30 anos, todos procurando defender a pele com expedientes marginais, desde o tráfico de drogas até a cobrança de juros. O diretor Scorcese é um cinéfilo inveterado e faz desses personagens os "anti-Vitelloni", citando Fellini num contexto totalmente anti-poético.

O que dá substância ao filme é a ambientação: bares de quinta categoria, becos escuros, mesas de sinuca. K é em torno de uma dessas mesas que está a melhor sequência do filme: um sensacional "travelling" que vai acompanhando uma briga de empurra-empurra, onde quem mais empurra é mesmo a câmera, feita com nervosismo, mas também com muita segurança.

Martin Scorcese aproveita Inclusive para satirizar a violência. Seus personagens brigam o tempo todo, sempre por mesquinharias. Um deles (De Niro) dá um verdadeiro show de agressão, desafiando um Inimigo com um revólver que nem estava carregado, como se vê depois. E as pequenas brigas parecem ir se somando para eclodir em violência sanguinária, o que só acontece na sequência final, quando os "anti-Vitelloni" são surpreendidos numa perseguição de automóvel. A cena termina com o abalroamento de um hidrante, nítida alusão a "Perseguição Implacável" de Don Siegel.

O personagem de Robert De Niro em "Taxi Drlver" é apenas uma figura menor neste "Caminhos Perigosos", vivido por Harvey Keitel, um devedor que não quer pagar sua dívida, ex-combatente na guerra do Vietnã. Esse personagem seria ampliado em "Taxi Driver", uma ficção com caráter documental, enquanto este se impõe mais como depoimento, o que justifica a sua improvisação.

J. F.

(Folha de S. Paulo, 7 de fevereiro de 1977)

23.5.07

Arquivo em Movimento: Cinema de Invenção

serviço:

No Arquivo em Movimento desta semana homenageia um grande nome do cinema brasileiro. Crítico, cineasta, ator, fotógrafo e jornalista, Jairo Ferreira abriu novos horizontes para o audiovisual com o seu "Cinema de Invenção". Entrevistamos alguns de seus amigos e colegas de profissão: Paulo Sacramento, Carlos Reichenbach, Inácio Araújo e Alessandro Gamo.

Canal 11 NET
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sexta, 25/5
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domingo, 27/5
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A turma de James Bond em São Paulo

James Bond, o famoso 007, tem agentes secretos também no Brasil, encarregados de enviar informações aos integrantes da equipe de "007 – O Espião que me Amava". O problema é que esses agentes brasileiros (que aliás não costumam promover o cinema nacional) não são eficientes como os agentes britânicos. Assim, eles forneceram informações erradas sobre a temperatura de São Paulo, dizendo que iria fazer calor, quando os termômetros acusaram 15 graus. Por isso as duas atrizes do filme que estão entre nós, as "Bond girls" Sue Vanner e Dawn Rodriguez, tiveram que enfrentar – ambas de biquíni, naturalmente – frio, vento e garoa ontem a tarde à beira da piscina do Hilton Hotel.

Fotógrafos de revistas eróticas, jornais e televisão estavam todos ao redor das duas atrizes, que faziam poses e sorriam como se tudo estivesse bem, quando surge na porta do elevador um verdadeiro gigante: era Richard Kiel, que tem exatamente dois metros e vinte e cinco centímetros de altura. Embora não estivesse com ar ameaçador, todos foram abrindo alas para a sua passagem. O estrelismo das atrizes foi subitamente ofuscado pela figura do ator, que ficou conhecido do público depois de fazer o papel de vilão em "Tubarão" e que tem agora uma atuação destacada em "007 – O Espião que me Amava", que será lançado entre nós no fim do mês.


Os agentes brasileiros de James Bond, responsáveis pelo encontro dos integrantes da equipe com a imprensa, não preparam uma entrevista no sentido tradicional. Tudo começou com muito uísque e canapés, ajudando a criar um clima descontraído. De repente, tomando uma caipirinha, um indivíduo gordo e simpático começou a conversar em inglês com alguns jornalistas, mas logo desistiu, pois percebeu que os interlocutores não estavam entendendo nada. Mais tarde, todos descobriram que ele era nada mais nada menos do que Albert R. Broccoli, o superprodutor de todos os filmes da série 007.

– Vocês pensam que eu sou muito multo rico – disse ele. Mas vou provar que não é nada disso: vejam quanto eu tenho no bolso. (E mostrou duas notas: uma de dez cruzeiros e outra de cinco).

Afirmando que "São Paulo é uma cidade misteriosa, excitante e fotogênica", o produtor estava muito bem humorado e não cansava de fazer elogios à qualidade da caipirinha que estava tomando: "Nunca vi bebida tão forte. Assim vou terminar contando até o segredo do sucesso dos meus filmes".

– O sucesso da série se deve ao conjunto da equipe que trabalha comigo. Tudo é importante: o roteirista. o diretor, os atores. O agente 007 é uma figura bizarra e suas aventuras também, o que me parece o principal elemento de sua aceitação popular. Ele às vezes está mais perto da fantasia, mas os filmes de James Bond não são de ficção cientifica: são de ficção, mas baseada em fatos. Vocês sabem, por exemplo que o escritor lan Fleming, no qual todos os filmes de 007 são baseados, era realmente um espião que teve uma destacada atuação durante a Segunda Guerra Mundial. Foi ele que inventou inclusive aquela maleta James Bond, que ficou famosa, e que apareceu nos primeiros filmes da série cheia de surpresas

Quando lhe perguntaram sobre o orçamento de seus filmes, Albert R. Broccoli fez gestos de que seria muito difícil falar sobre o assunto. Elogiando novamente a "caipiríssima", ele tentou desconversar, mas resolveu abrir o jogo:

– Esse filme que vocês vão ver, "007 – o Espião que me Amava", custou treze milhões e meio de dólares. Gastamos três milhões de dólares numa única seqüência, onde aparece um carro que se transforma em submarino, especialmente construído para o filme. Temos também uma motocicleta que anda sobre a água, um navio-tanque, um relógio-telex e outras máquinas sofisticadas que custam uma fortuna. Não sei exatamente a porcentagem do orçamento que vai para os efeitos especiais, mas deve ser bastante.

Quando o super produtor começou a cantar uma música de "Voando para o Rio", que ele disse ter produzido para Fred Astalre e Ginger Rogers, a entrevista parecia ter terminado, mas não foi o que aconteceu: o gigante Richard Kiel começou a responder perguntas sobre as dificuldades que sua altura (2,25) lhe traz. Tentando fazer uma piada, um repórter perguntou: "Com sua altura, você acha que os outros homens são pequenos ou grandes?" Mas o ator não entendeu a pergunta e começou a responder sob um ângulo filosófico: "De fato, pode haver homens bem altos, mas com idéias pequenas, e também homens pequenos com idéias grandes". J.F.

18.5.07

Os mundos paralelos de Khouri

JAIRO FERREIRA

"As Filhas do Fogo", de Walter Hugo Khouri, a mais inaudita e inquietante experiência na área do horror poético, desde que José Mojica Marins inventou o gênero no cinema nacional (seu filme "Ritual dos Sádicos", em 1969, continua proibido pela Censura), estréia hoje nos cines Ipiranga 1, Astor, Center, Top Cine, Cinesparcial e Paissandu/Sala Independência. De saída, porém, é bom esclarecer que o único ponto comum entre um cineasta e outro é o horror poético, mas com uma diferença fundamental: Mojica faz horror grosso, Khouri fez um horror finíssimo. Khouri sempre foi um intelectual:

– O meu fascínio pelo clima fantástico, pelo irreal, pelo estranho e pelo insólito vem desde as minhas leituras de infância e continuou pela adolescência e pela idade adulta, aí já abrangendo todos os domínios da arte literatura, artes plásticas em geral e, naturalmente, cinema. Desde muito cedo me familiarizei e me apaixonei também por autores como Edgar Allan Poe, Henry James, Hawthorne, Sheridan Le Fanú e também Kafka, Borges, Lovecraft, além de uma infinidade de outros, abrangendo todos os gêneros possíveis. Lembro me perfeitamente que uma das minhas primeiras experiências de adaptação cinematográfica, escrita aos 17 anos, foi feita sobre o conto "O Gato Preto", de Alan Poe.

Apesar dessas influências confessas, "As Filhas do Fogo" está muito mais para Tomu Uchida do que para a literatura fantástica. Uchida é o maior cineasta japonês de todos os tempos e um dos dez maiores do cinema em geral, mas nem mesmo a crítica francesa descobriu isso ainda, o que deverá acontecer brevemente (no momento eles estão descobrindo Yazujiro Ozu, Teinosuke Kinugasa e Kenji Mizoguchi). Khouri e alguns poucos cinéfilos paulistas tiveram a sorte de assistir tudo de Uchida em São Paulo, nos bons tempos do cinema japonês: "Espada Diabólica", nina trilogia de cair o queixo, "Miyamoto Musashi", sobre o espadachim Zen e ainda "Estranho Amor" e outras obras primas que não voltam mais. A parapsicologia, ciência recente, já estava em forma poética em todos esses filmes, mas Khouri pesquisou também fora da área cinematográfica:

– Com o advento da divulgação em âmbito mundial das experiências de Parapsicologia, os experimentos de Rhine, a moda de Jung e inúmeros outros fatores, o gênero ampliou-se e adquiriu mesmo certas características científicas, sem perder, contudo, a sua aura de mistério, de fantasia, de terror e de transcendência. O fantástico e o sobrenatural passaram a ser encarados sob novas formas, as pesquisas ampliaram-se, gente considerada "séria" passou a se interessar por esses assuntos, mas a Poesia essencial, a magia e o "firisson" que envolve todos esses fenômenos continuaram a prevalecer sobre tudo.


– Dentre as novas pesquisas surgidas e divulgadas em anos mais recentes (apesar de sua origem remontar há muito tempo) a que mais me fascinou foi a que se refere ao registro de vozes de pessoas aparentemente mortas em gravadores de fita magnética. A conjunção de um elemento de alta tecnologia eletrônica e de um fenômeno parapsicológico marcante e estranho me pareceu algo fascinante e aterrador.

– Comecei a estudar o assunto, com enorme curiosidade. Tomei conhecimento das primeiras experiências do pintor sueco Friedrich Jurgensson, que começaram quase acidentalmente, das pesquisas importantíssimas de Konstantin Raudive e também dos brasileiros como Hilda Hilst, George Magyary e outros, além das excelentes reportagens da revista "Planeta". O livro "Carry on Talking" ("Os Espíritos Comunicam-se por Gravadores"), de Peter Bander, também foi muito importante para ampliar o meu conhecimento do assunto e das bases cientificas das experimentações. Mas, acima de tudo, o que mais me interessou foram as lições transcendentais e filosóficas que as experiências com as vozes e os gravadores propunham. Problemas relacionados com a morte, com o tempo, com o espaço e com a própria essência da existência humana.

– Foi ai que me veio a idéia de realizar um filme em que esses fenômenos estivessem inseridos, de forma dramática e funcional evidentemente, sem nenhuma pretensão científica ou sectária. Foi sempre minha intenção captar o sentido poético e trágico que o fenômeno das vozes de pessoas mortas registradas em aparelhos eletrônicos sugere. E a partir dessa posição concebi uma história de clima fantástico e atemporal, onde as épocas e os acontecimentos se misturam e se sucedem em sincronicidade, ampliando assim o espectro dos fenômenos parapsicológicos além do registro das vozes. Assim também a premonição, os universos paralelos, os elementais, a percepção extra-sensorial e muitos outros fenômenos coexistentes no filme, num clima de fantasia poética e mórbida, envolvendo todos os personagens.

"As Filhas do Fogo" foi lançado experimentalmente em Curitiba, cidade experimental em muitos outros setores, batendo todos os recordes de bilheteria do cinema nacional. O fato foi atribuído ao tema do filme, parapsicologia. É a primeira vez que um filme brasileiro entra de sola no assunto, pisa firme na linguagem e mergulha no horror poético de corpo e alma. O filme deverá estourar também em São Paulo, mas, a julgar pelas reações do Festival de Gramado, onde foi exibido "hors concours", "por questão de ética, já que foi filmado nessa cidade", será malhado impiedosamente pela mesma critica que sempre pichou todos os outros filmes do cineasta (15, antes deste).


"O filme é totalmente vazio", "não tem conteúdo", "é um sonífero" e outros lugares comuns. O cineasta nunca respondeu a essas "acusações" e, desta vez, continuará não respondendo. Sobre a crítica, de uma forma geral, Khouri diz o seguinte: "ela ainda não aprendeu a distinguir o que é assunto, tema, conteúdo, estilo, linguagem e narrativa".

Como já assisti ao filme, devo lançar ao ar alguns dados que poderão ser úteis às discussões que ele deflagrará. Não sou suspeito para falar, porque nunca fui entusiasta dos filmes de Khouri. Gostei apenas de "Noite Vazia", "O Anjo da Noite" e "O Corpo Ardente", mas acho "As Filhas do Fogo" disparadamente seu melhor filme. Os que acusam o cineasta de ser "vazio" são nada mais do que "patrulheiros ideológicos", que já existiam muito antes dessa expressão, diga-se de passagem. Vazios são esses patrulheiros, que cobram de um artista como Khouri o que eles mesmos não têm: talento, antes de mais nada. E, se falam tanto em "vazio", pressupõe-se que há filmes "cheios". E de fato isso não falta no mercado: filmes cheios de intenções mercadológicas, feitos para "encher" o mercado com bagulho sócio-ideológico que não tem nada a ver com cinema. Nesse mercado vazio de criatividade, o filme de Walter Hugo Khouri é uma exceção: encherá o público inteligente de prazer, tal a dignidade de sua estrutura narrativa.

"As Filhas do Fogo" é um balde do água fria nessa mentalidade xenófoba que quer entulhar de Brasil por todos os lados os seus filmes, tornando os irrespiráveis O grande colírio para essa poluição e o filme de Khouri, ambientado em Gramado, uma cidade que não parece ser brasileira, mas é. Cai neve em Gramado e o cineasta filma uma das seqüências mais poéticas do cinema brasileiro, com sua câmera tornando visível o que os olhos dos bitolados não enxergam. Percepção extra-sensorial, aliás, não é prato para quem tem couro grosso. Um dos grandes méritos do filme é popularizar a parapsicologia, isto é, popularizar o que é impopular, sem cair no folclore ou no que Oswald de Andrade chamava de "macumba pra turista".

O que havia de pior em outros filmes de Khouri, a petrificação dos atores, transfigura-se em "As Filhas do Fogo". Selma Egrei interpreta uma mulher que já morreu. Por isso ela é estática. Khouri consegue inventar uma nova dramaturgia ao colocar lado a lado vivos e mortos, uma interpenetração de tempo e espaço, como preconizam as pesquisas que falam em espaços e mundos paralelos. Duas jovens (Paola Morra e Rosina Malbouisson) passeiam pelas florestas de Gramado, um dado naturalista que Khouri transfigura mediante uma talentosa panorâmica pelos arbustos da floresta, sugerindo uma nova dimensão de tempo, inquietantemente ambientado no mesmo espaço físico. Esse recurso pode não ser novo, embora raro, mas nunca foi utilizado dessa forma, levando o espectador a um clima poético digno de Edgar Allan Poe. Nesse sentido é que o filme tem nível internacional, é tão bom quanto "Shock", de Mário Bava ou "Patrick", de Richard Franklin, que foram premiados no último Festival de Cinema Fantástico de Sitges, na Espanha.

Atualizadíssimo com a onda semiológica, Khouri manipula magistralmente os signos visuais e sonoros. Um exemplo, o chá verde (aliás titulo de um conto de Sheridan Le Fanú), que é servido pela parapsicóloga (Karim Rodrigues num de seus melhores papéis) às duas jovens, contém uma folhagem que, posteriormente, ressurge como peça de um colar no pescoço de uma das personagens. Ou então uma gaiola intrigante, rodeada de algas, que dará a chave da seqüência final. Rogério Duprat, que já tinha feito música para outros filmes de Khouri, foi convidado também para este e trabalhou com total dedicação, "porque saquei nele, além da qualidade dos anteriores, um lance de incrível humanização das pessoas e um jeito muito maluco de mexer com o tempo e a roda das coisas (nada a ver com Marienbad), uma sorte de discronia magica". Talvez seja isso: "As Filhas do Fogo" é um filme mágico e, considerando-se que cinema é, antes de tudo, magia, a conclusão só pode ser uma – a de que o filme é cinema, isto é, linguagem de cinema, algo que aparece raramente no país.

(Folha de S. Paulo, 5 de março de 1979)

17.5.07

Uma nova imagem de Zé do Caixão

JAIRO FERREIRA

"Quem sou eu, não interessa, como também não interessa quem é você, ou melhor, não interessa quem somos. Na realidade o que importa é saber o que somos. Não se dê ao trabalho de pensar porque a conclusão seria: a loucura. O final de tudo, para o início de nada".

Os espectadores que gostam dos filmes José Mojica Marins já sabem que essa é a filosofia básica de Zé do Caixão, enunciada em seus dois primeiros e melhores filmes: "À Meia Noite Levarei Sua Alma" (1964) e "À Meia Noite Encarnarei no Teu Cadáver" *(1967). Esses filmes, na verdade, integram uma trilogia juntamente com "Ritual dos Sádicos" (1968), talvez melhor ainda do que os dois primeiros, mas lamentavelmente ainda não liberado pela Censura.

A grande novidade, para os aficcionados do terror brasileiro, que só poderia ser mesmo um terror debochado para se manter autêntico, é que há um novo filme na praça: "O Universo de Mojica Marins", documentário de 30 minutos sobre o criador Mojica Marins e sua criatura, Zé do Caixão. O diretor chama-se Ivan Cardoso, que veio de uma grande experiência em cinema Super-8, depois de realizar algumas curtas e médias metragens que marcaram época na produção experimental. Seu gosto pelo horror já se manifestava desde que realizou o elogiado – e pouco visto – "Nosferatu no Brasil" (1972), cujo papel central é interpretado pelo compositor e poeta Torquato Neto (que infelizmente suicidou-se um ano depois).

Atualmente está em moda o chamado "cinema de homenagem", mas é bom deixar logo claro que o filme de Ivan Cardoso está fora desses esquemas de consumo rápido e rasteiro, embora seu objetivo seja atingir o grande público. Trata-se de um documentário realmente fora de série, inclusive porque a homenagem não soa falsamente badalativa, mas altamente criativa, revelando aspectos inusitados da personalidade do cineasta.

Assim que a primeira cópia do filme ficou pronta, o carioca Ivan Cardoso veio para São Paulo e convidou alguns amigos para uma sessão especial: os poetas Angusto e Haroldo Campos e Décio Pignatari, o crítico Mário Schoenbrrg, o ensaísta Jean-Claude Bernardet,. o cantor Walter Franco, o próprio Mojica Marins, claro, sua equipe habitual que tem figuras fantásticas (caso de seu assistente, "Satã") e – antes que me esqueça – eu.


Antes de maiores comentários sobre "O Universo de Mojica Marins", que aliás está participando da mostra oficial do Festival de Brasília, que começa hoje, é necessário fazer um rápido retrospecto na trajetória de Ivan Cardoso, pois seus trabalhos em Super 8 estão profundamente ligados ao terror brasileiro, aqui já identificado de vez com Zé do Caixão. Recomenda-se prestar muita atenção nos títulos dos filmes: "Sentença de Deus", primeiro Super 8 de Ivan Cardoso, tem exatamente o mesmo título do segundo filme de José Mojica Marins (feito em 1959). Quem melhor soube detectar essas "coincidências propositais" e esses "acasos objetivos"? O poeta Haroldo de Campos, claro, em matéria publicada
no extinto "Correio da Manhã" (14/8/72), cujo título é altamente inventivo: "Ivampirismo: o cinema em pânico".

"Quando muitos estavam pensando no monumental e no bolo de noiva, no pomposo e no demagógico-ornamental, no "festival" e não no festim, chegou o Ivan Cardoso de Super 8 na mão, e partiu para a deglutição canibal do cinema. Não em problema de ontologia, mas uma questão preliminar de odontologia, como diria Oswald de Andrade.

"E veio Nosferatu no Brasil, ou mais exatamente Nós-Torquato no Brasil. Com Torquato Neto no papel título, atacando de vampiro, um vampiro ensolarado, malandro e desinibido, tropicalizado em cores berrantes, para inveja de seus cinzentos colegas dos castelos de Cárpatos. Numa féerie fie suco de tomate, o vampiro – um vampírico (vampiro empírico) – vai levando a dente carótidas e outros vasos, num aprendizado por contato direto, vampirizando a torto e a direito, onde e como pode, operando com os meios da circunstância, e logo cercado por um séquito badalante de recém-conversos vampiros de barba e vampiretes de biquíni: os e as ivamps".

A camera Super 8, como se sabe, está agora na mão de todos, custa o mesmo preço de máquina fotográfica. Porém, daí só saíram dois ou três grandes cineastas no Brasil. Ivan Cardoso foi o primeiro deles. Em 72 ele dizia:

"O curta metragem é o primeiro passo para quem quer transar cinema no Brasil. É o primeiro passo para que um cineasta se torne um autor de "leitos mentais". Ou seja: para conseguir os certificados de "boa qualidade"/censura, ingresso nos festivais etc. Será melhor que o sujeito se torne um "fabricante de colchões", Nessa canoa não entramos: pulamos para o outro lado: para a criação visionária: para um trabalho radical e irreversível: para o cinema mudo: para uma série Super 8: Quotidianas Kodak. Em um ano os resultados do nosso trabalho estão aí: Piratas do Sexo Voltam a Matar, Amor e Tara, Nosferato no Brasil, Sentença de Deus: prontos. Os dois últimos longas-metragens em acabamento: After/Midnight e estamos filmando Dominó Negro: A Múmia Volta a Atacar! Cada um me custou 600, e 800 cruzeiros. O último é que está saindo mais caro. Tenho gasto muito nas faixas para embalsamar a "múmia".


A tese de que o cinema Experimental (também chamado Udigrudi) é imenso reservatório de criatividade, que inexoravelmente vai sendo absorvida pelo cinema de grande público, ganha total consistência no caso de "O Universo de Mojica Marins". Este documentário de Ivan Cardoso, feito também para aproveitar a Lei que obriga a exibição de curtas metragens junto a filmes estrangeiros, começa da mesma forma que "À Meia Noite Encarnarei no Teu Cadáver":

"A coragem inicia onde o medo termina. O medo inicia onde a coragem termina. Mas será que existem a coragem e o medo? Coragem do que? Medo do que? De tudo? O que é tudo? Do nada? O que é nada? A existência, o que é existência? A morte? O que é morte? Não seria a morte o inicio da vida? Ou seria a vida o inicio da morte? Você não viu nada e quer ver tudo. Você viu tudo, mas não viu nada. Teme o que desconhece e enfrenta o que conhece. Por que teme o que desconhece e enfrenta o que conhece? Sua mente confusa não sabe o que procura. Porque o que procura confunde a sua mente: E nasce o terror. O terror da morte. O terror da dor. O terror do fantasma. O terror do outro mundo. Agora vê no terror que nada é terror, não existe o terror. No entanto, o terror o aprisiona. O que é o terror? Ah! Não aceita o terror porque o terror é você".

Esta é a filosofia completa de Zé do Caixão, acompanhada de imagens com nuvens tenebrosas que passam pela figura sinistra do Zé do Caixão, agente funerário, o melhor personagem já criado pelo cinema brasileiro nesses 81 anos de sua existência. "Zé do Caixão é o Antônio Conselheiro do cinema", afirmou o poeta Décio Pignatari, enquanto o poeta Augusto de Campos falava em "camelô metafísico", a propósito dessa filosofia cabocla que deflagrou a irracionalidade brasileira, revelando uma face até então oculta do homem brasileiro, influenciando todo o Cinema Experimental, de Rogério Sganzerla e Eliseu Visconti ("Os Monstros de Babaloo").

Há uma seqüência no documentário de Ivan Cardoso que foi muito elogiada. Na pré-estréia de "Inferno Carnal", um dos últimos filmes de Mojica Marins, Ivan Cardoso lá estava de câmera na mão, seguindo o cineasta desde que ele chega num carro preto até a entrada do cine Olido. Mojica, com sua capa preta, cartola e tudo o mais, acompanhado de seu assistente, "Satã". Décio Pignatari não resistiu e fez uma comparação: "Zé do Caixão está parecendo exatamente Mandrake, enquanto seu assistente Satã, careca e tudo, lembra mesmo Lothar e o incrível de tudo isso e que eles estão inventando sem saber quem foi Lee Falk". Acrescente-se ainda cenas pitorescas em que Roberto Carlos aparece sendo hipnotizado por Mojica Marins (o filme aliás termina com ele cantando "E que Tudo Mais Vá Pro Inferno").

Uma boa parte do texto do filme é inclusive de Décio Pignatari, narrada por um locutor com um tom de voz, algo radiofônico, dizendo mais ou menos o seguinte: "Na época das viagens espaciais, o choque de um bárbaro, um primitivo, contra a tecnologia elétrica". Mas a mais surpreendente de todas as seqüências talvez seja a do depoimento de Mojica Marins, onde ele explica como teve a idéia de criar o personagem Zé do Caixão. Ele começa falando normalmente, mas aos pouco vai entrando numa espécie de transe, uma viagem mental, tentativa de mergulhar em seu próprio inconsciente e fornecer ao público uma idéia aproximada do que seja um pesadelo, pois Zé do Caixão nasceu de um pesadelo.

Ivan Cardoso teve o cuidado de evitar qualquer sensacionalismo, não inserindo no filme as famosas cenas eróticas de Zé do Caixão. "Preferi revelar o lado familiar de Mojica Marins, que nunca deixou de visitar a sua mãe e acho sensacional quando ela diz que seu filho não é o perverso Zé do Caixão, mas um homem chamado José Mojica Marins. Essa foi a forma que eu encontrei para fazer a minha homenagem sincera e carinhosa ao grande cineasta brasileiro, um dos poucos que estão tendo a honra de serem homenageados em vida".

* o título correto é "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver".

(Folha de S. Paulo, 24 de julho de 1978)

16.5.07

Ontem...

As fotos abaixo são do arquivo do Jairo. Não estão creditadas, tampouco datadas.

Em todo caso, creio que são do começo dos anos 70, quando Mojica tinha o projeto de rodar um filme chamado Os Sapos - que, nas palavras do próprio, seria "uma mistura de Os Pássaros com O Planeta dos Macacos".




... e hoje

Alguns posts abaixo há uma antiga reportagem do Jairo sobre A Encarnação do Demônio, projeto de quase 30 anos do Mojica que nunca tinha saído do papel.

Paulo Sacramento, produtor e montador do filme, mandou algumas fotos de divulgação para o blogue. Ei-las.

Fotos/crédito: André Sigwalt





13.5.07

Otoniel, o pedestre

Reapresentado no último Festival do Foto Cine Clube Bandeirantes, O Pedestre, curta-metragem do jornalista Otoniel Santos Pereira, confirmou-se como uma das mais avançadas experiências em 16mm, e talvez o melhor filme paulista na bitola dos últimos anos. Inspirando-se (no bom sentido) num conto de Ray

Bradbury, escritor aliás muito cinematográfico, Otoniel realizou um filme com os pés nas ruas de São Paulo, uma cultura de cinema moderna e jornalística, além do talentoso fotógrafo Andréa Tonacci e a colaboração de Rogério Sganzerla na montagem. O filme se inicia sonoramente com Eve of Destruction, de Bary McGuire e, visualmente, com a "leitura" godardiana da notícia no luminoso de um jornal. A objetividade é completa. A ação é ambientada além do ano 2000, e a grande tela anuncia que ninguém poderá sair à rua. Mas Otoniel toma a iniciativa. A câmera anda com ele, que tem uma laje sobre os pés e outra sob a cabeça, num travelling mais wellesiano do que imaginaria o diretor de "O Processo". Jáentre os títulos, quando aparece o liquidificador, Otoniel mostra o caráter mecanizado de uma sociedade industrial de consumo, depois denunciada godardianamente pelas panorâmicas dos anúncios de refrigerantes. Os passeios de Otoniel pela cidade deserta, a inquietude e senso de perscrutação que envolve o personagem, são elementos que encontraram uma linguagem adequada na câmera tremida de Tonacci, já admitindo que a direção pautou-se por uma liberdade total. O carrinho da Vemag foi um grande achado, inteligentemente utilizado pelo cineasta. Despojada, moderna, a cena da detenção do personagem circunscrito por panorâmicas demonstra a visão que Otoniel tem da linguagem cinematográfica. Outro achado foi colocar o Hino Nacional na cena final, quando a câmera passeia com Hawks, às vezes dando até a impressão de ter antecipado Fahrenheit ou Alphaville. O filme é andado do começo ao fim. O Hino em ritmo lento de plano dá uma conotação estrutural dentro da realidade do país, abrindo-se para dezenas de idéias a serem discutidas. Em suma: O Pedestre é um exemplo do que deve ser o filme de 16 mm, uma forma viável de se abrir para o profissionalismo, mas com a seriedade e despretensão que, infelizmente, é o que falta a a tantos que estão mexendo com a bitola. Otoniel Santos Pereira é um jovem cineasta pronto para dirigir o seu longa-metragem, that's all folks...

NA FOTO: Cena de Angélica, episódio de Antonio Lima em As Libertinas, que teve assistência de direção a cargo de Otoniel Santos Pereira, realizador do ótimo O Pedestre, acima comentado.

JAIRO FERREIRA

(São Paulo Shimbun, sem data conhecida)

Nem Verdade nem Mentira

Nem Verdade nem Mentira
(1979, cor, 10', 35mm)
Direção e produção: Jairo Ferreira. Com Patricia Scalvi.
Ligéia de Andrade, laboriosa repórter da grande imprensa, escreve um relatório confidencial sobre suas atividades e, ao mesmo tempo, interroga seus colegas de redação (Flávio Rangel, Tavares de Miranda, Helô Machado, Emir Nogueira, Adilson Laranjeira e Dirceu Soares) sobre a verdade e a mentira jornalística. Ela não está preocupada em tirar conclusões, mas em reportar, descobrindo a verdade na mentira e a mentira na verdade.


Aguardando restauro/telecinagem.





Patricia Scalvi: a musa de Jairo Ferreira, Carlos Reichenbach, Rubem Biáfora e outros tantos. Atualmente, ela faz dublagens de filmes estrangeiros (é dela, por exemplo, a voz da personagem de Cecilia Roth em "Tudo sobre Minha Mãe").
O cinema brasileiro perdeu uma grande atriz.

8.5.07

Manifesto de um cineasta visionário


JAIRO FERREIRA

Quando estreou na direção, com 23 anos de idade, realizando o apocalíptico e já antológico "O Bandido da Luz Vermelha" (1968), Rogério Sganzerla soltou um manifesto que começava assim:"Meu filme é um faroeste sobre o Terceiro Mundo, isto e, fusão e mixagem de vários gêneros. Então fiz um filme-soma; um far west mas também musical, documentário, policial, comédia ou chanchada e ficção científica". Esse manifesto ficaria famoso na crônica cinematográfica brasileira, não sendo superado por nenhuma critica (embora algumas sejam realmente muito boas) publicada sobre o filme até hoje.

O novo manifesto de Sganzerla, escrito em função de seu último filme "O Abismu" (que deverá ser exibido durante o Festival de Brasília que terá inicio na próxima segunda-feira, dentro da mostra intitulada "O Horror Nacional"), intitula-se "Voltando à Tona". Explica porque o cineasta preferiu ficar submerso durante sete anos. já que abandonou o cinema em 1971, e é ainda mais provocante do que o de 1968:

– Após sete anos de submersão, eis-me voltando à tona (com muita honra) nesse tonel sem glória que é o cinema brasileiro. Submersão não significa submissão – ao contrário, imerso nas profundezas da mente livre pude pesquisar uma cultura soterrada e descobrir o que está na cara e poucos têm coragem de constatar: Brasil, país do passado – de grande e imemorial passado – eu sei de tudo e escondo, sabiam?

– De 1970 para cá – desde que saí dele – nosso cinema perdeu quase todo interesse e originalidade (com dignas, esparsas exceções), não sei se por coincidência ou não... Ou por outra, pude refletir sobre esse personagem que por acaso sou eu mesmo (não vou discorrer sobre as causas do vôo rasante da cultura, déficit ideológico e baixo circuito cultural), pois enquanto a cultura nacional voa baixo eu vou alçando vôo – quem viver, verá.

Birds, Fly By Yourself... Sim, perdi tudo: ego, razão, possibilidade de viajar e me transportar através do tempo – perdi tudo (até a inconsciência) – mas não parei e, se assim não parei, melhor para mim.

– Mergulhei no abismo de sol e mar que é o mundo de Mu e de mim – se tudo acabou para mim, deuses, eu não sou mais eu – sou o que restou de um um-tilado zero. Fora do esforço da razão e da intenção, me disponho a encontrar aquele ponto de acerto entre a intenção e o recado como a ex-minha de Mu, do amor e da mordente.

– Do fundo do mar e da mente surgem traços, cinzas do vôo da fênix levantando-se por altíssimas paragens, indo diretamente ao firMUmento num MUmento MUndialmente MUltiplicável pelo MUrro dos que como eu sabem de tudo.

Necessária pausa para refrescar: como já assisti "O Abismu", devo esclarecer que a ação do filme é ambientado no continente perdido de Mu, não raro confundido com a Atlântida, o famoso continente desaparecido e que Rogério Sganzerla – um visionário, sem dúvida – ousa identificar com Brasil. O filme é uma chanchada fantástica, como escrevi no "Folhetim"(n.° 65, 16/4/78). Porém, em Sganzerla tudo é humor e, assim, – se me permitem – acho que essa Atlântida à qual o filme alude não é outra senão o famoso estúdio carioca, que produziu muitas chanchadas, gênero predileto de Sganzerla, que continua seu manifesto:

– Terei uma mensagem a transmitir? Pois seja essa: em arte, o Brasil, em vez de andar, carangueja.

– Dizia Oswald d'Andrade que um povo sem cinema é como um país semeletricidade. Nossos filmes andam péssimos e os cineastas adormecidos...

– Vim, vi, venci, nada é meu mas tudo é uma coisa só e, se ainda dormem, estou bem acordado e de pé...

– Quem Gosta de Mim Sou Eu: Não me preocupei, pelo tempo em que estive sem filmar, com o fato de ser esquecido. Conto com isso, pois terei nova chance de recomeçar. Afinal, trabalho pra mim mesmo. Tenho tanto a dizer que nunca me faltará material – nem autocrítica.

Contra o Consumo de Feitiço: Para lá de péssimo/Não vi e não gostei. Filmando "O Abismu" observei o quanto é bem servido o atual momento em matéria de ignorância e boçalidade. Depois concluí necessária tamanha boçalidade, única forma de queda do boçal por ele mesmo provocada. Tudo está tão ruim que acho ótimo. Vosso cinema vai mal, ainda bem... dizem que só há pangaré na pista inexistente do cinema brasileiro (e isto vale para o internacional e quase todas as artes). Somente a tese da boçalidade, associada ao vôo rasante da cultura explica o atual momento medíocre... De qualquer forma, o páreo anda tão ruim que só tende a melhorar — pior é impossível.

Rogério Sganzerla esteve em São Paulo para apressar o lançamento comercial de seu filme, que tem distribuição da Embrafilme, mas engatilhou também uma sessão especial para os mais curiosos – deverá ser no Museu da Imagem e de Som em data a ser anunciada brevemente. Entre os atores de "O Abismu"', estão Norma Benguell (nunca tão ela mesma), José Mojica Marins (bonito, por incrível que pareça), Wilson Grey (melhor impossível) e Jorge Loredo (um Zé Bonittnho fantástico), fotografados criativamente por Renato Laclete – e diga-se de passagem que a montagem (do próprio Sganzerla) também é brilhante.

(Folha de S. Paulo, 23 de julho de 1978)